segunda-feira, 21 de maio de 2018

DRAMATURGIA DE IMPUREZAS




Entre mim e as pessoas de quem cuidei, a escrita sempre se fez presente. Ora como um gesto espontâneo, ora como necessidade do próprio momento do encontro. Alguma dificuldade surgia e a escrita, portanto, se tornava objeto de intermediação no sentido de presentificar o afeto. Ainda assim não deixava de se traduzir no gesto concreto de o outro se dizer no mundo e de se reafirmar como pessoa. Por outro lado, era como se desassossegado estivesse atrás de um porto seguro e nele pudesse ancorar. Escrever, então, era o grande mistério. Pacientes inquietos tornavam-se mais doces e suaves ao vivenciar no cotidiano o exercício da escrita. Era assim que eu entendia o motivo pelo qual determinado paciente era impelido a escrever. E aí eu confirmava a ideia de que escrever tem algo mágico, ilusório, fantástico, enigmático.
Tudo ali se dizia presente. Dor e desassossego, alegria e prazer estavam sempre lado a lado; fios de esperança que se teciam através de frases elaboradas ou impulsivamente construídas. Imagens tantas, desenhadas com os traços e as cores da escrita. Era como se as coisas tomassem um novo rumo e ganhassem outro movimento.
Às vezes eu tinha a impressão de que, para construir tais escritos, os pacientes tinham que descer às profundezas dos infernos. Mais precisamente, os escritos expressavam essa descida e, por vezes, se convertiam até mesmo no caminho de volta. Ao longo da minha vida profissional, fui colecionando poemas, frases, redações, versos, pensamentos, todos relacionados com um momento singular na vida de cada um, verdadeiras confissões em torno do existir. Era enorme o prazer de lê-los e arquivá-los. Em síntese, era para isso que os autores me traziam suas produções: para poder provocar um prazer ao ler os seus textos, mas por outro lado era como se tivessem a garantia de que comigo estariam bem acolhidos e guardados. Daí o máximo cuidado. Significações e Codificações tantas...
Alguns desses escritos me eram endereçados. Tal gesto era por mim encarado como múltiplo, plural. Não me atraía uma leitura reducionista do gesto, pois via nele uma tentativa de ampliar seus universos de referência; mais uma forma do seu jeito de ser, viver e aprender o mundo. Sempre os encorajei a escrever. Constatava que o ato da escrita e o que resultava daí era fonte de sabores vários. Disto tinha a convicção, pois os pacientes, nos seus relatos, me davam a noção do que é saborear os próprios escritos. Não era à toa que manifestavam prazer ao vê-los por mim saboreados. Era a escrita se traduzindo em laço; a pessoa destinando a si, mas igualmente ao outro.
Alguns deles exerciam com maior ênfase o que lhes solicitava. Era como se precisassem apenas de uma palavra, de um consentimento para efetuar o gesto. Era tal o empurrãozinho que faltava. Outros, mais tímidos, ousavam uma menor intimidade com o papel e o lápis. Alegavam sempre: não está na minha hora. E eu compreendia que era o tempo da escrita – era precioso aguardar o devido tempo para jorrar a escrita. O referencial tempo tornava-se para mim algo fundamental, porque era também por meio dos escritos e da maneira como eram praticados que os pacientes tentavam me dizer dos seus universos e do ritmo interno que os movia. Espaço e tempo, relações inúmeras...
Entre os escritos que guardo comigo, estão os depoimentos de Eleonora e Ana, os quais, com seus devidos consentimentos, torno públicos.
Ambas sempre apresentaram uma grande inclinação e jeito para escrever. Durante nossos primeiros contatos logo percebi suas motivações em relação à prática e a partir dali me tornei um incentivador. Ambas possuem uma obra vasta, já que muitos afetos foram tecidos, costurados, desenhados em vidas através do ato de escrever e, consequentemente, de seu produto. Produções incontáveis...
Os dois escritos a seguir, se antes expressam a grandeza, a suavidade, a delicadeza com que elas dizem os seus estar no mundo, por outro lado falam de uma trajetória construída com base nos perigos, nos sustos, na ousadia, na determinação. Se para elas foi importante fazer essa confissão, para mim é comovedor transformar seus escritos no espelho projetor de imagens que me dão uma clareza do processo de mediação no qual fui posto diante dessas vivências de estados inumeráveis.
“Não recordo bem se foi abril ou maio do ano passado, 1993, que recebi do meu clínico geral o diagnóstico: Síndrome de Pânico. Estava eu naquele momento vivendo um crítico período da minha vida, em que se misturavam sintomas físicos, psicológicos, emocionais; um verdadeiro turbilhão de pensamentos, sensações e emoções, definidas e indefinidas, que poderia ser chamado apenas de medo.
Foi quando, de repente, num programa de televisão, (...) do qual participavam médicos psiquiatras e outros profissionais da área de saúde mental, que vislumbrei um raio de esperança para a cura daquela dor tão profunda e inexplicável... Anotei o nome de um daqueles profissionais e saí à procura dele: Luiz Gonzaga Pereira Leal. Terapeuta Ocupacional.
Marquei uma consulta e assim conheci o dr. Luiz Gonzaga e o CECOP, local onde ele atendia seus pacientes. Era a primeira vez que um profissional me recebia as 12 horas do dia, e foi a primeira vez que enfrentei o calor escaldante da rua e o abafado de um ônibus superlotado, ao me deslocar de Olinda, onde moro, até o Parque da Jaqueira, local do consultório. Algo dentro de mim me impulsionava a seguir; mesmo correndo o risco de ter enxaqueca, coisa que o sol e o calor sempre me trouxeram. Assim encontrei o dr. Luiz Gonzaga e confirmei a impressão que ele havia me passado quando o vi, num certo programa na televisão, pela primeira vez. Era um Terapeuta, mas, antes de tudo, era uma pessoa. E foi com essa pessoa, sensível, simples e humana, que comecei o meu processo.
Durante oito meses dediquei-me aos encontros semanais com o dr. Luiz e o ambiente da clínica. O CECOP era um espaço de terapia ocupacional e por lá transitavam os mais variados graus de conflitos e patologias; e talvez por isso também mais rico e mais importante para mim naquele momento. Com minhas sessões individuais e aquele ambiente bom à minha volta, percebido enquanto aguardava a hora de ser atendida, comecei a sentir que alguma coisa se transformava dentro e em torno de mim. Através do estímulo, da solidariedade, do saber ouvir e da cumplicidade do dr. Luiz, alguns de meus medos foram lentamente desaparecendo e outros foram tomando cada um o seu devido lugar e exercendo o devido papel na minha vida. E também aprendi uma forma mais bonita de me expressar e talvez até mais verdadeira: desenhando, pintando e escrevendo.
Sutilmente, meu terapeuta me conduziu de volta à expressão poética, coisa que havia deixado se perder num tempo passado de dores contidas e viver mal vivido. Participei de um grupo no CECOP chamado: Clínica da Poeticidade, sob a coordenação do professor Jomard Muniz de Brittto. Foi nessa primeira aula de poeticidade que comecei a me dar conta das minhas mudanças internas. E tudo passou a ser novo. Nas minhas sessões individuais com o dr. Luiz (...), através de suas expressões faciais, gestos, posturas etc., fui sendo capaz de aos poucos, repensar as palavras, corrigir, manter, compreender...
(...) Lembro de uma palavra dele que, desde que a ouvi pela primeira vez, calou fundo dentro de mim: fertilizar. Sim, eu me fertilizava a cada sessão e essa fertilização trazia à tona minhas descobertas. Comecei a atentar mais para meus desenhos e, através deles, a trabalhar não só a criatividade, mas principalmente comecei a rever a noção dos limites, tão importantes e necessários à vida, ao cotidiano, à coisa do meu. Nos meus desenhos eu conseguia colocar formas e cores, talvez sem lógica bem definida, das figuras, mas bem verdadeiras e intensas conforme meu sentimento do momento. Inúmeras vezes percebi que cada desenho concluído era como se eu resolvesse uma emoção ou fato vivido pela metade. Dessa maneira, fui me sentido cada vez mais companheira de mim mesma.
(...)
Nesses oito meses de terapia, ou melhor dizendo, de novo aprendizado, consegui dar voz ao meu próprio coração e reconheci dentro dele minha religiosidade, através da libertação de culpas e do reconhecimento delas. E assim os dias foram passando... Quando, porém, meus problemas começaram a se organizar. De repente a vida me colocou novamente em xeque...
No mês de setembro minha filha adoeceu repentinamente e foi internada num hospital. Sofri muito, me preocupei bastante, mas não entrei em desespero. (...) feitas todas as pesquisas cardiológicas e neurológicas, ela saiu do hospital e entrou num processo psicoterapêutico. Em fins de setembro, começo de outubro, chegou a minha vez. Comecei com um problema na coluna cervical. Aí fui eu quem foi socorrida num hospital de emergência. Depois de vários Raios X, foi diagnosticado um problema na coluna cervical e nos braços. Tive o pescoço imobilizado por cinco dias e tão logo retirei o colarinho, iniciei a fisioterapia. Mas, antes mesmo desse problema que tive, aconteceu a brusca interrupção do meu processo terapêutico. Dr. Luiz adoeceu e teve de ser internado. E eu? Bem, eu estava com poucos movimentos nos braços e pescoço; minha filha em tratamento psicoterápico, dinheiro pouco e, o que era pior: sem terapeuta; sem meu ponto de apoio. Era chegada a hora e a vez de eu testar e pôr em prática toda aquela transformação que se processava dentro de mim. Reuni então toda a coragem e toda a energia que armazenei durante minhas sessões terapêuticas e me pus a adiante. Momentaneamente desestabilizada, a pedido do meu fisioterapeuta, procurei uma médica psiquiatra a fim de solicitar-lhe uma medicação para ajudar no processo de relaxamento neuromuscular, tendões e ligamentos da cervical, ombros e braços. E assim foi feito. E foi a partir desse momento que compreendi que estava somatizando, jogando sobre o meu corpo toda a minha impotência diante da perspectiva de possíveis e irreversíveis perdas, apontadas por sombrios diagnósticos sobre a saúde da minha filha e também do doutor Luiz, justamente as duas pessoas mais presentes e próximas de mim. À primeira, eu servia de apoio; na segunda eu me apoiava. À luz dessa compreensão, voltou-me a coragem, novamente me senti fértil e descarreguei no meu caderno de desenho todas as minhas emoções traduzidas em imagens coloridas e bizarras, por vezes desmaiadas e tímidas, colocando assim, de forma ordenada, sentimentos e sensações de dúvidas, medos e incertezas, não deixando que essa impotência tomasse conta de mim outra vez.
(...)
Formada essa compreensão, meu corpo foi recuperando sua mobilidade, as coisas foram se ajustando, as tristezas e preocupações começaram a ser bem digeridas...
Alguns dias atrás, volto a encontrar o Dr. Luiz, não no CECOP, mas num outro consultório, e reinicio um novo processo de acompanhamento para rever tudo aquilo que foi assimilado na minha primeira vivência, marcada pelo pânico, pela depressão, pela tristeza...”
- Eleonora.
Recife, maio de 1994

