Gonzaga por Gonzaga


Fotos recentes do Projeto Receita de Samba que estreei no dia 09 de Maio, e cuja a temporada se estenderá até meados de Julho.

Avançar na idade é grave e natural como o rolar das águas. O tempo é macio. Ele flui, não esbarra com violência. Quando você faz 20 anos ele está de manhã, olhando o sol do meio dia, mas, tarde são seis e meia da noite e você olha a boca da noite. Mas a noite também tem seus encantos. É assim que hoje me sinto, portanto gostaria de compartilhar essas emoções com todos vocês. É um processo que se inicia em funçaõ de um outro que terminou. Assim é a vida e os processos que ela embeleza. Nesse tempo é necessário que possamos investir na amizade, no capital afetivo, e é claro, na paixão e seus sentidos.
A salvação está aí: dar-se aplicando-se aos outros. A única coisa não perdoável é não fazer. É preciso vencer esse encaramujamento narcísico. Essa tendencia e alteração do sensível. O tempo é curioso. Só nos conhecemos conhecendo o mundo. Somos um fio desse imenso tapete cósmico. Mas haja saco!
O passado é fora de dúvida um hábito consistente. É preciso reagir contra a excessiva consistência do passado, ou melhor, é necessário impedir que ele torne-se perigosamente viscoso ou coagulado. Abri-se ao futuro significa aceitar e assumir a poética do tempo. Quem aspira o ser, parte sempre do não ser. E lançando-se ao mar com risco inarredável do naufrágio. Dirija sua náu de modo a que possa aportar nas praias do ser. A vivência do futuro implica também a possibilidade do naufrágio. O futuro é portanto o não ser, grávido da possibilidade de ser através de um projeto que lhe dará nascimento.
Apaixonadamente, quero um bem enorme a vida e dos que dela fazem parte.
















FELICIDADE OU ALEGRIA?


Em sala de aula sempre fui visto mais com filósofo do que como Terapeuta Ocupacional. Nunca me encomodei com isso. Lógico que sei da minha potência como Terapeuta Ocupacional, mas sempre achei e acho que o mundo precisa e muito, de filosofia. Li e continuo lendo muita filosofia, principalmente os meus queridinhos, entre os quais, Nietzsche. Mas aprendi também filosofia com os empregados da minha casa, com o porteiro do meu prédio, com a minha secretária, com o vendedor de tapioca da esquina, com o padeiro, com o jornaleiro.
Por exemplo, uma das conclusões que cheguei a partir do contato com todas essas pessoas, foi sobre a noção de felicidade, porque, elas sempre me apontaram que é melhor falar de alegria do que de felicidade. Felicidade pra mim tornou-se um conceito burquês. Ser feliz é atingir um padrão que te importa? Será que isso vai nos deixar feliz mesmo? Passei a não gostar muito de falar de felicidade, e portanto, a achar um conceito falho. Me agrada mesmo é falar em alegria.
Uma coisa que me salva foi ter descoberto o seguinte: posso ir aonde eu quiser, mas tenho a minha fragilidade. Não me agrada muito essa conversa de "tenho que ser livre", "porque faço o que quero e bem entendo". Quem faz o que quer não está aberto a parcerias, para ter companhia. Temos que deixar de ser deuses conosco, porque, se acho que sou o máximo, o maravilhoso, começo a selecionar demais e assim me segrego. Precisamos sim sair desse pedestal imaginário para nos aconchegar a alegria. No entanto se você só busca ficar alegre, claro que aí não terá necessidade de crescer, de investir no crescimento. É através da dor que o homem empreende grandes façanhas na sua vida. As vezes somos muito excessivos. Na sociedade toda, ninguém suporta sofrer. E é aí que se abre uma grande brecha para a medicalização psiquiatrica, que tem evoluido muito. Se você tem um remédio que te dá alegria e bem estar, como vai lutar para não ficar dependente dessa medicação? Por outro lado, acho que a solidão é a base da dignidade, por isso, gosto tanto de ficar sozinho. Temos que redescobrir a solidão, ter espaço para conviver até com a sua melancolia. E sabe o que acho deplorável? A pessoa que não se encarrega de dar conta da sua própria vida e a "terceiriza". Isso é uma violência, um estupro contra o outro.
Não tenho muita dúvida que daqui há algum tempo não vai fazer sentido o quanto você possui, qual a grife do seu sapato, da sua roupa, do sei lá o quê. Essas idiotices do capitalismo estão indo por água abaixo. O que vai mesmo interessar é o quanto você elabora, o seu capital de conteúdo, a sua poupança afetiva. A sua capacidade de pensar. Eu observo o seguinte: A sociedade de hoje é medicada, perdida, enjaulada. Mas antevejo uma nova geração maravilhosa, onde a busca será: vamos viver cada vez melhor. E pensando.
Os meus atendimentos como Terapeuta Ocupacional sempre tiveram um caráter de aula-atendimento, com uma feição intelectual e afetiva. Nunca os considerei pacientes. Eram alunos, amigos e parceiros.

