terça-feira, 10 de julho de 2012

Criação e Loucura – Nexos Flutuantes; Errâncias Transitórias.


A. INTRODUÇÃO.



CONVIDADO para proferir hoje, aqui, para vocês uma palestra sobre algum tema de minha escolha, invadiu-me uma indefinida sensação de mal-estar. Passados alguns instantes, observei na minha consciência imagens visuais e representações verbais possibilitando-me perceber, em grau superior de inteligibilidade, o significado da sensação indefinida de mal-estar, agora convertida em sentimentos passíveis de serem verbalizados com maior precisão. Encontrava-me, no primeiro momento, num estado de sereno repouso, quando fui surpreendido por um desejo de expansão; queria ampliar-me até vocês mas paralisavam-me os pressentimentos  de fracasso e de incompetência. Evidenciava-se um dilema: ou aceitava o risco e saboreava-se bem sucedido, os frutos da aventura expansionista, ou recusava o risco e permanecia aconchegado na serenidade do repouso, renunciando à possibilidade desses frutos. Tinha de optar entre o viver e o sobreviver, entre uma existência mais ampla e uma existência menos ampla, entre um espaço maior e um espaço menor; tinha de deliberar entre as ansiedades claustrofóbicas e as ansiedades agorafóbicas, entre a asma e a vertigem, entre o medo e a depressão. Impulsionado por uma confiança instintiva, resolvi correr o risco e aceitei o convite.
   Informado de que falaria sobre tema de minha escolha, defrontei-me com a aflição de uma liberdade só limitada pelo tempo de duração do nosso encontro e pela natural exigência do uso da língua portuguesa. Milhares de palavras alistavam-se dóceis a quantas convocações se fizessem necessárias, fosse qual fosse a direção de significação que lhes quisesse determinar. Diante de mim, colocado à minha interia disposição, ali estava todo o nosso acervo linguístico. Aos pressentimentos de fracasso misturava-se agora a euforia do tudo poder. Compreendi nesse momento não ser apenas o medo aquele que nos faz desistir o levar avante uma ideia; a esse medo justapõe-se uma sensação de afunilamento determinando uma atitude de rechaço frente à perspectiva de aprisionar o tudo-poder em palavras dispostas sobre um papel. Urgia, por isso, restringir o quanto antes tão grande licença; impunha-se conter tamanha dispersão.
   Sobre que assunto iria eu discorrer? Que ideia nortearia o meu discurso? Como descobrir um tema que fosse, a um só tempo, consoante com os meus desejos e com os desejos de vocês. Permiti então que minha mente flutuasse livremente e alcançou-me uma frase atribuída a Heitor Villa-Lobos no seu leito de morte: “Pena que eu morra agora quando há ainda em mim cem anos de música”. Posteriormente tentaria entender seu significado. Encontrava-me, porém, gravitando em torno do universo musical e tomei por isso uma decisão: deixar-me-ia guiar pela primeira ideia que me ressoasse harmônica; sua harmonia refletiria o ponto de interseção dos nossos desejos, os meus e os de vocês, representando o encontro dos nossos interesses. Esse, sendo um critério, é, afinal, tão bom quanto qualquer outro critério; o importante será o desenvolvimento que dele pudermos realizar.


B. A IDEIA GUIA.


   Recorrendo ao critério musical da harmonia, destacou-se como ideia guia do nosso encontro “Criação e Loucura”. Uma ambígua sensação de familiaridade e estranhamento evocou em mim sua enunciação. Chegou-me primeiro à compreensão o entendimento da sensação de estranhamento: jamais pensara diretamente sobre esse tema e inquietavam-me dúvidas quanto à existência entre a criação e loucura, os dois elementos fundamentais da ideia guia, de nexos suficientemente relevantes a ponto de merecerem o esforço de serem desocultados e descritos. E a harmonia seria ela reflexo de conexões importantes entre a criação e loucura? À espera de maiores esclarecimentos, permaneciam essas questões como também a sensação de familiaridade. Por que ocorrera esta sensação de familiaridade? Pouco a pouco fui me dando conta de sua gratuidade; era gratuita e derivava simplesmente da confiança instintiva cuja força possibilitou-me a aceitação do convite e me impelia agora a prosseguir, sem saber bem nem por que nem pra onde, como, aliás, em tantas e tantas circunstâncias da vida.


C. AS TENTAÇÕES E OS SOFRIMENTOS.


   Afastada a tentação da desistência, deparei-me com outra, a de prematuramente recorrer ao auxílio externo. Faria, antes mesmo de efetuar prolongado esforço, uma consulta bibliográfica sobre o tema e apresentaria, como contribuição, as ideias de ilustres autoridades. Soava-me, contudo, agudamente criatividade.
   Vencida a segunda tentação, sobreveio a terceira. Não, não faria nenhum prematuro apelo externo, recorreria apenas a mim mesmo. Afinal, devo em muitos momentos ter tido algumas boas ideias sobre esse assunto e que, se içadas das minhas recordações, poderiam prestar auxílio ao desenvolvimento do meu raciocínio. Novamente sou a advertência disfônica e dessa vez, com ela, ponderações algo macabras: “Que me conste, protestavam minhas ponderações, criatividade não aponta para o passado, para o inédito, para o ainda não estabelecido. Você não é o que você já foi e, por consequência, suas ideias tidas no passado, rigorosamente, não mais lhe pertencem. Usá-las equivale não só a renunciar à sua criatividade, mas equivale também a reduzir-se à condição de plagiador de si mesmo, amante do morto, daquele que já foi e não é mais, e não amante do vivo, daquele que está sendo e está para vir a ser. Consultar suas recordações não passa de uma forma abrandada de necrofilia, de uma variante disfarçada de efetuar consultas bibliográficas”. Tão severamente advertido, restava-me evitar os pensamentos já tidos e as ideias já mortas, esqueleto daquilo que um dia foi vida.
   Ultrapassada a terceira tentação, avistei a quarta. Acionaria minha criatividade, empregando, porém para veicular minhas ideias, expressões teóricas consagradas pelo uso e dotadas, por isto, de elevado poder de comunicação. Uma vez mais, escutava a disfonia e observei nela tom ainda levemente macabro sobre o qual acrescentava-se dessa feita uma monotonia repetitiva. Não me custou muito compreender seu significado: advertia-me dos perigos que correm, tanto quem fala quanto quem ouve, toda vez que se usa a palavra velha, enrijecida e gasta pela repetição; é uma palavra altamente estimulante para a memória, todavia pouco estimulante para a criatividade. Como decorrência da familiaridade sonora estabelece-se uma serenidade frequentemente confundida com o verdadeiro entendimento. Quem fala e quem ouve, nessas circunstâncias, pode expressar um folie à deux de uma falsa compreensão cujo desfecho não leva senão a um estado de obesidade mental: engorda-se de palavras, mas não se cresce em entendimento genuíno. Quando genuinamente alcançamos um entendimento, logramos sempre formulá-lo com originalidade e de forma pessoal. Aquele aluno que memoriza a lição emite um discurso muito distinto daquele que criativamente assimilou conhecimento. Empenhar-me-ei, por essa razão, em encontrar um frescor linguístico que nos obrigue tanto a mim quanto a vocês, a entender apenas o que verdadeiramente estivermos entendendo; poderá se menos, poderá ser pouco, mas será genuíno.
   Insinua-se então um vazio. A ideia guia aparece agora desértica, fútil e sem brilho; sua visão gera somente perplexidade. Abatido pelo desânimo, pelo arrependimento, pela esterilidade, sinto-me solicitado por um duplo esforço; conter, por um lado, a invasão da palavra velha e das ideias mortas e, por outro lado, suportar esse vazio. Se prolongadamente conseguir suportar essas solicitações, talvez consiga desocultar os nexos pressentidos na ideia guia.
   Vislumbra-se algo. Quem sabe, ganhe corpo e alcance níveis superiores de inteligibilidade? Aguardo...


D. DESOCULTA-SE O PRIMEIRO NEXO


   Claro? Se a loucura é o pensamento partido, a “esquizofrenia”, se loucura é a errância do nexo, o disconexo, então a criatividade, capacidade de descobrir e estabelecer nexos, será sua contrapartida, seu antídoto. Desoculta-se o primeiro nexo: a criatividade é a possibilidade de intuir e formalizar conexões e a loucura um desvio ou uma deficiência dessa possibilidade.
   Se alguém categoricamente afirma estar sendo ameaçado de assassinato por uma associação secreta de nações inimigas, porque cachorros passeiam pelas ruas, estamos, com escassa margem de dúvida, diante de uma errância do nexo. Se alguém se descreve como um ser sem merecimento algum de prosseguir existindo, porque pessoas continuam morrendo no mundo, estamos, é quase certo, diante de uma errância. Se alguém entra num lugar e de súbito vivencia-se estranho e estranha o ambiente em outras ocasiões tão familiares, estamos também diante de uma errância d nexo. Se alguém sente compelido a lavar as mãos inúmeras vezes por dia para que nada de mal suceda àqueles que estima, estamos novamente, com toda a probabilidade, diante de uma errância do nexo.
   Propositadamente escolhemos distintos níveis das chamadas perturbações mentais e em todos eles constatamos a errância do nexo. Podemos então pensar se existiria alguma manifestação mental habitualmente avaliada como perturbação, cuja essência não seja a existência de um nexo errante. Como não nos ocorreu nenhuma, prosseguiremos desenvolvendo nosso raciocínio, enriquecidos agora pelo nexo que reúne os dois elementos fundamentais da ideia guia, a criatividade e a loucura.