“Minha experiência em terapia ocupacional foi algo doloroso e ao mesmo tempo muito lúdico. Nada era desprezado e tudo se transformava em material terapêutico.
O simples rabiscar no papel, que antes poderia ter o lixo como destino, tomava outro rumo. Passava a ser colecionado, só pelo fato de existir, sem qualquer julgamento. Com isso, a vontade de me expressar tomou corpo e começou a se tornar importante para mim. Os desenhos cresciam em detalhes e qualidade. Outros materiais, alguns que até ofereceram uma certa resistência, como por exemplo o barro, passaram também a ser instrumento. Tudo era usado na terapia, até mesmo as coisas mais corriqueiras. Mas o escrever passou a ser o meu grande companheiro, a minha grande descoberta. E o mais importante que eu percebia era como o ato de escrever passava a fluir espontaneamente dentro desse meu processo...
Minha terapia não se limitou às quatro paredes do consultório, sempre foi um processo muito rico e dinâmico. Era algo muito maior do que aquilo que me diziam. Estava além de qualquer coisa a buscar, o procurar, o intuir... No processo nada era pronto e acabado ou seguia sequências pré-estabelecidas. Tudo era ditado pelo momento e nele tudo ia se fazendo.
(...) Percebia a cada momento que a mola mestra da terapia era a descoberta das capacidades e do seu consequente desenvolvimento.
Dessa forma, fui enfrentando os meus altos e baixos com mais coragem e clareza...”
- Ana
Recife, abril de 1994