 

Terça-feira, 17 de janeiro de 2012


ENTREVISTA EXCLUSIVA - GONZAGA LEAL

Artista rebuscado, Gonzaga Leal pauta a sua carreira em refinados projetos. Seja no palco ou em disco, seus projetos destacam-se a tendo como característica principal o requinte.

Por Bruno Negromonte

Estamos vivendo uma época em que, com raras excessões, os ditames midiáticos acabam por reger o que é considerado de boa qualidade ou não dentro de nossa cultura; porém o que nos chama a atenção são os critérios de avaliação fundamentais para a determinação daquilo que é louvável de uma boa classificação ou o inverso.

E é nesse contexto cultural regido por forças aquém do talento e bom gosto que Gonzaga Leal vem galgando seu espaço dentro do cenário musical brasileiro sem preocupar-se com rótulos e estigmas. Artista arrojado, este pernambucano de requinte inquestionável veio ao conhecimento do público do Musicaria Brasil recentemente com a matéria EM UM ÁLBUM DE PRECIOSIDADES, GONZAGA LEAL SE FAZ OURIVES COM AS CANÇÕES e agora volta ao nosso espaço para conceder esta entrevista exclusiva onde fala um pouco sobre o início da carreira, projetos futuros e como se dá a escolha do seu repertório.

Dentro das suas mais remotas lembranças de infância gostaria de saber qual o momento que você lembra que de fato fazia-se acreditar que o pequeno Gonzaga seria artista.

Gonzaga Leal - Venho de uma família bastante musical, minha mãe era cantora de igreja e logo cedo me iniciou no aprendizado de cânticos sagrados. O rádio vivia constantemente ligado, o que me deixava absolutamente embriagado com tudo que ouvia. A minha vó, mãe da minha mãe, tinha uma linda voz e de maneira muito singela me iniciou no repertório de Dalva de Oliveira. O maestro Moacir Santos vez por outra, aparecia na casa dos meus avós e travava com eles grandes conversas sobre música. Naquela época, muito guri, não fazia a menor ideia da dimensão daquele grande artista que sempre fazia o roteiro entre Flores e Serra Talhada. Ele era amigo de toda a minha família. Sempre fui muito requisitado para atuar em peças de teatro no colégio, ora cantando, ora representando. Essas cenas todas por mim vividas, foram pouco a pouco consolidando em mim o desejo de ser artista, muito embora não tivesse nenhum incentivo por parte da minha família. Meu pai, um homem muito silencioso, comedido e discreto, dele sempre ouvi que ser artista é algo muito bonito, no entanto, muito árduo e perigoso.


A sua vinda para a cidade do Recife foi, a princípio, para dar início a sua graduação ou você já trazia o desejo de dar vazão a esse lado artístico que já se evidenciava em Serra Talhada com nomes como Rosa Pau Ferro e Edézio?