E. A LOUCURA – A ERRANCIA DO NEXO.


   Ao refletirmos sobre esse enunciado, despontam algumas interrogações. Que significados estaremos emprestando à palavra loucura? Serão os mesmos da psiquiatria ou da antipsiquiatria? Loucura será defeito ou virtude, saúde ou doença, ousadia ou timidez, expansão ou retração? Que recorte do real estaremos abrangendo com essa palavra? É possível haver algum estado mental isento de nexos errantes? Para que ocorresse um tal estado mental isento de nexos errantes, não seria necessário conhecer-se num só momento todas as conexões possíveis, presentes, passadas e futuras? A incompletude das conexões não conduz inevitavelmente à errância do nexo? Não seria um estado mental isento de errâncias a própria onisciência e exclusivo, portanto da divindade? Estaremos considerando característico do humano a errância do nexo e proclamando assim a universalidade da loucura, a chamada sanidade mental reduzindo-se à categoria de mera abstração teórica? O humano representa então a radical impossibilidade de contactar-se plenamente com o real e de conhecer-se integralmente a verdade? Tudo o que vemos, os significados e os valores atribuídos às pessoas, às coisas, aos acontecimentos refletem apenas possíveis organizações de um sistema de conexões errantes e do qual somos perpétuos prisioneiros?
   Impõe-se conter o espaço reflexivo. Sim somos nesse sentido todos loucos, nenhum de nós alcançará libertar-se de seu sistema de conexões errantes e contactar-se plenamente com o real ou conhecer completamente a verdade. Tudo o que percebemos são alucinações, nossas opiniões um delírio. Estar acima das errâncias equivale estar fora do humano. Somos, enquanto pessoas, inevitavelmente errantes e, quanto a isso, nada podemos fazer senão tomar consciência desse fato, na esperança de, assim procedendo, evoluirmos na escala das errâncias; evoluir na escala das errâncias, eis uma boa definição de crescimento emocional ou desenvolvimento mental. Fazer terapia seria então aplicar um método cujo emprego possibilite a transformação de um sistema de conexões errantes num sistema de conexões menos errantes.
   Proclamada a universidade da loucura e a inventabilidade da errância, uma palavra sobre a prática terapêutica. Terapeuta não é, portanto, aquele que possui a dádiva da saúde e terapeutizante não é, portanto, aquele que é possuído pela desgraça da loucura. Terapeuta não é aquele que sabe e por isso ensina e terapeutizante também não é aquele que não sabe e por isso aprende. Terapeuta e terapeutizante são dois seres errantes que sistematicamente se encontram em busca das conexões que se apresentam, quando eles se encontram sistematicamente em busca das conexões. Pretendem ambos, juntos, por esse meio, evoluir na escala das errâncias, torna-se menos loucos, sabendo de antemão que jamais deixarão de sê-lo.
   Vamos agora considerar um sistema estável de errâncias organizadas de extraordinária importância na prática terapêutica por suas implicações; vamos agora considerar o que se costuma por vezes chamar de ideologia.


F. O SISTEMA ESTÁVEL DE ERRÂNCIAS ORGANIZADAS - AS IDEOLOGIAS.

(Excluídos Níveis Fundamentais de Consideração, a saber: o Impacto do social Sobre o Pessoal).


   A cada estado emocional corresponde uma distinta visão de mundo: se estamos tristes, descobrimos e selecionamos conexões propiciadoras de uma percepção da ida em tudo diferente daquela que alcançamos na alegria ou no enternecimento. Posto que nunca enxergamos o real na sua globalidade, estamos sempre interpretando-o e as interpretações flutua de acordo com nossas flutuações emocionais. Existe, porém algo que atravessa imutável essas mutações, algo que permanece quase inalterado nessas flutuações e define o modo principal de uma pessoa apreender a vida. A essa estabilidade de opinião, a essa modalidade de versão que se mantém constante no curso da variação, estamos chamando de ideologia. Esta ideologia assim definida pode ser mais consciente ou menos consciente e pode ou não coincidir com aquela que proclamamos ser a nossa ideologia. Abrange o corpo de crenças e o código de valores através dos quais categorizamos e hierarquizamos as coisas da existência. Sua presença é inevitável e se torna, por esse motivo, inútil qualquer esforço de se libertar dela. Somos, queiramos ou não, seres ideológicos e inevitavelmente interpretamos a vida poderosamente influídos por uma ideologia. Sua repercussão na eleição das conexões é decisiva, constituindo-se em fator fundamental no estabelecimento do tipo prevalente de errância numa pessoa. Adquirir consciência de nossa verdadeira ideologia torna-se, portanto, fator central para o desenvolvimento emocional. É mediante o reconhecimento que fazemos dela ser um sistema estável de errâncias organizadas, que logramos elevá-la da pretensiosa convicção da verdade irrefutável até a condição menos onisciente de uma interpretação pessoal do mundo. Enquanto não houver essa passagem, não haverá lugar para o verdadeiro aprendizado e não será possível evoluir na escala das errâncias. Uma ideologia rígida, inconsciente de sua inevitável errância, torna-se literalmente cega para a percepção de qualquer nexo divergente, reduzindo tudo ao que ela aprioristicamente proclama existir, confirmando-se assim monotonamente a si mesma. Engorda de informações mas não ode estabelecer novos critérios de organização para essas informações. O crescimento pessoal é substituído pela obesidade mental. Quando falamos de informações, estamos incluindo não somente as de proveniência externa, jornalística, mas também as de proveniência interna; nossos desejos, nossos sentimentos, nossos temores estão incluídos nessas informações.
   A existência de ideologias fechadas é tão importante que se pode afirmar que todas as chamadas perturbações mentais derivam-se de sua existência. Fazer terapia é o esforço realizado por duas pessoas de transformar as ideologias fechadas em ideologias abertas, possibilitando dessa forma o prosseguimento da evolução hierárquica das errâncias. A conscientização ampla da ideologia é o meio mediante o qual se busca reverter seu enrijecimento, torná-la acolhedora para as percepções e para os estados mentais, sejam eles quais forem, sem discriminação, sem rechaço, sem repúdio: Terapia é antônimo de eugenia, de arianismo mental. As teorias sobre a dissociação psicológica e de todos os mecanismos de defesa empregados pela mente são consequência da atividade de uma ideologia rígida que interfere na livre fluência do nosso mundo interior.
   Se é tão evidente a impossibilidade de conhecermos o real externo e interno no sentido absoluto do termo, por que resistimos tanto em conscientizar-nos dessa impossibilidade? Dito de outra maneira, porque tendemos a considerar nossa ideologia expressão acabada da verdade? Porque imaginamos saber exatamente quem somos, o que sentimos, aquilo a que aspiramos, quem é o outro, o que é a vida, dissociando do nosso reconhecimento os elementos distoantes à nossa convicção?
   A esse ponto de extrema relevância voltaremos mais adiante. Amamos intensamente nossa ideologia como expressão acabada da verdade, porque ele representa a certeza, a convicção, o absoluto, a crença na sanidade, na estabilidade da organização ideo-afetiva. Parece que a dúvida, a inconstância, a flutuação constituem-se para nós numa grande ameaça, talvez a maior de todas, maior inclusive do que a ameaça da morte física, porque nos torna imprevisível para nós mesmos e determina uma sensação de loucura. Por oras, entretanto, diremos apenas que qualquer versão da verdade exterior ou interior prolongadamente sustentada tende com o tempo a se confundir com a própria verdade, perdendo sua qualidade de interpretação, do que se valem os sistemas políticos para sua própria perpetuação. Precisamente por isso é fundamental que haja uma constante flutuação das certezas, proporcionando o confronto de uma pluralidade de certezas, o que, por sua vez, equivale ao desenvolvimento da certeza de não haver certezas, no sentido estático e a-histórico do termo. Nesse momento não mais descrevemos categoricamente nossa identidade nem a identidade do outro nem pretenderemos converter as verdades comunitárias historicamente determinadas em verdades definitivas e assim abrimos espaço para a permanente observação da nossa identidade, da identidade do outro e da identidade do mundo nascendo assim o respeito pela pessoalidade e pela história, como algo até certo ponto imperscrutável, impossível de ser cabalmente apreendido, e por isso se fazendo imperativa uma interminável atitude de revisão crítica dos fundamentos de todo o saber.
   A existência de ideologia fechada ameaça sobremaneira aprática terapêutica, aquela pode perverter-se num processo de doutrinação ideológica, num esforço sistemático de conversão de alguém aos valores existenciais de um outro alguém. Nessas circunstâncias as intervenções do terapeuta desfiguram-se em instrumentos de propaganda tendente a estabelecer um determinado estilo de vida; institui-se um sistema de prêmio e castigo: sempre que o terapeutizante se aproximar dos valores do terapeuta, recebe intervenções elogiosas, e seu material é categorizado em maduro, evoluído, amoroso; e toda vez que o terapeutizante se afastar desses valores é execrado como infantil, imaturo ou destrutivo. Resta saber quem é o terapeuta para determinar qual deva ser o modo de viver de uma pessoa, de onde extrai tamanha autoridade. Do infantilismo mental do terapeuta que acredita no mito da sanidade e do modo de ser e de viver perfeito que o terapeuta “conhece”, ou em seu próprio infantilismo psicológico acreditando nessa visão mítica tão conveniente para suas aspirações de poder e para a permanência de estabilidade de sua organização mental, ou seja, de sua ideologia?
   Será a compulsão de consumo de bens materiais uma toxicomania, será a compulsão ao poder uma toxicomania, ou toxicomania restringe-se ao uso abusivo de certas drogas? A heterossexualidade pode representar evidência de submissão cultural e consequentemente incapacidade de ser assumir a própria identidade? O casamento convencional será ele acomodação fóbica aos ideais comunitários ou sinal de maturidade emocional?
   Será o entendimento de um terapeuta bem comportado idêntico ao de um terapeuta menos bem comportado? Haverá divergências de intervenção na dependência da ideologia de cada um? O que é neurose? É aquilo que destoa do nosso sistema de valores? É aquilo que repudiam os nossos preconceitos?