domingo, 20 de maio de 2018

TERAPIA OCUPACIONAL & POETICIDADES SEMIÓTICAS




Pode parecer extravagância comparar um autor já consagrado no século passado com outro ainda em processo de auto-superação. Por enquanto o melhor seria manter um clima de suspense, desde que as analogias são quase sempre atrevidas, perigosas, quando não abusivamente superlativas. Restando alguma ansiedade ao enfrentar um raciocínio comparativo entre duas personalidades tão radicalmente singulares. Além e aquém do jogo de presenças e distâncias, evocações e permanências, dádivas e certezas. Em campos de atuação e prestígio talvez conflituosos. Por isso, esqueçamos os confrontos geracionais, formações específicas, ideários libertadores.
Abismos do Brasil interferindo sobre todos nós.
Nômades pensamentos exigindo novos desafios e perplexidades.
Aquarelas brasilíricas despedaçadas.
Aonde fomos parar? Quantos enigmas indecifráveis?
Da revolução pedagógica desejada por Paulo Freire o que se pode ser transferido e reinventado pela clínica de Luiz Gonzaga Pereira Leal?
O educador Paulo, no ambiente de planejamento desenvolvimentista, reformas de base e múltiplas militâncias, inventou um Sistema de Educação: não um simples método de alfabetização para jovens e adultos iletrados. Entretempos dos finais dos anos 50 ao início dos anos 60 do século XX. Paulo Freire experimentava uma utopia concreta.
O terapeuta Gonzaga Leal, nas pulsações redemocratizadoras das décadas de 80/90, reelaborou a situação da psicose, além das intervenções tradicionais. Situações limite da contracultura investindo nas relações moleculares. Crise de transformações. Outras utopias discretas?
Com esses dois registros, melhor valeria uma tentativa de reaproximá-los. Ou melhor narrando: re-interpretá-los. Assumindo riscos, sem renegá-los. Duas configurações da historicidade no particípio presente de nós, mesmos e outros. Dois registros. Duas reconfigurações. Três apostas como hipóteses.
A primeira hipótese inserindo Paulo Freire e Luiz Gonzaga Pereira Leal numa vivência de complexidade antropológica. Ambos praticando leituras do mundo através de perspectivas substantivamente culturais. Insatisfeitos com o erudicionismo, muito mais ornamental que corporificado, tanto Paulo Freire quanto Gonzaga constroem o núcleo da história no cotidiano. De nossas carências, necessidades, expectativas, tradições e contra-dicções. Investigam, projetam, discutem hábitos, crenças, ilusões, mitos e preconceitos. Apontando e muito mais apostando no sentido da criticidade permanente.
Para onde nos levariam esse terapeutas-educadores da arte-vida?
Quantas veredas nos sugeririam?
Entre localismos e universalismos aonde vamos disparar?
Apontando e apostando nessa palavra geradora – criticidade – os dois pensadores não se confinam no âmbito dos racionalismos empiristas nem intelectualistas, mas intencionam uma racionalidade aberta ao diálogo. Assim instaurando a segunda hipótese de nossa suspeita e empática interpretação. Suspeita por veracidade e poeticidade por empatia.
Em consequência dessa postura dialógica-comunicativa, no trânsito de todos os debates e ideologias, a posição crítica (não criticista) se fundamentaria numa disponibilidade de afeto. Afetividade múltipla, abrangente, totalizante em processo, embora jamais totalitária enquanto exercícios de excludências. Afetividade, radical mas não sectariamente, democratizadora. Sem a tirania da possessividade. Sem a denegação das diversidades. Sem a fantasia das retóricas.
Paulo Freire transformando a sala de aulas expositivas monológicas em círculos de cultura de todos os participantes: educando-educadores e educadores-educandos.
Transformando porque cooperando com todas as modalidades de intervenção dos seres humanos em suas experiências comunitárias de trabalho, lazer, religiosidade e filosofias de vida. Coparticipações. Intercomunicações.
Gonzaga Leal reconfigurando uma concepção de Clínica em Laboratório de Afetos e Sensorialidade. Atravessando um caleidoscópio de linguagens. Ultrapassando os gestos mais opacos e aparentemente sem sentido em projetos da imaginação lúdica, brincante na interatividade. Seus parceiros-companheiros de Laboratório interagindo ao redor de uma mesa ampla, com ambientação de livros e objetos os mais diversificados. A esses objetos, Gonzaga prefere chamá-los trocinhos, vestígios de época, resíduos de civilização, bens culturais ao alcance das manualidades, desempenhos e reinvenções. Seus parceiros-personagens de aventura criativa. Babel de nossos imaginários e musicalidades. A realidade em artefatos e brinquedos.
Se a primeira hipótese reaproximou Gonzaga Leal de Paulo Freire através das convivências antropológicas; se a segunda hipótese fez a ponte/fonte da criticidade para a afetividade, qual será nossa terceira hipótese? Em nome de qual profana trindade?
Desejando abolir ou, pelo menos, driblar o fôlego das dualidades e dicotomias, ambos trabalharam e continuam trabalhando com a esperança da práxis na complexidade. Pelas interpenetrações do humanismo das letras, artes e ciências com o universo das linguagens, gestualidades e sonoridades. Pelas interfaces do discurso no silêncio, da lucidez na loucura, da paixão na razão, da ignorância nos saberes. Pelos labirintos da racionalidade transitiva e transacional. Pela lógica dos paradoxos, quando a “faca só lâmina” experimenta a metamorfose de todos os sentidos, percepções, sensibilidades e significados compartilhados. Essa terceira hipótese nos introduz, tornando-nos cúmplices do multiverso dos trocinhos.