GL - Apesar de não ter o incentivo familiar para me tornar artista e sim para ser doutor, a música sempre exerceu sobre mim uma enorme força e uma necessidade. E foi dessa forma que fui negociando comigo mesmo e com a minha família cursar a universidade e paralelamente me encaminhando para a música. Tinha a clareza do meu destino de que um dia artista me tornaria. A convicção das dificuldades só acentuava em mim o desejo de seguir. O contato com o movimento musical no diretório acadêmico da universidade contribuiu por demais para as minhas certezas e enfrentamentos.


Em que momento e de que forma aconteceu essa sua introdução nesse contexto cultural recifense? Houve alguma dificuldade?

GL - Me inicio na cena musical recifense participando do programa Cidade Encantada da queridíssima Tia Linda na TV Jornal do Commércio, no final da década de 60, início da década de 70. Foi uma passagem muito breve, porém bastante decisiva para conhecer os mistérios, as dificuldades e o glamour da vida de artista. Conheci nesse período dois grandes artistas bastante decisivos na minha formação como artista. A cantora Marlene e o cantor Luiz Vieira. A Marlene me ensinou os segredos de ser intérprete e o Luiz me levou para cantar na noite. A Marlene que tornou-se minha amiga e que até hoje mantenho contato, dela sempre ouvi: “O melhor cantor é aquele que através do seu canto faz tremer corações.” Com isso ela tentava me mostrar a diferença entre ser cantor e ser intérprete. Eis a razão pela qual dou tanta importância ao texto da canção. Não sei cantar uma música que não cale fundo dentro de mim. Já deixei até de gravar canções por não saber dar a força de intérprete a uma única palavra. Acredito que nesse aspecto há uma verdade, mas também, uma destituição, uma incompetência, uma fragilidade. Quanto às dificuldades sempre tive muita clareza, mas como bom sagitariano, nunca deixei de manter a seta apontada e me apropriar da paixão. Assim entendendo, reduzia a minha solidão e reafirmava em mim a convicção de que ser artista é um ofício de paixão.


A pergunta que aguça a curiosidade de muitos que acompanham a sua carreira é o porquê que só depois de anos foi que veio o seu primeiro registro fonográfico mesmo você tendo uma bem sucedida carreira nos palcos com espetáculos diversos nos anos que antecederam o álbum “Um olhar brasileiro”?

GL - Sou um homem muito exigente comigo mesmo. Sou o mais critico de mim, o mais inseguro de todos. Portanto nunca me senti devidamente preparado para o enfrentamento do estúdio, da critica e do público. Navegava em águas muito serenas que me protegia disso tudo. Precisei do aval de Dadá Malheiros, grande músico, grande amigo. E do seu irmão Fabiano Menezes, ambos músicos da Orquestra Sinfônica, com os quais já vinha trabalhando. Naquela época fazíamos um espetáculo chamado PÁSSARA (ver repertório de shows no site – www.gonzagaleal.com.br) que foi muito bem recebido pela critica e com o qual cumprimos uma temporada muito feliz. Um repertório muito ousado, uma direção musical precisa, uma direção cênica poética e músicos extraordinários. Mesmo assim a insegurança batia mais forte e o medo me tomava. Precisei que o mestre Dadá Malheiros me abalasse com suas palavras: “Você está pronto para gravar este repertório. Ou vai ser agora, ou nunca. Estou disposto para te levar para o estúdio, só basta agora você querer.” Não tive outra alternativa que não me render a força da indicação do meu diretor, a quem muito respeito, admiro e confio. Foi uma das experiências de maior impacto que já vivi. Um rito de iniciação absolutamente forte e decisivo para entender e fazer o que hoje cumpro como artista. Certamente que se não fosse Dadá Malheiros, meu sempre amado diretor, arranjador e amigo, não estaria dando esta entrevista.