G. NEXOS FLUTUANTES, ERRÂNCIAS TRANSITÓRIAS.


   A noite era escura e no escuro da noite escondiam-se pavores de toda espécie. Na cidade, ruidosa, mal protegida, movimentavam-se sombras ameaçadoras. No corpo, contraído, sem posição para o repouso transcorriam sinistros, sinistros processos biológicos. Na mente o beco, a desesperança. Por toda a parte a morte. E seria ela malvinda?
   Mas a noite passou e em seu lugar veio outra noite, uma mesma noite, escura, ruidosa, porém não mais nem tão escura, nem tão ruidosa, nem mesmo tão noite. Envolvente, meiga, aconchegante, fazia o corpo disposto para o amor. Na desesperança despontava uma confiança serena, no beco uma avenida de perspectivas. Em tudo ressoava a vida. 
   Quem de nós nunca percorreu esses nexos flutuantes, essas errâncias transitórias? Refletem estados emocionais, cada um dos quais proporcionando uma disposição de conexão, inviável para qualquer outro estado emocional. Sendo infinitas as nuanças afetivas e as tonalidades dos sentimentos, infinitas também serão as possibilidades de conexões por elas proporcionadas. Somos assim continuamente remetidos a distintos universos existenciais, resultando daí a inesgotabilidade da vida, seu nunca repetir-se e seu eterno renovar-se: “Viajante, já percorri mim mundos, e há ainda tantos a percorrer”, poderia dizer a poesia nas palavras de algum poeta. Flutuando, conhecemos mil mundos, descobrimos sempre novas conexões, evoluímos na escala das errâncias. Graças a essas flutuações, não somos o que fomos e não seremos o que somos.       
    Por sua característica de estabilidade, de permanência, de constância, as ideologias afetam essas oscilações mentais, modulando-as no caso de ideologias abertas, e modelando-as no caso de ideologias fechadas. A modulação das oscilações, evitando movimentos excessivamente rápidos ou intensos, favorece a evolução na hierarquia das errâncias, porque proporciona à personalidade melhores condições de assimilação e aproveitamento das oscilações. Representa um sistema que acolhe o novo, sua resistência transitória equivalendo a um esforço tendente apenas a evitar-se a confusão de uma acessibilidade precoce. Nesse sistema há liberdade, porém não licenciosidade. As ideologias fechadas, entretanto, fossilizam a personalidade em certos pontos de vista, restringindo as possibilidades de conexão às conexões já estabelecidas. Impedia de flutuar, a pessoa observa sempre o mesmo recorte do real, habitua-se a uma interpretação qualquer e acaba com o passar do tempo, por confundi-la com a verdade, o que amplia ainda mais o grau de fechamento ideológico. Paralisadas as flutuações, a personalidade não pode prosseguir evoluindo na escala das errâncias, estando contida a fluência espontânea. Todas as chamadas doenças mentais podem ser explicadas como uma fixação da flutuação numa meia dúzia de pontos de vista. Impedida sua oscilação, a pessoa engorda suas opiniões, seus modos de sentir e de pensar, mas não evolui. Vinte anos depois, essa pessoa ampliou em muito seu nível de informação, mas sua estrutura de organização, seu sistema de processamento das conexões permanece fundamentalmente inalterado, continuando na essência a mesma pessoa. Fazer análise significa recuperar para a personalidade sua natureza flutuativa, ajudá-la a superar seu apego excessivo pela estabilidade a qualquer custo, recolocando-a no caminho da evolução na escala das errâncias, revertendo sua paraplegia organizacional. A isto a costumamos chamar de processos de elaboração das dissociações, das compartimentações, centro para muitos autores de todas as perturbações do desenvolvimento emocional.
    Falamos de vida, de sua inesgotabilidade, de seu eterno renovar-se. Que estaremos representando por essa palavra vida? Estaremos nos referindo à sequencia dos processos físico-químicos estudados pelo cientista?


H. O PROBELMA DOS DOIS MUNDOS:
A VIDA E O ESQUELETO DA VIDA


    Enquanto caminhávamos pela flutuação das errâncias, abria-se para nós a perspectiva de observar as possibilidades infinitas de conexões proporcionadas pelas oscilações emocionais. Somos, a cada oscilação, remetidos a um distinto ponto de vista, local privilegiado para descortinar-se um determinado recorte da existência, uma particular visão de mundo. Vamos, desse modo, permanentemente modificado nosso ângulo de mirada e adquirindo, por esse meio, a consciência de uma pluralidade de interpretações possíveis, convencendo-nos progressivamente da nossa radical impossibilidade de alcançar a verdade plena, no sentido absoluto do termo. A convicção assim adquirida da inapreensibilidade definitiva do real dissolve as fossilizações ideológicas, desfaz as compartimentações estáticas o que, por sua vez, garante o prosseguimento das flutuações, fator fundamental para a evolução na escala das errâncias, ou seja, para o crescimento mental.
    Ao definirmos ideologia, dizíamos ser ela um sistema de errâncias organizadas, a partir do qual estabelecemos significados, atribuímos valores, hierarquizamos situações, acolhemos ou repudiamos informações. A característica desse sistema seria sua permanência; permanência constante através das flutuações, modulando-as ou modelando-as, conforme fosse um sistema mais aberto ou mais fechado.
    Existe, porém, algo de natureza distinta da ideologia que também atravessa de forma inalterada, imutável, as flutuações emocionais. A árvore do poeta não é a mesma árvore. A árvore é pois, a um só tempo, a vida e o esqueleto da vida, seu substrato, sua substância, sua materialidade.
    Podemos então, no nível descritivo, separar dois mundos, no nível da realidade dos acontecimentos inseparáveis: o mundo da vida e o mundo das coisas sem vida. A vida no sentido físico-químico pertencerá, nesse recorte descritivo, ao mundo das coisas sem vida. (Sendo este um ensaio sobre criação e loucura, não nos ocuparemos das complexidades conceituais do mundo físico-químico).
      Ao mundo da vida pertence o trágico, o épico, o infame, o poético, o patético, o ridículo, o sublime, o cômico, o singelo, o erótico, o místico, o meigo, o macabro, o inefável, o digno, o repulsivo, o ingênuo, o abominável, o insólito, o sinistro, o honroso, o prosaico, o vigoroso, o flácido, o grotesco, o estético, o lírico, o sagrado, o gracioso. É o universo do carma, do ectoplasma, das auras, das imantações, dos magnetismos, das energias positivas e negativas dos fluidos bons dos fluidos menos bons. É um mundo extra-sensorial, invisível, impalpável, inaudível, porém tão consistente, tão concreto como o mais concreto dos concretos. Alguém duvida da realidade do amor, do medo, do ódio ou da angústia?
    O mundo da coisa, por sua vez, é o mundo da concretude sensorial, da materialidade. Não é estático, movimenta-se, mas seus elementos, sólidos, apresentam-se definidos e claramente individualizados. Suas massas, estáveis, locomovem-se num espaço geométrico invariante ao longo do transcurso de um tempo contínuo, sempre igual e que respeita a sucessão passado, presente, futuro (permanecemos num nível newtoniano). A coisa é evidente, está ali, clara, precisa, quase invulnerável às interpretações. Independente do ângulo de mirada é sempre a coisa, a mesma coisa, ontem, hoje, amanhã, sempre. Por tudo isso é fácil nomea-la, atribuir-lhe um nome. Quando falamos a partir do mundo da coisa estamos libertos das metáforas, da metonímia, das expressões poéticas, das figuras de retórica, cada palavra guarda com o elemento que ela designa uma relação quase unívoca; é a palavra técnica do discurso científico, sem brilho, sem murmúrio, sem ressonância, porém matemática e repleta de exatidão. Sendo visível, empírico, linear, o mundo da coisa se torna mais facilmente inteligível, muito mais facilmente inteligível. Sua regularidade, sua possibilidade de ser explicado satisfatoriamente por uma lógica ingênua, retilínea, mecanicista, ninaria, capacita-nos a desvendar rapidamente suas regras de funcionamento. Presta-se, por essas razões, à retenção mnêmica sendo possível reproduzi-lo em nosso interior a qualquer momento, o que permite o prosseguimento de sua investigação. Não é à toa que testemunhamos um fantástico desenvolvimento da tecnologia e das ciências físicas, expressão do poder do homem sobre a coisa, sobre a materialidade da vida. Nesse mundo é perfeitamente possível predizer-se comportamentos, adivinhar-se o futuro.  Nele há amplo espaço para o fazer, possuímos mãos, lógica, tecnologia. Dócil à nossa vontade, esse mundo exerce intenso fascínio sobre as personalidades paranoicas onde predominam o medo, as aspirações de segurança e os desejos de domínio, de controle, de poder, constituindo-se para elas em abrigo e refúgio para as incertezas incontroláveis da vida.
    Diametralmente diferente é o mundo imaterial da vida. Nele nada é concreto, nada é sólido, nada é visível, nada é permanente. Seus elementos, vagos, imprecisos, em contínua transformação não podem sequer ser descritos, só podem ser vividos. O que é nesse instante não é mais no instante seguinte. O mesmo de ontem não é mais o mesmo de hoje, os significados se recusam a se aprisionar em qualquer sistema de entendimento. O espaço, sede do movimento, ora se alarga, ora se alonga, ora se curva, ora se torce. O tempo é descontínuo, arrítmico, às vezes insuportavelmente lento, outras vezes vertiginosamente rápido. Passado, presente e futuro confluem numa pluralidade de combinações e sucessões, abandonando sua sequencia cartesiana. O passado longínquo superpõe-se por vezes ao presente, este confunde-se outras vezes com o futuro. Nesse mundo de ambiguidades em transformação, a única constância é a flutuação, a única previsão a imprevisibilidade. Não existem regularidades, os nexos estabelecem-se regidos por critérios caprichosos, obscuros e resistentes a abrirem mão de seu mistério. Sistemas de lógica ingênua, reflexões mecanicistas, raciocínio lineares ou binários, tão fecundos para o entendimento da materialidade da coisa revelam-se pateticamente incapazes de desvendar o mundo da vida. Sua aplicação determina uma visão transfigurada, diagramática, bidimensional, uma autêntica caricatura da existência. A palavra precisa, exata, matemática do discurso científico, mostra-se agora fútil, sem brilho, vazia de significados. No discurso da vida a palavra adquire uma significação flutuante e, como a vida, é sempre inédita e irreproduzível: a palavra viva é invariavelmente dita pela primeira e pela ultima vez. Só o seu esqueleto sonoro deixa reproduzir, nunca seu rumor, sua efervescência. Poético, simbólico, metafórico, o mundo da vida não se presta à retenção mnêmica, porque não se pode lembrar daquilo que ainda não veio, e também por isso mesmo não pode, senão diagramaticamente morto, ser representado por uma teoria. Somente a criatividade, o pensamento intuitivo, a inteligência sensível podem ter acesso ao mundo da vida e descobrir suas inesgotáveis possibilidades de conexão. Nele não possuímos tecnologia, estamos sem mãos, é escassa a possibilidade de manobra. Não é por tudo isso o lugar mais cômodo para a psicologia da segurança, do poder, da previsibilidade e do fazer pragmático.
    Nas chamadas doenças mentais a personalidade tenta coisificar seus processos psíquicos e os processos psíquicos do outro apreendendo-os através de uma ótica mecanicista, e de uma lógica ingênua, transfigurando assim a compreensão dialética da existência. Abre-se uma brecha entre a pessoa e sua capacidade de estender sua vida de pessoa e anuncia-se iminente o desastre psicológico, estando a personalidade totalmente perplexa e incapaz de compreender-se na extensão d sua complexidade. O empenho da coisificação costuma ser a origem do que chamamos de ideologias fechadas. Nelas ocorre um sistema de nexos mecanicistas, binário, maniqueístas. É a fonte de inumeráveis transtornos mentais.