Das leituras do mundo às palavrações da criticidade.
Do prazer do texto ao dialogismo dos afetos e sensações.
Dos traços do letramento às veredas dos paradoxais trocinhos.
Hipótese terciária, das unidades em complexidades, dos paradigmas em paradoxos, das percepções em fabulações, das redundâncias em diferenciações. Hipótese quase hipérbole: pelas intensificações da terapia ocupacional em ação cultural libertadora desdobrando-se em semiótica do olha tátil.
Além do raciocínio comparativo entre o educador Paulo Freire e o terapeuta Luiz Gonzaga Pereira Leal continuaremos oscilando entre diferenças e convergências, identificações e alteridades, localismos e sombreados, closes e panorâmicas, cantatas e dissonâncias cognitivas, um substantivo questionamento: quais os trocinhos e destroços que sobraram, duraram, perduraram em nosso processo psi-civilizatório?
O Brasil de todas as barbáries tão longe perto demais? De nossos trocinhos, objetos de dúvida e de estimação, sujeitobjetos de nossas memórias roubadas e mitologias replicantes. Trocinhos, segundo a denominação carinhosa de Gonzaga Leal: nosso passado em devenir, lembranças transfiguradas, imitações reinventadas, co-realidades afetivas, conceituais, valorativas. Táticas e estratégias religadoras. Traços de imperiosa e dadivosa sobrevivências. Troços e traços ainda sempre carnavalizadores, mundo pelo avesso, máscaras desusadas, afetuosos desmascaramentos. Surpresas além do bem e dos males provinciais. Além do além do AMOR-TE. Pulsões revivescentes. Quase tudo em particípio presente.
Salve-se quem souber de nossas trocas e troças, tramas e traumas, desejos flutuantes e afetos pulsantes.
Salve-se quem souber arriscar-se pela artevida no cotidiano.
Salve-se quem escapar dos messianismos impagáveis. Quixotescos?
O espaço-tempo da clínica-laboratório de Gonzaga Leal, muito mais do que re-unir e aglutinar experiências, pode significar um conjunto plural de historicidades. Linhas de fuga do eterno ao efêmero. Todas as seduções do explícito ao introjetado. Todos os desejos, sem leis nem hierarquias, além das necessidades e demandas.
Da arqueologia dos saberes, epistemes e cortes epistemológicos, matrizes de reconhecimento, às reapresentações do presente cotidiano. Rupturas e continuidades. E tudo é muito mais. Além dos rótulos e das grafitagens. Além das rótulas e dos modismos nominalistas. Das ironias românticas às paródias e pastiches de todas as modernidades. Transpirando-se na temporalidade de convivências por intensidade. Tudo a partir do constante recomeçar pela SEMIÓTICA DO OLHAR FALANTE.
Tudo a ser experienciado: visto, tocado, cheirado, apalpado, descrito, agido, comovido, narrado, contemplado em ações compartilhadas.
SEMIÓTICA DO OLHAR INTERCOMUNICANTE.
Porque tudo continua sendo muito mais. A ser revivido e reinventado.
Um jorrar jubiloso de linguagens.
SEMIÓTICA DO OLHAR MUSICAL.
Muito além do além das lendas, como expressaria em louvor de todos o poeta Carlos Pena Filho. Imagens maternas do lócus-nordestino ao cosmopolitismo mais nômade. Travessias. Dialogismo das possibilidades entre mães e marionetes, ausências e figurações. Bem perto de um Jardim ZEN sobre a mesa de encontros, devaneios, interrogações. Enamoramentos. Iluminações. Medos. Transfigurações. Coleção de quadros (im)pacientes pelas paredes. Artesanatos indígenas. Ancestralidades. Escultura de uma velha pensando à espera da lealdade de um outro Rodin ou Camille Claudel. Transposições.
SEMIÓTICA SO OLHAR VISIONÁRIO.
Calidoscópios de perdidos e reencontrados.
Proust à deriva de Guimarães Rosa. Aprendizagem permanente no livro dos sofreres, quereres e prazeres de outra Clarice Lispector ou Hilda Hilst. Quem desvendará A Roda da Sorte e da Fortuna?
Quem se imaginará coparticipando de uma outra Santa Ceia, tão chilena quanto nordestina?
Quem dialogará com a tecelã decantada talvez pelo poeta Mauro Motta?
SEMIÓTICA DO OLHAR TÁTIL – MUSICAL.
Descentrando-se e multiplicando-se pelos instrumentos de percussão.
Jogos de vida psi-compartilhada. Além dos departamentos especializações e reducionismos. Conceitos incorporados. Afetos irradiantes. Nenhum lance de dados (e dardos) excluirá a loucura e a lucidez, tecendo nossas manhãs cinzentas, nossos luares de angústia, nossos dilaceramentos televisivos, nossa potência como alegria de conviver. Por isso nada poderia ser resguardado entre gavetas, armários, prateleiras, paredes, livrarias, suspenses, perguntas, promessas de felicidadania. Apesar dos terrorismos e roubalheiras.
Jogos de amorosidade em contracanto. Porque tudo é muito mais. Agenciamento de novas subjetividades e intercomunicações. Religações da pedagogia paulofreiriana com a política enquanto terapêutica do cotidiano e poeticidade sem fronteiras.
SEMIÓTICA DO OLHAR SEM LIMITES.
Nesse nosso exercício de intempestivo dialogismo entre Paulo Freire, educador de criticidades democratizadoras, e Luiz Gonzaga Pereira Leal, terapeuta de abissais afetuosidades, o tempo-espaço da POIESES nos instaura e complexifica e solidariza enquanto CAOSMOSE. Transformando signos em SIGNAGENS, como acrescentaria Décio Pignatari.
SEMIÓTICA DO OLHAR TOTALIZANTE.
Por eles, através deles, interpenetrando-se além deles, a terapia ocupacional percorre nossa condição lúdico-humana como vida em jogo, espiral de desejos, anotações da dúvida, envolvimento versus estranhuras, afetividade irrompendo como instigantes ensaio de trocinhos de outras poeticidades. SEMIOTICIDADE de nossos agentes transformadores, Paulo Freire e Gonzaga Leal.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