Você que vem apresentando-se nos palcos desde 1974 com espetáculos bem elaborados que são sucessos de crítica e público por onde passou, porém só teve seu primeiro registro fonográfico 21 anos depois. Há desse período que antecedeu o primeiro disco algum espetáculo que você recorda e sente-se triste hoje por não tê-lo registrado em disco?

GL - Tenho uma enorme divida e ressentimento comigo de não ter gravado o repertório de dois shows por demais importantes na minha trajetória artística. Ambos sobre a batuta do mestre Canhoto da Paraíba e seus preciosos músicos. Os shows “Quando a dor não tem razão” e “Pra quem quiser me visitar”, se eles envolviam uma enorme beleza musical advinda da poesia do violão do Canhoto e do repertório por ele indicado (ver repertório de shows no site – www.gonzagaleal.com.br) significou pra mim um enorme aprendizado do fazer musical. Canhoto, a quem todos chamava de Curinguinha, foi o primeiro a me incentivar a gravar e me apontar possibilidades, que nem de longe eu tinha noção. Sempre com seu jeito maneiro, carinhoso e incisivo tentava desconstruir em mim uma subjetividade covarde que me amarrava e amedrontava. Mas ao mesmo tempo não deixava de me assegurar: “Seu tempo vai chegar, não deixe que ele passe. Fique atento.” Isso pra mim converteu-se em mantra que carrego comigo pela vida afora. Muita sorte minha ter cruzado com essas pessoas tão lindas e queridas na minha vida. Será que são coisas do destino, das minhas próprias buscas ou de ambas? Não faço a menor ideia. Continuo buscando compreender, procurando não ser negligente com nada.


Conta a sua biografia que as suas reminiscências musicais mais remotas são oriundas do aparelho de rádio que havia em sua casa ainda em Serra Talhada, onde nele você ouvia artistas considerados de “época de ouro do rádio” como Orlando Silva, Silvio Caldas, Francisco Alves entre outros. É impressão ou você traz arraigado hoje em seu trabalho marcas desses artistas? (visto que em seus trabalhos há canções do repertório de Dircinha Batista (Você tem açúcar, 1941), Silvio Caldas (Florisbela, 1939) e Orlando Silva (Última estrofe, 1935).

GL - Essas referências todas compõem o gráfico e a partitura que me formataram artisticamente. Através de todos que fizeram o rádio, fui percebendo a dimensão do que é ser artista. Quero um dia, não sei quando, juntar-me a um outro colega de oficio, montar um espetáculo a partir do repertório de Orlando Silva e Francisco Alves. Essas canções todas que você se refere e que gravei, antes de qualquer coisa ou influência, elas fazem parte da minha memória musical – afetiva. Esse singelo mosaico musical interpretativo de um tempo sempre exerceu sobre mim uma enorme tensão. Não consigo entender um artista fora do seu tempo e suas significações. Não tenho a menor paciência do novo pelo novo.


Você anda com dois projetos futuros em andamento que são aparentemente bastante distintos. A realização destes projetos tem sido em consonância ou você vai priorizar um deles e depois se engajar na conclusão do segundo?

GL - Estarei em 2012 completando 25 anos de carreira, o que me excita cometer ousadias e transgressões. Esses dois projetos aos quais você se refere me são muito caros e preciosos. Quero sim realizá-los. Não medirei esforços. Hoje trabalho com uma banda e um diretor musical que me deixam muito confortável para realizarmos projetos bordados de ousadia e tingidos de determinação. Graças a Deus conto com esses parceiros nos quais confio e tenho amizade e percebo que todos eles depositam em mim confiança e respeito. Com esses temperos qualquer pessoa pode realizar projetos inimagináveis. Como só sei realizar uma coisa de cada vez, e isso compõe uma das minhas incompetências, certamente que um projeto sucederá ao outro. Ainda não posso adiantar qual deles virá primeiro.


Um desses projetos pelo o que a imprensa tem noticiado se chamará “Teatro – Na boca de cena nasci”, onde você prestará uma homenagem ao Teatro de Santa Isabel. Você poderia falar um pouco sobre esse projeto?