I. A MEMÓRIA:
O DEPÓSITO DAS OSSADAS


   Quando lideramos com o mundo físico, escassos são os problemas de compreendê-lo. Sua solidez, a regularidade de suas regras de articulação, a facilidade em dar-lhe nomes, tudo isso facilita a sua memorização. Usando nossa memória, acionada por uma lógica mecanicista, também memorizável, alcançamos suficiente conhecimento sobre o mundo da coisa.
   Quando, entretanto, lidamos com o mundo mental, deparamos com sérias dificuldades. Sendo seus elementos massas imateriais em constante transformação, impossibilitam sua apreensão pela memória. A vida é uma sucessão inesgotável de conexões e não pode por isso ser senão criativamente apreendida, pois não é possível lembrar-se do novo. Desde o ponto de vista da memória, todos os acontecimentos não passam de meras reedições de acontecimentos já vividos, sendo essa a essência da teoria dos objetos internos, da teoria da fixação da libido em modos primitivos de gratificação, da teoria da transferência (o presente é mera reedição do passado), o tripé do edifício teórico para compreensão dos processos terapêuticos. Fazer terapia é por esse motivo o empenho de colocar criatividade onde antes havia memória, é romper com o tradicionalismo da compulsão à repetição. Memória é tradição e criatividade seu reverso.
    É claro que não estamos chamando de memória à capacidade de reter as impressões que percorrem nosso interior. Não fosse essa capacidade, seríamos uma sucessão desarticulada de instantes caóticos sem nenhuma perspectiva de organização. Não haveria aprendizado, não haveria pensamento, não haveria criatividade, não haveria conceitos fundamentais como presente, passado e futuro, dentro e fora, mim-mesmo e não-mim-mesmo; não haveria nada. Estamos chamando de memória não a essa função básica do psiquismo, mas àquela macabra região mental onde se acumula aquilo que algum dia foi vida, mas não mais o é; por isso a chamamos de depósito das ossadas.     
    Essa necessidade de delimitar o significado da palavra memória conduz-nos a algumas reflexões. No mundo mental não existem coisas e por isso as palavras representam fenômenos confluentes, superpostos, inextricáveis. A inteligência não é uma coisa e o raciocínio outra coisa claramente diferenciada. O mesmo se dá quando empregamos palavras como intuição, sensibilidade, criatividade, sentimentos, emoções, impulsos, vontade, afetos e tantas outras. Essa é mais uma razão pela qual o pensamento mecanicista, tão eficiente no trato com coisas bem delineadas e individualizadas, mostra-se tão inoperante ou deformador quando aplicado ao entendimento mental, constituindo-se num dos principais elementos obstrutores da evolução na escala das errâncias.


J. A CRIATIVIDADE:
O ANTÍDOTO DA ERRÂNCIA


    Definimos loucura como a errância do nexo, o desconexo e a criação como a capacidade de descobrir e estabelecer conexões, sendo, portanto, sua contrapartida, seu antídoto.

   Dividimos também, para efeitos descritivos, o mundo em dois: o mundo da vida e o mundo da coisa, cenário do drama da vida. No mundo da coisa, não há lugar para o inédito, no sentido mais radical do termo; existem apenas variações quantitativas das mesmas combinações, repetindo-se as regras de conexão com uma regularidade matemática, possibilitando dessa maneira ampla margem de previsão sobre o que está para acontecer, sobre o porvir. A memória, complementada por uma lógica mecanicista binária, revela-se aqui função mental de inquestionável competência para o entendimento desse universo, cuja materialidade o torna presa fácil para as manobras da vontade, arrebatando por tudo isso as personalidades dominadas pelo medo, pelo desejo de sobrevivência a qualquer preço, pelas aspirações paranoicas de poder e segurança, protegendo-as das incertezas e imprevisões do mundo da vida. Sobre esse mundo da coisa nosso poder, mesmo auxiliado por toda nossa tecnologia, não é ilimitado, mas nele conhecemos com precisão relativa nossos limites, decorrendo daí uma razoável capacidade de previsão, ambição máxima da paranoia.
    Mas o mundo da vida está aí e dele não podemos fugir completamente, tornando-se impossível negar a intensa concretude de sua imaterialidade: queiramos ou não, temos de enfrentar a realidade da existência dos nossos sentimentos. O uso da memória e da lógica mecanicista binária esbarra em limites. Não somos também apenas o medo da morte e o desejo de sobrevivência não importa a que preço; somos igualmente amantes da vida e repudiamos nossas tentações de estabilidade exorbitante. Erguem-se por isso aflições claustrofóbicas, sensações asmáticas, tédio, contraturas, musculares, tensões, epidérmicas, congestionamentos digestivos, acusando nossa repulsa. Aspirações de renovação, de liberdade, de soltura, de descontração, fazem-se notar, contrapondo-se ao horror instintivo à instabilidade mental. Este horror instintivo à instabilidade mental talvez seja, já o dissemos, o maior de todos os medos, maior mesmo que o medo da morte física. Evitar a instabilidade resume todo o esforço paranoico, e pode ser apontado como o responsável por todos os transtornos mentais.
   A criatividade representando o aspecto da mente voltada para a descoberta de conexões inéditas ameaça a organização dos nexos já estabelecidos, configurando-se assim em grave ameaça para a estabilidade mental, o bem supremo da mente aflita. Decorre daí uma atitude de intensa ambivalência para com ela: é ardorosamente amada pelos ímpetos de vida, é visceralmente odiada pelas forças da tradição. Auxiliar a substituição da memória pela criatividade, essa pode ser uma boa definição do que seja fazer terapia. Onde havia memória, que haja imaginação criativa, onde havia lógica mecanicista, que haja sensibilidade intuitiva. Todas as chamadas doenças mentais, desde as mais familiares até as consideradas mais extravagantes, representam sempre umas hipertrofia da memória sobre a improvisão, um agigantamento da lógica sobre a sensibilidade, transfigurando progressivamente a dialética mental por transformar o processo reflexivo da pessoa num processo reflexivo mecânico, incapaz de acompanhar as sinuosidades do processo afetivo. A pessoa, cada vez menos capaz de entender seus movimentos psicológicos, acaba reduzida à perplexidade diante de si mesma aproximando-se do desastre psicológico.
   Como qualquer processo mental, a criatividade transcorre ao longo do tempo. Isto quer dizer que o recorte sobre o qual ela opera requer uma exposição por um prazo determinado para poderem ser apreendidas suas conexões. Existem conexões que necessitam um tempo de exposição curto, enquanto outras requerem um tempo de exposição mais longo. Algumas conexões só se revelam após anos e anos de exposição, nos ensina a experiência terapêutica, outras precisariam de um prazo tão longo, que não cabe no período de duração de uma vida. Essas considerações nos remetem a reflexões sobre a velocidade e o ritmo nos quais a mente se movimenta: a velocidade mental e o ritmo das flutuações influem decisivamente na estruturação da personalidade, porque determinam que conexões poderão ser apreendidas e que conexões não poderão ser apreendidas. Se a abrangência, a universalidade, a visão de conjunto sem perda de profundidade, forem o equivalente de evolução na escala das errâncias, então impõe-se a possibilidade de ajustamento da velocidade e do ritmo às necessidade cambiantes. Mas como ritmo e velocidade tendem a constituir-se numa das invariantes mentais, a ideologia da estabilidade a qualquer preço cerrará oposição às suas variações necessárias. Vários transtornos mentais devem-se à obstinação do ritmo e da velocidade, aos graus ajustados pela tradição, pelo hábito e pelo costume. Constituem-se assim personalidades velozes, elétricas, dinâmicas, porém superficiais, inconstantes, distraídas, ou então se estruturam personalidades tão lentas oscilando com tamanho vagar de um ponto de vista a outro que, quando chegam no segundo, esfumou-se já o conhecimento do primeiro, não havendo assim possibilidade de integração, impondo-se repetidamente o reinício do processo, transportando-nos a uma verdadeira cena de pesadelo onde ocorremos sem sair do lugar ou somos obrigados a refazer alguma tarefa que nunca conseguimos completar.
    O clima emocional onde a pessoa prevalentemente se situa para observar a vida representa também outro fator fundamental para a estruturação da personalidade. Quem vive prevalentemente na tristeza ou na ternura descobrirá um mundo muito diferente de quem vive no entusiasmo ou na alegria a maior parte de seu tempo. Pelo olho da inveja ou pela retina do ódio enxergamos uma vida bastante distinta daquela que vemos pelo prisma do amor ou pelo prisma da fraternidade. Como será o mundo do lírico, do erótico ou do místico? Será o mesmo do materialista, do cientista ou do tecnocrata? Para o crescimento mental, tornam-se imperativas, pelas razões acima enunciadas, as oscilações emocionais. Que não haja discriminações a nenhum tipo de sentimento, que se tenha a mente disposta a acolher todos os estados mentais, sejam eles quais forem. Que o medo, a angústia, a depressão, o tédio sejam tão amado quanto a alegria, o júbilo ou a eloquência. Que o ódio, a inveja, o sadismo, o rancor despertem o mesmo encanto que a ternura, a serenidade, o amor. Fazer terapia é empenhar-se nesta direção.
    Todas as chamadas doenças mentais representam sempre discriminações emocionais, recusa de acolher certos elementos mentais que assim permanecem dissociados, primitivos, alheios ao convívio de nossa mente consciente. Nossa ideologia acolhe certos sentimentos e repudia outros dificultando as flutuações livres da vida, impedindo a transformação de nossas aspirações primitivas em aspirações mais evoluídas, o que só seria possível se com aquelas adquiríssemos intimidade. Mas nossos preconceitos impedem essa intimidade, fazendo-nos estranhos a nós mesmos.
   A investigação da altitude da abstração onde vive uma personalidade constitui-se noutro elemento fundamental para entendermos seu modo de ser. Algumas conexões só se descortinam, se observadas de elevadas abstrações, enquanto outras só se deixam apreender, no convívio imediato com o concreto. A excessiva permanência em abstratas altitudes determina uma visão algo teórica, pobre de experiência concreta; uma exorbitância experiencial, contudo, amplia a biografia pessoal, o porte das realizações, sem uma correspondente ampliação da personalidade, ainda pobre de percepção mais finas e sutis. A oscilação dos níveis de abstração representa por isso mais um fator decisivo para a evolução da personalidade. Fazer terapia é o empenho de vir a amar a flutuação das altitudes, desde as mais concretas até as mais abstratas.
    Os níveis de consciência, a luminosidade na qual a mente prefere permanecer, interferem também no tipo de criatividade predominante e, por consequência, na estruturação da personalidade. A criatividade científica, por exemplo, é uma criatividade solar, florescendo de preferência nos estados de intensa lucidez. Já a criatividade artística inspira-se melhor nos estados crepusculares de consciência, a excessiva lucidez construindo-se numa restrição à sua fluência. O estabelecimento de um certo tipo de conexão reclama estados oniróides de consciência ou até mesmo oníricos; todos sabemos que somente o sonho nos proporciona uma qualidade particular de entendimento, e existem facetas da vida que só percorremos enquanto dormimos e seja esta talvez uma das razões pelas quais necessitamos a cada noite sonhar. E as vísceras, serão elas restritas à elaboração da vida apenas no seu sentido físico? Quem elabora nossos humores, nossos humores poéticos, nossos humores trágicos, nossos humores dramáticos? Será unicamente o cérebro o metabolizador dos nossos fluidos mentais? E como opera o cérebro essa metabolização transformativa? Nossa doçura não precisará ela, sem nenhuma metáfora, de nossa criatividade hepática? A quem compete a resolução do nosso sufoco, a oxigenação do nosso fechamento: à nossa criatividade pulmonar? Qual a relação entre tuberculose e poesia? Entre hepatite e amargura? Entre melosidade e diabete? Serão as chamadas doenças, disfunções limitadas ao nosso corpo físico-químico? E quais serão as disfunções do corpo aveludado, do corpo erótico, do corpo estético? Fazer terapia é o empenho de amar-se a flutuação das luminosidades, desde as mais solares até as mais obscuras.
    Dessas considerações impõe-se uma conclusão: não podemos hierarquizar nenhuma condição mental porque todas elas são fundamentais e complementam-se umas às outras. Fazer terapia é abalar as hierarquizações ideológicas, discriminatórias de fenômenos mentais. Ser terapeuta é poder amar a paixão com a mesma intensidade que a glacialidade intelectual, a competitividade com o mesmo respeito que a fraternidade, a abstração tanto quanto a emoção, a angústia tanto quanto a serenidade, a depressão tanto quanto a alegria. Cada um desses elementos possui a sua beleza intrínseca e representa o único ponto de vista através do qual a vida permite conhecer determinadas facetas de sua globalidade. Vida não é amor, não é bondade. Vida é muito mais do que amor, do que bondade. Vida não é também nenhum modo particular de viver culturalmente consagrado. Vida é muito mais do que um modo particular de viver culturalmente consagrado.