MEUS TROCINHOS



Aqui o livro, ali a estante, o mobiliário no canto parado, os objetos em sua aura, a viagem dos postais que doem ou fazem sorrir – o cenário estático, o fixo.
A fixidez conjurando o mutável, no entanto, fluindo noutras formas, no encalço do sopro que anima. Sensações se desdobrando de núcleos concentrados, os trocinhos carregados de significação, signos para travessias insuspeitadas.
A simbologia deslizante, o ver e o tocar que levariam a outros estados de experimento, de provocação, voos a novos sortilégios, lavas e brasas nos fusos da tecelã.
Do que se pode cercar a caverna de tesouros que sussurram descobertas, o sótão sombrio que traz a sua própria luz, a penumbra onde a chama da vela abre cortinas, desvenda as noites brancas, com mulheres e horizontes?
E a vontade de amar não paralisa o trabalho.
Como no minério da Itabira do poeta, o hábito de sofrer diverte para propiciar a liberdade – é o que se espera daqui.
Deste eco longínquo de camadas ancestrais, onde Sísifo não interrompe seu labor, persiste crendo, a esperança em exercício de que há uma construção. Nem que seja a do nosso rosto espelhado no regato, ou o fígado cruento, dilacerado e renascido.
Contamos com esta dezena de mães arcaicas, do sertão nordestino às margens do Danúbio Azul. As mãos de um simbólico artesanato nos conduzem ao espanto da origem: terra, útero, com ou sem criança, pequenina ou já crucificada, nos braços da que alimenta, afaga e devora.
Contempla-se a lâmpada, ou a vela dançarina, e friccionamos a seda da imaginação, a ponta dos dedos do afeto. Os gênios escapam, na invenção, à beira do abismo – o arquipélago emerge de um inconsciente de vozes e oceanos, ansiando por sua expressão livre, cheia de conteúdo e desejo, ninho e tela, interminável labirinto.
A alegria das reinações se instala, em tubos de tintas, cores de lápis, carvão e giz, cola, pincéis, recortes, massa e aquarelas enlaçando o arco-íris e suas vertigens.
São papéis pintados, na parede, enchendo gavetas e mapotecas, revelando trilhas de coragem e alumbramento que esta nau propõe. Navegar e viver são precisos, preciosos, indispensáveis.
Há dor e aflição, na certa. O velho marinheiro Artaud que o diga, náufrago sobrevivente, o druida iluminado que assombrou com a peste o caráter do drama, em carne viva.
Há indicações de histórias infindáveis, Eros e Psique gestando monstros,, meio gente, meio bicho. Os livros ocultando fórmulas a serem transmudadas no caldeirão.
Magia de todos os tons. A busca da realidade que enriqueça, liberte e confirme a condição alada e bípede da pessoa humana, barro seguindo caminhos de nuvens – do seu ponto de refúgio e fuga, ancoradouro e arremesso, dizendo adeus com as asas, em direção às estrelas.
Á sua verdade, na modelagem desta arte suprema que é a própria vida, de cada um de nós.
A paisagem irrepetida onde só o amor move o que juntamos, o que nos compõe.
Pastor e nauta, cada troço à vista nos repetirá: olha-me de novo, com menos altivez, e mais atento.
Do que vimos – e as fotos registram toda a expressividade e beleza dos elementos na moldura das mutações – e comentamos, se esboça o trabalho-arte deste misto de ferreiro, poeta, pássaro, decifrador e alquimista, em seu laboratório de instigantes surpresas.
A clínica do sutil, a terapia dos fios lançados até encarar o Minotauro e acariciá-lo. O cenário delicadamente receptivo, a sensibilidade de egos fragilizados aguçada por toda a galeria de vivências à nossa volta.
Como resultado, o processo de enriquecimento, dinâmica afirmação da individualidade, Um novo jeito de ver, de ser; a realização de uma vida melhor, mais plena, relacionada, a alma nunca pequena.
E como vale a pena singrar por zodíacos e calendários: primavera florida, mar de verão, nos acautelando dos ventos do outono, se aconchegando para avivar os fogos resistentes, no inverno.
Os carretéis do tempo, os grãos no moinho, a lã na roca, o tecido e o pão de todos nós, alimento e abrigo nas mandalas e sonhos de alegria.