GL - O teatro pra mim tem o significado de um templo e o palco a representação de um oratório. É um dos espaços, fora a minha casa, no qual onde me sinto melhor, confiante e sacralizado. Dos teatros onde me apresentei no Brasil, o Teatro de Santa Isabel é o que pra mim encerra uma grande dimensão afetiva. Ele é de uma beleza e magia enorme, foi lá que lancei todos os meus discos de carreira e o teatro onde mais me apresentei. Não faço a menor ideia de quantas vezes pisei naquele palco. Nada mais justo da minha parte prestar-lhe uma homenagem através de um cd, contemplando um repertório de montagens teatrais. Há um só tempo pretendo reunir neste album todos os pianistas que me acompanharam ao longo desses anos todos, ou seja, será um cd de voz e pianos com repertório de trilhas de montagens teatrais, algumas delas encenadas no palco do Teatro de Santa Isabel. Sem contar que sou um apaixonado pelo teatro. Sempre que vou montar um repertório para um cd ou um show, parto sempre de aspectos dramatúrgicos que as canções encerram entre si. Ao realizar qualquer trabalho artístico tenho sempre a tendência de antecipar a cena.


Salve engano, o segundo projeto em vista trata-se de um álbum onde a viola brasileira norteará todo o trabalho não é isso?

GL - Sou um homem do interior que vim muito cedo para a capital, no entanto o sujeito brejeiro, romântico, interiorano continua habitar em mim com muita potência. Da mesma maneira que o repertório dos cantores que fizeram o rádio exercem sobre mim encantamento, a sonoridade das violas através das suas mais diversas afinações, vem me conquistando pouco a pouco. Sem falar que muito precocemente em Serra Talhada já ouvia o som misterioso desse instrumento. Mais uma vez aqui, falo de memória. Quero dizer também que convivo com um violeiro, Claudio Moura, hoje meu diretor musical há pelo menos 12 anos. Ele é um dos grandes responsáveis pelo fascínio que a viola hoje exerce sobre mim. Nas minhas andanças pelo Brasil fui conhecendo violeiros entre os quais o Chico Lobo de Minas, de quem gravei duas lindas modas de viola, e assim pouco a pouco venho me apropriando de um repertório que mantém uma linda interface com a sonoridade da viola brasileira. No meu ultimo álbum “E o que mais aflore” a viola se diz presente em quase todas as faixas. Neste cd quero sim, ter comigo violeiros do Brasil e jovens violeiros pernambucanos, a exemplo de Hugo Lins, Caçapa, por quem tenho admiração e respeito. Adelmo Arcoverde, nosso grande violeiro estará também presente ao lado do Claudio Moura, Chico Lobo e Pereira da Viola. Espero que todos eles aceitem o meu convite para fazer parte deste projeto.


Uma característica interessante em seu repertório é a diversidade com que ele é constituído sem necessariamente cair um lugar-comum. Você consegue mesclar de maneira interessante desde canções de artistas locais, obras de domínio público chegando até a grandes pérolas do cancioneiro nacional, porém tudo isso dentro de uma unidade tão coerente e distinta que seu trabalho acaba se destacando naturalmente. Como se dá a escolha de seus repertórios para compor seus álbuns?