K. A DIREÇÃO PARA ONDE SE MOVIMENTA A VIDA.


    Ao longo dessa exposição viemos repetindo e o faremos uma vez mais (compulsão à repetição?) serem a imprevisibilidade, o incessante movimento e a invariável originalidade, os elementos que caracterizam a vida. Nada é o que foi, tudo continuamente se transforma, não há lugar para repetições.
    Cabe nesse momento uma pergunta: quais são as forças impulsionadoras dessa fluência, qual a energia que a aciona? Muitas são as palavras que poderíamos escolher: libido, pulsões, instintos, aspirações. Escolheremos a palavra desejo; da qualidade dos desejos predominantes dependerá a direção para onde se movimenta a nossa terapia.
    Freud realçou a corporalidade desses desejos e desenvolveu sua teoria sobre o homem fundamentado nessa crença. Melanie Klein salientou o sadismo e a inveja e explicou o homem a partir dessa convicção. Fairbairn e Winnicott por sua vez encontraram na inclinação para o encontro amoroso a essência do desejo humano. Afinal quem é o homem? É o homem libidinoso de Freud? É o homem invejoso e sádico de Malanie Klein? É o homem terno de Fairbairn e Winnicott? Ou será nenhum deles ou serão todos eles?
    Somente Freud era Freud e, por isso, somente Freud poderia ver o homem que somente Freud poderia ver. E é exatamente porque não somos Freud, porque não possuímos o mesmo ponto de vista de Freud é que interessa-nos sua angulação, sua diferença. Porque o homem enquanto pessoa pode ser definido e compreendido por qualquer teoria bem formulada, o homem enquanto pessoa não pode ser compreendido e definido por nenhuma teoria. Se pleitearmos aproximação ao homem pessoa, impõe-se uma constante liberdade (não licensiosidade) de flutuação teórica, um estado permanente de criatividade reflexiva. Nenhuma teoria fechada aprisiona a vida. A vida não é aprisionável e por isso não é senão precariamente teorizável. Interessam-nos, portanto, muito e muito pouco as teorias existentes, inclusive as nossas próprias. Fazer terapia talvez seja empenhar-se no sentido de renunciar à estabilidade teórica abrindo espaço apara a flutuação dos modelos referenciais.
    À guisa de proporcionar coerência a essa exposição, sem nenhuma intenção de conferir prioridade a qualquer maneira particular de organizar os desejos, vamos apresentar uma forma possível de organização, tão possível quanto várias e várias outras.
    Organizaremos os desejos em torno de dois polos. De um lado, os desejos de sobrevivência, de segurança, de vida a qualquer custo; é esta a região do medo excessivo, da vocação paranoica para o poder, do imperativo para o controle sobre o que ainda não veio. Do outro lado, oposto a esse, estão os desejos de vida no sentido existencial do termo, de aventura, de expansão. O controle, o poder, a segurança estão aqui relegados a um segundo plano; o presente não se reduz à preocupação pelo futuro, amar não apenas investir; existe também lugar para a gratuidade, para o interesse desinteressado.
    Conforme haja um predomínio de uma vertente sobre a outra haverá um distinto desenvolvimento do sistema de conexões, uma distinta direção para onde se movimentará a vida.


L. A TERAPIA ORGANIZADA EM TORNO DA MORTE.


   Quando numa personalidade predominam os desejos de segurança, controle sobre o futuro e poder dobre o presente, toda a mente organiza-se em torno da sobrevivência a qualquer custo, relegando-se a qualidade do viver a um segundo plano. Evitar os riscos, evitar as perdas, evitar as ameaças resumem a razão do existir. Parece ironia, mas é exatamente o excessivo horror pela morte o responsável pelo fato dessa terapia gravitar em torno da morte, porque é sobretudo uma terapia contra a morte e não a favor da vida. Sobreviver torna-se mais fundamental do que viver.
   A verdade importa menos que a serenidade, ocorrendo por isso uma tendenciosidade no descobrimento e estabelecimento de conexões. Orientada para a segurança, regida pela ânsia paranoica do poder, a criatividade reduz-se à condição de uma instância oportunista que só apreende aquilo que em termos imediatistas parecer do seu interesse. A aflição, a impaciência, a sofreguidão, deflagradas pelo mais leve transtorno, determinam ainda que a criatividade apresente-se prematura e incapaz de sustentar-se mais prolongadamente, resultando daí uma relativa incompetência para estabelecer nexos que requeiram maior permanência de exposição á reflexão e mais nitidez de percepção, desaparecendo a sutileza, a finura, a delicadeza.
    O mistério é vivido como macabro, o vago como sinistro; o espanto conduz ao terror e à necessidade de dominação. Urge extingui-los a qualquer preço, mesmo que isto represente a perda entediada do interesse pelas coisas, ou a substituição da busca da verdade pelo delírio conveniente.
    Aos poucos a criatividade acaba substituída pela memória e pela ingênua lógica mecanicista. A impaciência também conduz à busca prematura de auxilio externo, ensejando excessiva dependência e um escasso desenvolvimento da inteligência sensível, fator fundamental para a evolução na hierarquia das conexões.
    Abre-se então uma brecha entre o processo reflexivo, reumático, e sua capacidade de compreender o ondulante processo existencial. A consciência da errância provoca pânico e é por isso odiada, acabando por se extinguir, fertilizando o solo para o florescimento da esterilidade das ideologias fossilizantes. Cristalizam-se as flutuações, interrompe-se o crescimento, instala-se a obesidade psicológica.
    Nasce um homem materialista, pragmático, dominado pela ânsia do poder, competente para a dominação, mas totalmente incapaz de intercâmbios com a vida. Rígido, fanático, elimina a dúvida pela arrogância, depõe a criatividade pela lógica. Nasce assim o não-homem, o homem-coisa, o anti-homem.