Rubem Rocha Filho
Ator, Dramaturgo e Diretor Teatral

CAIXA DE ARQUITETURAS INACABADAS: silêncio de fundo, ausência de formas




INTRODUÇÃO
Ao longo da minha trajetória profissional, o contato com o paciente me despertou sempre curiosidade e dúvida. Cada encontro provocava situações inéditas e inesperadas.
Dentre as minhas inúmeras observações, registro uma que me causava certa perplexidade: muitos pacientes psicóticos, na tentativa de criar algo, não raro faziam dessa possível criação uma forma inacabada. Possível criação que estava comumente associada ao manuseio de um material concreto. Pinturas, tapeçarias, bordados etc, invariavelmente traziam a marca do inconcluso. Surpreendia-me que o tornar objetos inacabados, fazia-se presente não apenas naqueles pacientes mais necessitados, portanto mais cindidos – e então era fácil compreender tal atitude –, mas também naqueles que estavam vivenciando etapas de uma maior estruturação interna. Ao mesmo tempo, eu podia reconhecer naquele especto lacunar uma trama, um fio de ligação que tecia a história de vida do paciente. Isto ia me dando condições de avaliar o modo pelo qual todas as variações, transformações e elementos diversos são parte integrante e necessárias. Constava assim que a experiência nos dá acesso a outras dimensões, as quais, de outro modo, nos seriam vedadas.
Se eu lhes pedir que explicassem por que seus projetos não eram concluídos, nunca deixava de ter uma resposta na ponta da língua. Alguns alegavam ter perdido a paciência, outros fingiam não escutar minha indagação e com isso fechava circuitos de comunicação; outros respondiam que aquilo era tudo o que conseguiam fazer.
A palavra daí decorrente sugeria-me o traçado d um caminho tortuoso na direção do que eu poderia chamar de Centro do Labirinto; quer dizer, uma permanente e dolorosa busca da forma. E tudo isso encontrava expressão naquelas inconclusas arquiteturas.
Em termos de processo terapêutico, tenho claro que isso significa uma versão manifesta que encobre um tempo e uma história bem mais complexa e pouco familiar, portanto mais informativa e transformadora.
É fácil observar que os psicóticos estão sempre buscando contato com algum material e que isso para eles é uma maneira de expressar-se em rabiscos, em paredes e móveis, escritos em papéis jogados e imprestáveis, manuseio de material sucateado, como pedaços de madeira, retalhos de tecidos, peças de automóveis e eletrodomésticos, brinquedos quebrados etc. Tudo isso serve a essa busca de contato, são materiais das mais diversas origens, sempre com o aspecto de coisa arqueológica, trabalhada pelo tempo. É como se, a partir daí, camadas mais antigas e mais soterradas fossem adquirindo nova versão. A meu ver, é nessa etapa que se inicia o processo de criação no qual o inconsciente, de forma radical, tem papel predominante. Penso que o inconsciente e o acaso sejam os principais responsáveis pela construção desses esboços de forma, dessas arquiteturas inacabadas. É o “tornando-se subjetivo” na expressão de Thomas Mann.

A CAIXA
“Arquiteturas Inacabadas” era como eu designava todos os projetos não concluídos dos pacientes, ou seja, abandonadas a meio caminho. Esse acervo avoluma-se a cada dia, por vezes os objetos se misturavam uns aos outros, dificultando uma identificação, de modo que, se algo poderia servir como pista elucidativa, canal dialogante, ficava perdido no espaço e no tempo. Compreendi isso quando alguns deles manifestavam o desejo de que lhes fossem mostradas suas antigas produções; objetos que, via de regra, guardavam uma relação com o inacabado. Era como se eles quisessem apreciar uma antiga fotografia, o que marcava o tempo e o espaço de uma trajetória. Fui assim valorizando esse material, destinando-o àquilo que vim chamar de “Caixa de Arquitetura Inacabada”. Cada paciente tinha uma caixa separada e para ela era encaminhada a sua produção. Pude, então, observar: a caixa que abrigava as referidas arquiteturas em si já representava uma possibilidade de forma, dado que proporcionava uma experiência visual, ligada ao todo. Portanto, se por um lado a caixa se convertia em “continente”, aglutinando objetos que traduziam afetos, por outro lado se constituía em recurso gerador de uma forma, isto é, “o conjunto de arquiteturas inacabadas”. Fui constatando que a caixa era um elemento a mais, mediante o qual o paciente narrava sua história de forma espontânea, lúdica, despojada, sincera, sem subterfúgios. Ao mesmo tempo lhes proporcionava determinadas autopercepções.
A partir daí, fiz observações que me pareciam significativas, uma vez que estava lidando com pacientes que viviam um profundo estado de desassossego e desesperança. Alguns deles manifestavam prazer ao ler o seu nome escrito numa caixa, outros se deliciavam em exibi-la, outros ainda adotavam uma postura contemplativa em relação à caixa, como se estivessem enxergando algo que antes lhes escapara: como se soubesse que saber como era a caixa fosse possível apreender-se a si próprio.
Se o dar um destino a todos aqueles objetos era um passo a mais rumo à organização do mundo interno do psicótico, é preciso no entanto, entender que esses mesmos objetos se encontravam inseridos numa esfera significante, quer dizer, não eram objetos no sentido de uma concretude imediata e sim, representações de quem os produziu.
O manejo da caixa como recurso terapêutico, veio a tornar-se por excelência, um elemento integrador, pois ali estavam presentificadas as conexões e desconexões vivenciadas pelo paciente. Semanalmente, em hora e local previamente combinados, Terapeuta Ocupacional e Paciente empenhavam-se em elaborações em torno da caixa, um com relação ao ser a caixa outro continente, outro com relação ao seu conteúdo. Dessa experiência, que tem por base uma ação concreta e por isso uma dimensão material, uma palavra brotava, um gesto inédito se fazia presente, um discurso novo se articulava. Era como se colocar a realidade em movimento.
Quero portanto, enfatizar a importância que tem, para o processo terapêutico com psicóticos, toda e qualquer produção deles advinda, seja uma simples garatuja em papel imprestável, seja a criação de um objeto esteticamente apreciável, Tudo é fonte de renovação contínua para aquele que se encontra excluído. Exemplo do fio de Ariadne, tais criações permitem ao paciente não só guiar-se através do próprio labirinto, mas também sair dele a salvo, fazendo o que é preciso: penetrar no labirinto e matar o minotauro.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

TERAPIA OCUPACIONAL: entre o que se imagina e o que se pode tocar – com palavras no meio