GL - Curiosíssima sua pergunta. Porque ela antes de qualquer coisa fala de um entrevistador que tem conhecimento de quem vai entrevistar. Sinceramente isso é uma raridade. Isso me deixa muito confortável e alegre e com total disponibilidade para responder quantas perguntas você me faça. Você não sabe que prazer estou experimentando em responder as suas indagações. Me dedicar a ouvir música diariamente com disciplina e rigor é uma das tarefas que faz parte do meu oficio. Vou ouvindo as canções, me apropriando delas, sorrateiramente me tornando um coautor. Algumas dessas canções, vão sendo abraçadas pela minha voz em função da minha extensão vocal e da força do texto. Dois critérios pra mim absolutamente imprescindíveis para que eu me sinta confortável na emissão da voz e formatação do canto. Isso implica em prazer e sofrimento, uma vez que se trata de um processo de muitas idas e vindas. Nunca é algo lógico e carteziano. Muito pelo contrario, trata-se de um processo bifurcado com muitas linhas de fuga. Construir um repertório que traga no seu interior uma coerência dramatúrgica é preciso muita paciência, determinação, cuidado e rigor. Quando penso em repertórios, me reporto a imagens e ao sonho. Sou um intolerante a repertórios onde as canções não guardam um significado entre si. Não tenho a menor paciência.

Recentemente você trouxe a Recife o espetáculo “Porcelana” onde dividiu o palco com a cantora Alaíde Costa. Há intenção de levar esse projeto pelos palcos do Brasil?

GL - Quanto ao show Porcelana, onde Eu e Alaíde fizemos juntos, era um desejo antigo e que só agora podemos realizar. Víamos fazendo participações nos shows um do outro ao longo desses 20 anos de convívio. Ela chegou inclusive a fazer uma participação em um dos meus álbuns. Todos ficamos muito satisfeitos com o resultado das duas récitas que fizemos em Recife. O show é regido por uma simplicidade, ao mesmo tempo pontuado por zonas de passagens que assegura uma certa densidade ao espetáculo como um todo. Era tudo que queríamos. Os músicos que fizeram conosco, Alex Sobreira (violão), Adilson Bandeira (clarinete), e Tomás Melo (percussão) arremataram com poesia sonora todo o conceito do trabalho. Através dos nossos produtores em São Paulo e Rio de Janeiro já está assegurado temporadas nas duas capitais. Alaíde por sua vez tem me motivado bastante transformarmos o show em um cd. Por enquanto são papos embrionários, mas que interessa a nós dois, e que certamente a qualquer momento poderemos dá um start nesse desejo. E claro que eu vou adorar se isso acontecer.
Finalizando, quero te agradecer muitíssimo pelo seu interesse em me entrevistar e te desejar muita sorte pela vida afora.


Gonzaga Leal - Agenda (Janeiro)
26/01/12 - Espetáculo "E sentirás o meu cuidado - Gonzaga Leal canta Capiba" - Janeiro de grandes espetáculos - Teatro de Santa Isabel (Recife/PE) - 20hs (informações: (81) 355 3322)
27/01/12 - Show Porcelana com Gonzaga Leal e Alaíde Costa - Casa de Seu Jorge (Recife/PE)- 22hs (Informações: (81) 30341066)
28/01/12 - Show Porcelana com Gonzaga Leal e Alaíde Costa - Casa de Seu Jorge (Recife/PE)- 22hs (Informações: (81) 30341066)

Maiores Informações (shows e aquisição dos cd's):
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Sexta-feira, 18 de novembro de 2011


EM UM ÁLBUM DE PRECIOSIDADES, GONZAGA LEAL SE FAZ OURIVES COM AS CANÇÕES

Há um provérbio bastante popular que diz que nem tudo o que reluz é ouro. Esta premissa perde seu sentido quando não nos dá os fundamentos necessários para a explicação acerca de "O que mais aflore", álbum que traz um dourado e inspirado Gonzaga Leal.

Por Bruno Negromonte


Alguns destilados e fermentados são melhores sorvidos depois de longos anos, isso se dá devido a espera da depuração de um ou até mais componentes de tais bebidas. Como exemplo podemos citar os vinhos, que tornam-se mais requintados quando acolhidos em barris de vinícolas ou em adegas à espera de que os anos passem trazendo-lhes características peculiares, dentre as quais a suavidade. Tal qual destilados e fermentados se fez a carreira fonográfica deste artista pernambucano, que veio auto depurando-se nos palcos brasileiros desde a década de 70 (quando dividiu os palcos com nomes como Boca Livre, Canhoto da Paraíba, Edu Lobo, Eduardo Dusek, Tito Madi, Zé Miguel Wisnik entre outros). A sua formação musical começou a ser construída ainda na infância, quando o pequeno Gonzaga Leal começou a ser norteado pelas ondas do rádio existente na sala de sua casa na cidade de Serra Talhada (sertão do Pajeú pernambucano).