M. A TERAPIA ORGANIZADA EM TORNO DA VIDA.        


   Se houve, entretanto, na organização dos desejos um predomínio do interesse pela qualidade do viver, totalmente distinto será o desenvolvimento da personalidade. Ocorrerá nessas circunstâncias uma terapia voltada para a vida: viver importa mais que não morrer.
    Ímpetos de expansão, de aventuras, de descobrimento, dominam o panorama mental. As flutuações de aterrorizantes despertam o encanto, o deslumbramento. A criatividade descontraída, volta, lança-se sobre o mistério, sobre o estranho, sobre o desconhecido, não com o propósito de dominá-los ou extingui-los pelo conhecimento, mas sim com o desejo de com eles ganhar intimidade.
    A inevitabilidade da errância é bem-vinda, não havendo oposição em manter acesa sua consciência. Constitui-se assim um circulo em expansão permanente, ficando garantida a continuidade das flutuações e consequentemente a evolução na escala das conexões. “Viajante, já percorri mil mundos, e ainda há tantos a percorrer”, não temerá afirmar o homem cuja terapia se organizou em torno da vida e pode por isso no seu leito de morte murmurar: “Pena que eu morra agora, quando há ainda em mim cem anos de música”.


N. “REQUIESCAT IN PACE”


   Afirmamos ser a criatividade o antídoto da loucura e a memória seu reverso. Por questão de coerência, só nos resta sepultar no esquecimento o que foi dito, abrindo o espaço para o ainda não dito.

   A essas ideias, a essas palavras que até há pouco foram vida, requiescat in pace.   

terça-feira, 12 de junho de 2012

OS EXPERIMENTOS DO CECOP – CENTRO DE CONVIVÊNCIA DA PESSOA.



   Mais um texto que encontro arquivado em minhas gavetas. Sem data e sem nenhuma referência onde foi apresentado, pela linguaguem da qual me utilizo, não tenho muita dúvida que deve ter sido no início dos anos 90 em algum colóquio de Psicanálise. Neste período andava dialogando bastante com psicanalistas pertencentes a várias escolas de psicanálise. O Centro de Convivência da Pessoa - CECOP, instituição criada por mim e por mais quatro colegas, veio ocupar um espaço vago em Recife para cuidar de psicóticos. Esta instituição foi inspirada na Escola Experimental de Bonneuil, na França e na Casa das Palmeiras, Rio de Janeiro.
Na medida em que suscitou muita polêmica, ela veio a tornar-se um modelo de envergadura terapêutica produzindo os mais diversos interesses.
Estamos publicando o texto sem nenhuma correção ou acréscimo. Da minha parte, o considero nem tanto datado assim... 



Vida e Criação


   Resumo - O trabalho experimental do Centro de Convivência da Pessoa – CECOP, fundado em 1986, pelo Terapeuta Ocupacional Luiz Gonzaga P. Leal, oferece locais e momentos de criações diversas. Momentos suscetíveis de produzirem efeitos terapêuticos, sem que o valor destes seja o seu objetivo. Realizações, produções coletivas dentro de um circuito de mudança e de reconhecimento do exterior. Possibilidade de trajetórias pessoais, agente-ator-autor de sua própria história a ser construída.
  
   Palavras-chaves: Momentos de criação – Efeitos terapêuticos – Produções coletivas – Agente – Ator – Autor.

   Nossa proposta não se inscreve em um projeto puramente terapêutico, mas no de uma experiência de vida. O Centro de Convivência da Pessoa, que foi fundado em 1986, acolhe um certo tipo de paciente com grande dificuldade – isto dentro de uma perspectiva de não segregação, daí o lugar específico que esse centro ocupa, como um local que se apoia em uma busca e uma luta por uma política diferente frente à loucura.
   O Centro de Convivência da Pessoa pela sua estrutura e suas referências a noção de cenário oferece locais e momentos de criações diversas. Momentos de criação que podem produzir efeitos terapêuticos, sem fazer do valor deles o seu objeto. As estruturas, as instalações estão ali para garantir um espaço de jogo, de fantasia e de invenção dando lugar a diversas produções que, dentro de um circulo de mudança e de reconhecimento fora da instituição, assumem o valor de criação artística. Nas oficinas: pintura, teatro, escultura, realização de um desenho animado têm pretexto terapêutico, o objetivo é de expor, de apresentar, de brincar e de levar a seu termo um trabalho coletivo. As referências de trabalho são MATISSE – RODIN – GROTOWSKY – ARTAUD – e profissionais dessas disciplinas.
   Estes tempos de criação constituem um trabalho coletivo concernente ao campo social e cultural. O ato criador, se existe um, é tomado dentro de uma linguagem comum, uma escrita tanto quanto uma maneira de agir. E enquanto forma de trabalho necessário à realização do homem se inscreve no interior de uma prática social e de uma transformação de uma certa realidade, que nós identificamos como aquilo que toca à criação.
   Todavia, se o objetivo que nós nos propomos é de levar a seu termo final o trabalho empreendido, confrontando-o aos olhos de um público, isto não impede que é dentro da preocupação de criar as condições necessárias ao advento de uma palavra apropriada. Nossas tentativas é de fazê-lo nascer como sujeito face a um “fazer”.
   Para melhor compreender o que está em jogo nessas diversas criações, parece-me importante apontar alguns elementos específicos da vida do Centro, por quanto eles podem engajar um certo processo dinâmico dentro dessa instituição.
   Um desses elementos é de levar em conta a dimensão histórica. A instituição clássica anula a possibilidade de uma historicidade própria, não deixando aos indivíduos outra alternativa do que serem agentes de uma história cuja cena se situa alhures. O Centro, de início, não teve outra prioridade do que um projeto nascido de um encontro entre a psicanálise, o movimento de antipsiquiatria, a Terapia Ocupacional e o desejo daquele que foi seu fundador (Luiz Gonzaga P. Leal). A postura atual corresponde à tomada de consideração de uma história (história singular e própria de cada paciente que passam ali algum tempo). Por exemplo, o fato de representar nosso trabalho em um teatro nasceu da palavra de um paciente, que o desejara, palavra ouvida naquele momento da história do Centro, que conduziu a uma reflexão teórica sobre a noção de abertura. Assim sendo, a possibilidade de serem também os agentes de uma história futura, que retoma um momento de sua própria história é dado àqueles que ali vivem. O que permite uma leitura é a colocação de um enquadramento, não como regulamento institucional, mas como estrutura permitindo pontos de referência e questionamento. É também para garantir a permanência de um trabalho coletivo dentro do centro, permitindo as evasões individuais, até mesmo as fugas e as propostas de um trabalho externo. As oficinas, pela sua regularidade no tempo e no espaço participam desse enquadramento – enquadramento deve ser entendido como um campo de linguagem. As produções individuais nele se inscrevem como mediações, trata-se de superá-las a fim de inseri-las em uma articulação simbólica através dos ritos e dentro de uma transformação. É uma dimensão essencial, por quanto permite evitar uma situação imaginária onde tudo pode se ligar do paciente aos cuidadores, sem qualquer interferência de terceiros. Garantia contra a angústia, acha-se ali também para ser continuamente interrogado em sua permanência.
   Esta noção de enquadramento demonstra bem que o trabalho realizado dentro e fora da instituição, em si mesmo não tem forçosamente valor, mas se reveste de um sentido em relação àquele pano de fundo, onde dentro do jogo da ausência e da presença um sujeito pode emergir. Chegamos assim à noção de abertura que descortina a possibilidade de modificações dialéticas. Uma prática da abertura está elaborada: ao invés de oferecer a permanência, o enquadramento da instituição oferece desde então uma proposta de permanência de abertura para o exterior, de brechas de toda espécie. O que permanece é um local de recesso, mas o essencial da vida se desenrola em um outro lugar. Nesta alternância, é a oscilação entre um projeto e uma fuga que está em jogo. É na organização desse tipo de inscrição, dentro de uma ordem social, e do discurso que a sustenta que o paciente vai evoluir em uma história futura.
   Nós estamos atentos, para à escuta do discurso coletivo. O que pode se representar no ato “precede” o fazer. É fundamental, e deve ser reintroduzido no discurso que existe ali (da mesma forma, aliás, naquilo que precede a invenção).
   Dois exemplos de realização de oficina de expressão artística vão nos servir para apreender o processo de nossas propostas criativas através do desejo dos cuidadores. Proponho-lhes retomar o exemplo da peça “Alice no País das Maravilhas”, já representada em diferentes teatros, através de diferentes montagens. E a realização de um desenho animado atualmente projetado em sala.
  
   Tomemos exemplo do teatro:
É a partir do olhar ingênuo de Alice, que não se surpreende com coisa alguma, diante do insólito do mundo onde ela evolui, no olhar dos espectadores, que se situa nossa ação teatral. Nós nos apoiamos aqui no trajeto efetuado por um paciente para ilustrar qualquer palavra de que se trata ali e quais são os seus efeitos.
“Após sua longa queda do terreiro do coelho, Alice tentou em vão abrir as portas da grande e baixa sala onde caiu. Ela retorna tristemente ao meio da sala, perguntando a si mesma como poderia sair”. Percebendo este relato, Carlos se levanta bruscamente e grita.
- “Eu quero sair, deixem-me sair”. Ele bate com a cabeça na parece, derruba os outros participantes.
- “Eu, eu tenho medo. Deixem-me sair”, grita ele.
Adultos atores fazem então eco a seu grito
- “Alice quer sair. Ela tem medo. Está escuro”, e nós martelamos com os punhos as paredes.

Carlos parece acalmar-se por um momento, depois ele repete já com menos violência: - “Eu quero sair. Alice quer sair, tenho medo... Alice tem medo”.
Depois, muito calmo, ele repete conosco: “Alice tem medo, ela quer sair”, mas desta vez inteiramente ao nível do jogo do ator.
  
   Isto se passava no momento do trabalho propriamente dito, na oficina de teatro do Centro. Quando foi representada em público, Carlos participou, gritando conosco – “Eu quero sair”, mas do lugar de Alice, desta vez.
   Foi depois dessa sessão de trabalho que os pais nos interrogaram sobre o que havia se passado com seu filho.
- “Ele fala sempre do teatro. Após sua última sessão, ele esqueceu que tinha medo da escuridão. Pela primeira vez em sua vida desceu ao porão”.
  