Abordarei aqui, de acordo com uma forma particular de pensar a Terapia Ocupacional, algumas observações que tenho feito no decurso da minha vivência cotidiana com psicóticos.
Para começar, remeto-me ao Centro de Convivência da Pessoa (CECOP), instituição da qual faço parte há vários anos e onde trabalho junto com outros colegas. No CECOP, tudo ou quase tudo está preparado para que os pacientes vivenciem uma atmosfera de atividades, responsabilidades e co-gestão de interesses e gestos, com vistas a uma transação ativa dos pacientes com a realidade. Isto porque é próprio dos quadros psicóticos o estancamento deste movimento, desta aprendizagem.
Para isso, temos como eixo central de intervenção algumas estratégias que, a rigor, desenham o espaço institucional. Vejamos:
1. Construção de um campo de ação no qual o agir do paciente possa ocorrer voluntária e espontaneamente. Esse campo de ação e interação, por suscitar significações, acaba constituindo-se em campo produtor da subjetividade individual e coletiva, isto porque, neste contexto significativo, o paciente gradualmente vai se percebendo em movimento. Em ação – em situação.
2. Nesse campo de ação significativa, a produção e pronunciamento do paciente inserem-se na dimensão do vínculo social, remetendo-o, portanto, à construção concreta de sua existência.
3. O campo de ação, estando associado a um cotidiano criativo, pedagógico e estético, vai possibilitando o paciente substituir uma forma repetitiva e vazia de vida por atividades que o levem a readquirir um sentido de existência. Através do exercício de um complexo múltiplo de ações, o paciente vai lançando mão do gesto criativo e portanto, ativando processos de mudança.
4. O aguçamento da sensibilidade e dos afetos daí resultante proporciona ao paciente uma certa intimidade com o “caos” e assim ele sai ganhando territorialidade. Territorialidade no sentido de estabelecer laços cada vez mais conscientes com a vida.
Então, o que significa para nós Terapia Ocupacional? Essencialmente passagem do tempo. Colagem, um estado alterado. Meio ambiente. Divertimento. Organização de ideias a partir de artifícios concretos. Reafirmação do presente. Tempo estruturado. Meditação. Estado de pânico. Testemunho. Memória. Fúria. Texto em movimento. Figura no espaço. Dialética entre o agir e pulsar. Movimento da luz. Retrato. Visão. Confissão. Defecação. Máscara. Espaço habitado.
Enfim, produção de diferentes cenas.
Assim entendemos que a Terapia Ocupacional pode promover acontecimentos onde nada se produzia, onde as coisas se estagnavam na pura redundância, suscitando a emergência de singularidades com suas aberturas pragmáticas, suas virtualidades, seus universos de referência.. Por exemplo, certos pacientes de origem humilde, simples, são levados a produzir artes plásticas, teatro, vídeo, música etc, quando antes esses universos lhes escapavam completamente.
Por sua vez, burocratas ou mesmo intelectuais se sentem atraídos por um trabalho manual na cozinha, no jardim em cerâmica etc. O que importa aqui não é unicamente o confronto com um material expressivo, é a construção, a partir daí, de complexos de subjetivação: pessoa – grupo – material expressivo – rocas múltiplas que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, se ressingularizar. Dessa maneira se processam transplantes que procedem de um campo criativo, portanto de vida, criando-se fecundas modalidades de subjetivação, semelhantes ao modo como um artesão produz objetos a partir do “material” de que dispõe. Esse processo de subjetivação implica a injeção de componentes heterogêneos no surgimento de pontos de bifurcação, fazendo com que a um só tempo um pequeno acontecimento abra novos campos de possibilidades, novos roteiros. Convém lembrar que os roteiros dos psicóticos quase não lhe propiciam um eixo de orientação. É preciso conduzi-los a construir novos roteiros. Do pânico, do encurralamento, brotam novos sons, desenhos, poesias inesperadas. Um novo tipo de afeto, uma nova qualidade de vínculo, uma relação inédita podem ter lugar a partir de uma experiência mutante.
Em tal contexto, observa-se que elementos os mais diversos podem contribuir para a evolução do paciente, tomando por base processos de subjetivação: as relações processadas com o espaço arquitetônico, a co-gestão entre os pacientes e os responsáveis pelos diferentes vetores terapêuticos, a apreensão de todas as oportunidades de abertura para o exterior, a exploração processual dos acontecimentos, enfim, tudo aquilo que se pode contribuir para a criação de uma relação autêntica e singular com o outro. Isto porque, é matriz do projeto cecopiano a presença permanente da palavra, de trocas, de problematizações, de ações, de agires o campo da realidade, no campo do cotidiano. Primamos pela manutenção de um campo de ação que possa promover a emergência das mais variadas linguagens e ecos, tendo em vista a vivência de uma experiência retificadora. Senão vejamos: não raro, famílias nos procuram alegando que seus filhos são muito parados, não se interessam por nada e portanto precisam de um lugar onde possam se ocupar. No primeiro contato do paciente com a instituição, observamos que certos mecanismos são acionados, dando lugar a determinados gestos: a iniciativa de ligar uma TV, de pedir um copo d’água, de voluntariamente se dirigir à oficina de criação; gestos em si elementares, embora não cogitados pela família como possíveis de o paciente realizá-los.
Supomos com isso, que o CECOP acaba por converter-se no que denominamos de “Usina de Criação”, cujo ponto de lance são os processos de subjetivação, resultante da criação de novos roteiros de vida em transversalidade inesperada com antigos roteiros. Esses processos vêm desenhar novo devires, criando e abrindo frestas na individualidade serializada à qual o psicótico encontra-se ancorado.
No CECOP, utilizamos uma grande variedade de atividades, como pintura, música, vídeo, literatura, poesia, teatro, jornais escritos e falados, expressão corporal, passeios, jardinagem etc. Tomamos todas estas atividades essencialmente como linguagens de uma profunda riqueza, uma vez que injetam novos códigos nas antigas fortalezas da territorialidade do já feito, do já dito. Nessa perspectiva, o desejo assume o lugar da invenção, efetivando processos de mudança, objetivando um novo devir, ou seja, o chamamento de determinada coisa que ainda não está aí, mas que existe como possibilidade. O devir do sentido da construção cotidiana da realidade.