Suas reminiscências musicais não são frutos de vitrolas e LP's (algo comum a muitos), mas das audições de canções como " Sertaneja" (René Bittencourt) e "Se ela perguntar" (Jair Amorim e Dilermano Reis) a partir das ondas radiofônicas. E foi a partir deste hábito e do interesse do menino Gonzaga pelas lindas canções que dali eram emitidas, que acabou sendo fecundada uma espécie de semente no pequeno Leal, que após alguns anos germinou de maneira plena; o arrebatando e constituindo em definitivo o seu universo cultural (essencialmente musical) a partir de então.

Posteriormente, ao longo da juventude, ao chegar a capital para estudar Terapia Ocupacional acabou dando início também a uma odisseia musical pois trouxe consigo para a capital a tal semente, já fertilizada no sertão por nomes como o da professora Rosa Pau Ferro (mestra em técnica vocal) e do maestro Edézio da Jazz Acadêmica de Serra Talhada. Eles perceberam que essa semente já mostrava que iria render pomposos frutos.

Quando decidiu profissionalizar-se contou com o auxílio de diversos nomes presentes no cenário musical do Recife, principalmente com aqueles que faziam parte do Conservatório Pernambucano de Música (onde estudou técnica e teoria musical) e também com a ajuda dos profissionais existentes nos diversos programas televisivos ao quais participou na época, principalmente na TV Jornal do Commercio, como os programas "Você faz o show" sob o comando do apresentador Fernando Castelão e "Eu show Luiz Vieira"; além das apresentações nas casas noturnas da cidade, que além de propiciar experiência levou o artista ao convívio de nomes como Canhoto da Paraíba, Marlene (uma das divas do artista), Emilinha, Luiz Vieira, Cauby e Ângela Maria, Tito Madi, Johnny Alf e Dóris Monteiro entre outros.

Foram vários anos nos palcos do Recife apresentando espetáculos diversos dentre os quais "Quando a dor não tem razão"; "Gonzaga Leal e Henrique Annes no recital Aparição"; "Gonzaga Leal canta Heitor Villa-Lobos e declama Manuel Bandeira" entre outros; Em dado momento a restrição aos palcos (que privava o grande público da possibilidade de se deliciar com a audição do que era presenciado nos espetáculos) já era algo incômodo e precisava expandir-se ao disco. A experiência nos palcos depurou o artista de maneira suficiente, dando-lhe o sustento necessário para que em seus trabalhos fonográficos fossem arraigados prismas carregados de talento, onde o tempo da delicadeza pode surgir não de maneira unítona em sua voz, mas transfigurado em diversos outros requintes. Talvez por isso essa intuição ao bom gosto esteja tão evidente no trabalho desse pernambucano em projetos como o álbum "Minha adoração: um tributo a Nelson Ferreira", "Gonzaga Leal cantando Capiba... e sentirás meu cuidado" e "E o nosso mínimo é prazer!". Curiosamente só depois de duas décadas de carreira atuando nos palcos foi que o artista teve o seu primeiro registro fonográfico.

Sem prender-se a nenhum tipo de estigma, Leal vem construindo paulatinamente através da técnica, da versatilidade e da emoção do seu canto uma carreira coesa, e isso o credencia atualmente como um dos exponentes da cena musical pernambucana ao apresentar ao público um trabalho carregados de adjetivos que já são natural e inerentemente associado a todos os seus projetos: uma ousada e moderna qualidade estética como o que se é visto em seu mais recente álbum. O sexto fruto da seleta e requintada discografia de Gonzaga Leal intitula-se "O que mais aflore" e traz consigo a mesma linhagem peculiar dos discos de Gonzaga desde o primogênito trabalho lançado em 2000.