   Ato que só o pai tinha o hábito de fazer para ir buscar vinho. Assim, Carlos aceitou representar Alice e representar do interior das convenções do teatro. A partir de uma encenação que nada tem a ver com o normal e o patológico, inscrevem-se efeitos que nós chamaríamos de terapêuticos. A partir dessa data, Carlos apresentava-se, sempre com as mesmas palavras: “Haverá teatro hoje? Posso ir? É certo?”.
   Desta forma, esse paciente representando do lugar de Alice com seu medo, começou a dominar esse medo, deslocando-o: o que merece ser evocado é o domínio adquirido pelo paciente, em função do jogo. Na cena do teatro, Carlos chega com o real de seu sintoma, medo que se traduz no nível do corpo e de sua destruição. O grupo acolhe este medo trazendo então a única resposta possível a esta realidade manifestada por Carlos, isto é, dando um sentido outro que no medo experimentado, isto por um discurso que vem de fora. (A trama do texto é Caroll). É esta intervenção que permite a Carlos superar e deslocar seu sintoma e desta forma aceitando dar-lhe um sentido universal, a saber aqui o sentido que uma menina Alice, sentiu e que o grupo pode acolher.
   Sob a pressão das convenções teatrais, encontramos aí tudo o que nos diz FREUD, quando afirma que é na medida onde o drama subjetivo está integrado em um mito com um valor humano entendido, que o sujeito se realiza. A partir daí, Carlos descobrirá que seu jogo tem efeitos sobre os espectadores, e estes efeitos, por sua vez, tornar-se-ão simbólicos.

- “Eu não quero mais representar no centro, nos diz ele”. Sim, por que?

“Isto não impressiona as pessoas, quero que tenha espectadores” e isto num tom inteiramente diferente daquele que lhe é habitual e onde falava de si na 3ª pessoa.

   Foi após uma representação de pleno êxito, que seria observado que pela primeira vez em sua vida, Carlos poderá reconhecer nele a dimensão do jogo em seus atos. Com efeito, um dia, quando ele então tentava jogar-se debaixo de um carro, parou bruscamente, e olhando as pessoas que se preparavam para intervir, declarou: “Mas eu estou brincando de fazer medo, de me fazer medo”. O que ele pôde adquirir no palco, o saber investir nesta cena como imaginária, após tê-la vivido como real, será em seguida transportado para sua vida diária. 
   E essa aquisição parece ser nada menos que uma estruturação da imaginação necessária á instauração dessa série de equivalência em um sistema onde os objetos se substituem uns aos outros. Aí está, quer nos parecer, toda a força e fragilidade de um tal trabalho, força por quanto é pelo fato que a cena pode ser investida como imaginária, e não como real, que um efeito de simbolização é possível, fragilidade pois o espectador percebe como é preciso pouca coisa para que todo este jogo oscile do lado real. Aconteceu, quando de representações, que esse deslizamento para o real ficasse esboçado: “Eu quero sair”, grita Carlos. No momento do processo, esquecendo que se representa Alice.

“Silêncio, diz o rei, ou eu faço evacuar a sala do tribunal”.
“Ah, sim”, responde ele, retomando então um lugar no jogo.

   Nos vestígios dos passos de Alice, sendo que não é indiferente que eles se inscrevam inteiramente na cena do sonho, o que abandona Carlos com seu medo do rei? “O teatro, escreve ARTAUD, deve ser considerado como o substituto não da realidade cotidiana... mas, de outra realidade perigosa e típica onde os príncipes, como os delfins, quando mostram a cabeça, apressam-se em voltar para a obscuridade”.
   Desses olhares cruzados, a partir dos quais cada um tem um lugar, que pode trocar com outro, isto é ao nível da troca entre ator, espectador, que se representa a realidade concreta do acontecimento teatral, isto em nome das convenções do teatro.
   A obra teatral não é o texto, o livro. O teatro tornaria de preferência sensível, o que na página impressa só pode se traduzir por brancos ou ausência de pontuação, reticências... etc. Ao término desse trabalho coletivo, parece realmente que a criação é secundária a um drama secreto, a um aniquilamento primeiro, onde o universo é derrubado. Nós trabalhamos com os sintomas, as crises, os atos criativos, mas para nós, o essencial continua sendo a escrita do sujeito e de seu desejo.
   O outro exemplo é o da realização de um desenho animado. Ele acentua talvez a melhor noção de intencionalidade, na qual é preso o paciente para agir e criar.
   Quando por ocasião de uma conversação, a ideia de fazer um filme foi levantada e retomada por um paciente: E por que não um desenho animado? A partir daí, uma longa aventura rica em criação de toda espécie, nasceu. Nós nos dirigimos a profissionais, para nos iluminar com a sua experiência. Entre eles, Sávio Furtado, profissional de cinema com grande experiência em curtas-metragens.  A ideia de uma verdadeira realização mobilizou muitos pacientes, e nove dentre eles tornaram-se autores. Um período durante o qual a introdução da câmera, do visor, do: “Silêncio: estamos gravando”, impôs um verdadeiro convite à criação. Criações individuais de desenhos, pintura, colagem a partir de cenários inventados pelos próprios pacientes. No final, apareceu um filme de ficção em cinema de animação.
   Não me estenderei mais, por enquanto ainda teria muito a dizer sobre o desenrolar dessa oficina de criação. Mas, o que é interessante sublinhar, é a maneira como se propõe o paciente a sair de sua PASSIVIDADE; Passividade feita de sintomas, até mesmo de inibições, na qual ele está preso, fazendo entrar sua palavra, suas fantasias, seu jogo, seus fantasmas através de desenhos e pinturas, em uma criação que transforma a realidade deles. Eles assumem um outro sentido, um outro destino por ordem dessa escrita animada e filmada. Inscrição dentro de outro campo, de outro contexto. Não se trata aí de solucionar os conflitos. A tentativa é ir além de sua própria história dentro de uma proposta ativa onde os efeitos “hic et nun”, escapam a eles e a nós, em proveito de uma realização coletiva.
Tornando-se atores, não se poderia dizer que se tornam efeito de seu próprio ato?
Com o ato criativo, o autor mostra à distância um prazer que não investe mais seu corpo.
Então, para concluir, criar alguma vez curou?
   E a outra pergunta é: se a arte é terapêutica, a terapia ocupacional através da arte não esvaziaria a arte de seu conteúdo e de suas potencialidades? Por enquanto, a julgar de nossa prática teatral, o levantamento do recalque que acompanha o efeito terapêutico não sucede absolutamente à produção da obra.
Terminemos com esta frase de PABLO PICASSO:
“O que conta é o próprio drama do ato, o momento em que o universo escapa de si mesmo para reencontrar sua própria destruição.”

Sumário


Vida e criação no “Centro de Convivência da Pessoa”.
   “O Centro de Convivência da Pessoa”, fundado em 1986 por Luiz Gonzaga P. Leal fornece suporte para a estruturação de diferentes locais e tempos devotados ao desenvolvimento da ação criativa. Estes locais e tempos otimistas produzem efeitos terapêuticos, mas sem ser especificamente planejados para isso. Em lugar de pretextos terapêuticos intra-mural, trabalho coletivo e projetos de trocas comuns e reconhecidos pelo mundo externo são desejados. Isto inclui encorajamento individual de cada um em respeitar sua história pessoal e determinar seu próprio caminho de auto-realização.

Palavras-chaves:

Trabalho coletivo - Projetos comuns – Mundo exterior – Terapia Ocupacional - Auto-realização – Criatividade – Potência Criativa.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O ato de adoecer: compreensão para manejo daquele que sofre.

UMA BREVE NOTA: Há uma semana encontrei esta minha fala datilografada e cheia de rabiscos. Trata-se de uma conferência realizada no ENORFITO - Encontro Nordestino de Fisioterapeutas e Terapeutas Ocupacionais. Realizado em Salvador - BA, Dezembro de 1990.
Fiquei na dúvida se publicaria da forma como a encontrei ou se faria uma revisão adequada ao tempo de agora. Decidi que depois de 23 anos, mesmo datada, faz sentido publicá-la. Entendi que foi através dessa escrevinhação, que começei a ensaiar os meus primeiros passos para entender os processos de Terapia Ocupacional numa relação imediata com os processos subjetivos. Naquele época buscava através da psicanálise elementos que pudessem suavizar os conflitos por mim vivenciados no meu fazer clinico. Aliado também da antropologia, fui remetido a Lacan que através da leitura dos seus textos, quebrou-me inúmeros galhos. Leituras densas, instigadoras, inteligentes e absolutamente fascinantes. Diante das dificuldades de entendimento de todos aqueles conceitos, resolvi encarrar o que lia, como se estivesse lendo um lindo e misterioso romance. Terminei por me dar bem, já que fui encontrando grandes veredas e pistas.   

*Luiz Gonzaga P. Leal.