Tenho observado, em muitos casos, que ao cuidar de psicóticos torna-se necessário e às vezes prudente abrir mão do corpo estabelecido, isto é, o psicológico, o universitário, o nosográfico etc, para depois recompor esse corpo a partir das redes de relações. Para isto, é preciso estarmos abertos aos acontecimentos, ao imprevisto, ao inédito, àquelas “pequenas manchas que tendem a surgir, de forma semelhante às manchas que surgem na tela quando o artista pinta” (Felix Guattari). Os psicóticos são muito imprevisíveis, razão porque mantém uma relação muito rica com a estética, isto é, estão sempre em busca de fendas para a organização, na medida em que as coordenadas do seu universo são muito frágeis. É comum observarmos gestos de pacientes que nos causam certa impressão, isto porque os remetem à constante busca da forma e expressão de conteúdos. Grafites em paredes e móveis, rabiscos e desenhos espontâneos em papéis, performances etc, são gestos que observamos no cotidiano de pacientes psicóticos e que, via de regra, expressam sinalizações de busca de conexões.
Partindo dessa premissa, torna-se necessário, torna-se necessário dar-lhes a oportunidade de contato com materiais concretos que oportunizem por sua vez uma produção também concreta, quer dizer, uma criação. Falar em criação é também dizer da responsabilidade da instância criadora em relação à coisa criada.
No CECOP existe uma espécie de tratamento barroco da instituição, em que a procura de novos temas, novas variações, novas leituras estão sempre postas em tela, com o objetivo de conferir aos psicóticos marcas de subjetivação e autenticidade. A partir dos mínimos encontros, das pequenas dobras advindas dos mais variados contextos, brota uma rede de relações de natureza interfertilizante que, a rigor, respondem por processos de produção de uma nova subjetividade. O que importa, portanto, é poder trabalhar programas de vida em função de personalidades com um certo grau de complexidade. É como se para cada pessoa que nos procura fosse necessário “reescrever”, refundar o CECOP. Para tanto se deve estar disposto a assumir discursos muito heterogêneos, sem que isso venha a significar duplicidade do discurso. Trata-se principalmente de adotar uma escuta singular em face de um acontecimento também singular. Afirma Guattari: “(…) o sujeito não é tão evidente, ele não está dado, ele não é naturalmente engendrado: é preciso trabalhá-lo. Sua modelização – na realidade, sua produção – é artificial e o será cada vez mais. A subjetividade coletiva, ela também, tem necessidade de uma prática em constante evolução(…).”
Será isto realmente uma proposta de abertura de alguma claridade? Ou será a claridade uma forma de cegueira, uma forma de ilusão? Que claridade realmente o paciente busca? Inferimos que é uma claridade semelhante ao brincar de cabra-cega, quando uma pessoa de olhos vendados, tateando, tenta atingir, pegar e identificar quem e o que está à sua volta. Na maioria das vezes o que é encontrado é o “ponto”, quer dizer, uma área da retina que ainda se encontra sensível à luz. É o turbilhão se convertendo em síntese. É a possibilidade do gesto. É a vertigem caótica que se encarnou na produção de um fazer criativo. E, neste aspecto, para o paciente o mundo e o outro não lhe falam mais a mesma voz, com o mesmo tom. O paciente entra em diálogo não tanto com uma ordem delirante, mas através de uma ordem de natureza socializante. Cada psicótico é ímpar na sua maneira de viver a psicose, portanto, é necessário não sermos redutivos tentado impor-lhe um sistema de igualdade.
Venho trabalhando com psicóticos há algum tempo e, apesar de tudo, honestamente, às vezes me vejo procurando saber o que fazer. Sou alguém consumido pela curiosidade do que está por vir.
Como produzir uma subjetividade processual onde tudo está bloqueado, paralisado, estratificado, num jogo de cartas marcadas? Para mim está claro que quando os psicóticos presenciam o perfil de um trabalho, de algum movimento que lhes inspire confiança e vida, não raro deixam de se engajar. Por outro lado, torna-se problemático alguém responder e atender a padrões anêmicos e estéreis de comunicação. Se o Terapeuta Ocupacional se utiliza das mais variadas linguagens para viabilizar ações terapêuticas, a Terapia Ocupacional é por excelência uma abordagem de natureza comunicacional e dialogante. Assim, o Terapeuta Ocupacional é alguém que pode ser identificado com a figura d trovador, do poeta, do viajante, do malandro, do ator, do cantor, do músico etc. Imagem-modelo, molde corporificado junto ao qual os psicóticos podem vivenciar experiências significativas numa arena também significativa.
É um pouco em função disso que conduzimos nossas intervenções. O que fazer em tal contexto, com tal pessoa ou com tal grupo, para que se tenha uma relação tão criadora quanto possível com a situação em que está vivendo – como um músico com sua música ou um pintor com sua pintura?
Sobre essa questão refere Guattari, no que diz respeito à cura: “Uma cura seria como construir uma obra de arte; com a diferença de que seria preciso reinventar, a cada vez, a forma de arte que se vai usar – quer dizer que o indivíduo adquira um ‘plus’ de virtuosidade, como um pianista para certas dificuldades”; ou melhor, mais disponibilidade, mais humor, mais abertura para pular de uma gama de referência para outra… mais charme, mais simpatia.
Os recursos terapêuticos ocupacionais, por serem diretos, ativos, cinéticos, tornam-se poderosos. Da descoberta do prazer de ter mãos e corpo que criam, que fabricam, o psicótico passa a falar de uma outra referência que não a da loucura. Passa a falar através da criação e assim já não é mais tão louco, isto porque passou a produzir novas posições, novas associações, novas reivindicações, novas visões.
Certos pacientes se surpreendem ao ver que suas criações são objeto de apreciação, outros se espantam ao constatar que podem representar uma peça teatral. Alguns são tomados de prazer vendo sua criação como algo utilizável.
Terapia Ocupacional, em síntese, é isto: - imagens em colisão. Colisão determinante de uma cinética, de uma anarquia; implícita no fazer - desfazer, construir – desconstruir, compor – decompor para assim chegar à “arquitetura” desejada, u seja, a um “alcance pragmático”.
Trata-se portanto de uma vivência de êxtase e paixão.

Fazer um percurso entre dois ou mais espaços gera movimento, ação, figuras correndo, objetos cinéticos. Tudo isso vem colocar o paciente na dimensão do provisório, do contingente, do precário, do fugaz e do efêmero da existência, do limite, contido no fato de que vamos necessariamente morrer e de que as formas e os processos que criamos para mudar a vida são finito e falíveis. E, no entanto, a consciência dessa limitação não diminui o mérito do empreendimento. Ao contrário, o valoriza.