É sempre bom lembrar que um copo vázio está cheio de ar.
(Chico Buarque de Holanda)



   Agradecer o convite por estar aqui, é falar também de minha emoção em participar deste evento, bem como do meu desejo de comunicar minhas ideias. Desta forma, então, falar do quê, senão também sobre minhas histórias...
   Quando consultado para dar uma conferência neste encontro, de início fui tomado por uma dúvida: se falaria em torno de um tema que congregasse interesse apenas dos Terapeutas Ocupacionais, ou se acerca de algo que a um só tempo pudesse também interessar aos Fisioterapeutas. Decidindo pela 2ª opção ocorreu-me escolher o tema.
   O fio condutor que me levou a escolha, partiu da constatação de que nós Fisioterapeutas e Terapeutas Ocupacionais, não apenas tratamos a doença, mas o doente na qual esta se instala. O doente por sua vez, a sua pessoa, empresta significados ao ato de adoecer, que por ser vivenciado como terrificante e ameaçador declara sofrimento e dores.
   É da sua compreensão que resulta um adequado manejo daquele que se encontra atrelado as malhas da doença. Pois estar doente significa, estar preso a uma determinada ocorrência da qual não se pode livrar (o sintoma) e que causa sofrimento, cujo alívio é buscado através do Terapeuta, de suas possibilidades, do seu saber. A ameaça de aniquilamento, de destruição e de morte, são vivenciados de forma intensa e catastrófica, uma vez que estar doente significa facilmente esta regredido e como tal privado parcialmente de um raciocínio lógico e adulto. Essa angústia de aniquilamento provoca que se procure na figura do Terapeuta um poder maior onipotente, que se possa imediatamente promover um controle sobre o que se sente como o incontrolável.
   Nós, Terapeutas Ocupacionais e Fisioterapeutas não fomos preparados exatamente para cuidar de pessoas, e sim de doentes. Fomos por demais influenciados pelo discurso médico, cuja marca, prima pela exclusão da subjetividade do sujeito, ou seja, pela exclusão da subjetividade daquele que adoece.
   Esta subjetividade inerente a cada um, a cada pessoa, empresta um significado, uma tonalidade ao ato de adoecer, pois na verdade, não somos capazes de reconhecer a realidade, senão da forma como ela está organizada dentro de nós.


Discurso Médico – Marcas e caracterizações


   O discurso médico prima por excluir a subjetividade tanto daquele que enuncia como daquele que o escuta. Daí a pretensa objetividade do cientista que, na verdade, está calcada na abolição da subjetividade do autor.
   Evidenciando que é a exclusão das posições subjetivas do médico e do paciente o que funda a relação médico-paciente, é que Lacan dirá que não existe relação médico-paciente.
   O médico só intervém e só fala enquanto lugar tenente da instituição médica, enquanto funcionário, instrumento do discurso médico. O médico só existe em sua referência constante do saber médico, do corpo médico, dá instituição médica. Ele se anula enquanto sujeito perante a exigência de objetividade científica, ou seja, o médico só se autoriza por não ser ele próprio, por ser próprio o menos possível.
   O apagamento da subjetividade do médico pode ser evidenciado ao constatarmos que a lógica institucional – transcende a particularidade do médico que examina, decorrendo daí o fato de o estilo das observações do prontuário de um doente ser o mesmo, independentemente do sujeito que entrevistou.
   O médico diante do outro que sofre, que agoniza, sofre também, não por partilhar do sofrimento daquele, mas por nada poder fazer para superar sua própria impotência perante a doença fatal. Impotência que seria desfeita no momento em que a potencia de seu saber pudesse enfrentar, sem temer uma derrota, o Mestre absoluto, ou seja, a morte. Arma terapêutica, arsenal terapêutico são expressões vigentes no vocabulário médico – para enfrentar o inimigo, o que lhe possibilitará dar provas de sua mestria.
   Dessubjetivação, ainda, que se revela pela rareza do encontro entre médico e doente, ficando este submetido ao tratamento de uma equipe médica – o trabalho em equipe é um dos estandartes que o discurso médico levanta atualmente, ao mesmo tempo que, contraditóriamente, e sem aperceber-se disso, alteia a flâmula da relação médico-paciente – que se reveza junto ao doente, valoriza apenas os dados escritos no prontuário por outros médicos para diagnosticar e prescrever. O que se demonstra no inegável hábito de o médico chegar junto ao leito do doente já ciente de todas as informações da equipe escritas no prontuário.
   Tais informações, tal saber, constituem o elemento que mediatiza, a partir daí, o que se passará no encontro. Encontro que, portanto, não existe, sendo apenas o ardil para o encontro do médico com seu próprio discurso. Sob a máscara de um diálogo, é um monólogo que se instaura. Onde se evidencia a função silenciadora do discurso médico, que ao se valer apénas dos elementos de seu próprio discurso abole tudo o que nele não possa se inscrever.
   Por outro lado, o doente, não é a ele que o médico se dirige, mas ao homem presumidamente normal que ele era e que deve voltar a ser. Homem normal, ou seja, que raciocina com justeza o que significa que ele deve se submeter à razão médica. Qualquer insurgência contra a razão médica é sempre tomada como sinal de desrazão.
   A ordem médica, é sobretudo uma ordem jurídica. O direito, “diz Kelsen”, não fala do ser, mas apenas do “dever-ser” e os meios do direito, as sansões, destinam-se a fazer com que cada um aceda ao dever-ser. O homem tal como é definido pela medicina, também é da ordem do dever-ser, é o homem em boa saúde, aquele ao qual cada um acenderá se seguir as prescrições da razão médica.
   Mas o ser, o mormente doente, não interessa a medicina, daí o médico não se dirigir ao doente, mas ao futuro homem são.
   E é nesse sentido que também se pode evidenciar que não existe relação médico-paciente. Só existe a relação instituição médica-doença.
   Médico e doente destituídos de sua subjetividade prevalecem à instituição médica, lugar da totalidade do discurso médico, e da qual o médico é apenas o anônimo representante -, e a doença – objeto constituído pelo próprio discurso médico, sendo o homem únicamente o anônimo terreno no qual a doença se instala.
   A exigência do uniforme tanto para o médico quanto para o doente hospitalizado – do mesmo modo que no exercito, no presídio, e no convento – parece adquirir sua significação não apenas da necessidade de identificação imediata do sujeito ou das regras de higiene e da assepsia, mas também da uniformização que o duplo anonimato em questão requer.
   É através de uma receita que o médico prescreve ao doente, ou seja, através de uma ordem. A prescrição médica é um enunciado dogmático: coma isso, não beba aquilo, não fume, repouse, faça exercícios... Até a sexualidade  sofre este efeito de ordenação que está implícito na prescrição: manter relações sexuais periodicamente ajuda a manter a boa forma!... O que tem por efeito transforma a vida amorosa do sujeito num dever conjugal, o que é exatamente o modo pelo qual a ideologia dominante encara a sexualidade. Por onde se depreende o conchavo do discurso médico com o discurso dominante, um utilizando o outro para impor seus ditames, suas leis e seus ideais. Daí, que, converter, convencer, vencer, passam a ser palavras de ordem deste discurso, ou seja, o discurso do Mestre. O inquérito médico, configurado pela anamnese, abole a “escuta” – escuta “seletiva”, não valorizando a priori nenhum dos elementos do discurso do sujeito, estando o cuidador submetido aos pré-conceitos para ouvir.
   O que está em jogo é a passagem de um discurso a outro, do discurso do mestre para o discurso do Terapeuta, passagem da posição dogmática para a posição compreensiva. Passagem, enfim, da postura do sujeito que sabe, próprio do médico (domínio do Mestre) a do suposto saber, lugar do Terapeuta.
   Tomemos aqui o exemplo da histeria. A histeria, com seus sintomas denominados pelo discurso médico de migratórios, ludibria o saber médico, colocando-o num impasse. E do médico, a histérica só ouvirá como resposta: “Você não tem nada!”.
   Mas, curiosamente, entre os médicos, comenta-se que ela tem alguma coisa, sim, ela sofre de “piti”... O que para nós, só faz evidenciar a desqualificação que é promovida pelo diagnóstico de “piti", diagnóstico impossível de ser revelado sem desencadear no outro seu intuito mais secreto, a agressão moral. Diagnóstico que tem como função a de desqualificar o sujeito, desqualificando-o enquanto doente.
   A histérica é acusada de simular os sintomas, termos que remete diretamente ao contexto teatral e seu jogo. O papel que deveria representar na cena médica, este papel ela não o desempenha bem. E recusando-se a coadjuvar no papel que lhe apresentam, será, então, seu drama que não será ouvido.
   Esta recusa está na dependência de os sintomas da histérica não remeterem ao discurso médico, mas ao próprio sujeito.
   Na antiguidade, eram as histéricas tidas como bruxas, feiticeiras, possuídas, por isso sujeitas a fogueiras dos inquisidores.
   No presente diz-se: “com esta paciente só matando”, pois tanto num registro, quanto no outro, o que se incinera, se esfuma, se matam é o desejo do sujeito – a sua subjetividade.
   Através das diversas etapas pela quais se efetua o “ato médico”, ou seja, as etapas do diagnóstico, do prognóstico, e da terapêutica, o que se configura é um discurso totalitário que exclui a diferença, único modo pelo qual a subjetividade poderia se manifestar.
   Por intermédio da utilização de um vocabulário ao qual o doente não tem acesso, o discurso médico opera reduzindo o sentido dos diferentes ditos do sujeito, àquilo que é passível de ser inscrito no discurso médico.
   A pluralidade de sentido, característica da língua, é abolida para dar lugar à univocidade de sentido, ideal do código. Desse modo, o discurso médico apropria-se do discurso do sujeito, transformando os significantes de sua fala em signos, em sinais médicos.
   Importa relembrar aqui a definição que Lacan dá do signo, como sendo aquilo que representa alguma coisa para alguém (que saiba lê-lo), diferentemente do significante que representa um sujeito para outro significante.
   Operação de que se vale o discurso médico e pela qual diversos significantes, tais como um abafamento no peito, uma falta de ar, uma angustia por dentro, uma sensação de sufoco etc., serão todos reduzidos, univocamente, ao sinal clínico da dispneia. E isto para que possam ser inscritos no discurso médico. Do mesmo modo, um peso na cabeça, uma ardência na testa, um latejamento na mente, um pensamento que não para de martilhar, serão reduzidos ao sinal clínico da cefaleia. 
   A fala do sujeito é ouvida apenas para ser descartada imediatamente. Onde se depreende a função sentenciadora do discurso médico e seu posicionamento exatamente inverso ao discurso daquele que se predispõe cuidar.
   O discurso médico, escamoteia o discurso do sujeito não restituindo-lhe o seu lugar, ou seja, constitui uma fala em que o sujeito da enunciação não se manifesta, em que a verdade anunciada por ele deve ser independente daquele que a enuncia.
   Desta forma, para finalizar, é impossível conciliar psique e soma no campo do discurso médico. O que a antiga máxima parece, entre outras coisas, sugerir: menssana in corpore sano.