No caso do primeiro álbum (O Olhar Brasileiro de Gonzaga Leal) há um repertório composto por nomes do primeiro time do cenário cultural pernambucano como Nando Cordel, Capiba, Alceu Valença, Carlos Pena Filho eMoacir Santos somados a compositores de relevância nacional análoga como Paulo César Pinheiro,Sueli Costa, Vinícius de Moraes, Paulinho da Viola, Chico Buarque entre outros. O projeto conta com os arranjos de Neneu Liberalquino, músicos como Naná Vasconcelos (que define o álbum como "uma seleção de canções românticas cortejadas por Leal e que nos leva à essência da mpb, no seu lado mais puro nos trazendo de volta o sutil e verdadeiro sentimento de amor") e Henrique Annes. O álbum traz consigo uma característica que acompanha os trabalhos elaborados por Gonzaga desde então: uma sagacidade voltada para o refinamento que é capaz de transformar o mais óbvio em requinte. Trata-se de um minucioso trabalho, onde o singelo paradoxalmente se funde ao suntuoso repertório e projeto gráfico. Vale salientar que todos os trabalhos posteriores do artista trouxe consigo características semelhantes e que fazem Gonzaga Leal preencher algumas lacunas dentro da música brasileiras antes desconhecidas a partir de um ecletismo que, como define a jornalista Flávia de Gusmão, é sua pedra de toque e apuro estético, sua profissão de fé. E foi a partir do álbum O Olhar Brasileiro de Gonzaga Leal, que o artista deu o pontapé inicial ao reconhecimento hoje existente ao seu trabalho o credenciando entre os grandes nomes do cenário musical nacional a partir das boas avaliações tanto do público quanto crítica especializada aos seus projetos.

Neste "entronamento" de qualidade rebuscada, Gonzaga faz da sua sensibilidade aguçada norte seguro para a ousadia, inteligência e refinada percepção na escolha de um rebuscado repertório, onde consegue tecer com precisão os fios das canções como só os grandes artistas são capazes "compromissado com apenas aquilo que o toca", como afirmou. E é isto que ele apresente em seu mais recente projeto intitulado "O que mais aflore", onde Gonzaga lapidou um disco de maneira minuciosa, onde a escolha do repertório se deu entre canções de domínio público, temas religiosos, sambas e compositores diversos.

A primeira faixa do álbum mostra de cara um pouco do propósito do álbum, que é resgatar as tradições culturais brasileiras de forma rebuscada a partir de uma rica sonoridade. "Ponto de Ogum" (que conta com a participação da artista pernambucana Anastácia Rodrigues) trata-se de um tema de domínio público recolhido pelo músico mineiro Djalma Correa e adaptado por Gonzaga. O trabalho segue dando destaque a cena musical local, primeiro com o contemporâneo samba de autoria do pernambucano Junio Barreto intitulado "A quem glória possa ser" vindo em seguida o destaque a outros artistas conterrâneos de Leal como, por exemplo, na faixa composta pelo instrumentista, compositor e produtor musical Juliano Holanda intitulada "Na primeira cadeira que encontrei", que traz uma forte lembrança dos cantadores nordestinos com versos em decassílabo (as chamadas parcelas - canção em 10 estrofes). Há ainda "Pedra de fogo" (canção composta por 3 dos integrantes do antigo Mestre Ambrósio - Siba, Sérgio Cassiano e Hélder Vasconcelos) com citação do artista baiano Bule-Bule e participação do cantor pernambucano Geraldo Maia (que também assina a faixa "Presente fruto" existente no álbum). Há ainda "De madrugada" (do cantor e pernambucano Aristides Guimarães, que em 2011 completa 45 anos de atividade artística e que também participa em uma das faixas) e a junina "Festa do fogo" do não menos pernambucano Públius (que também participa da faixa acompanhado da viola caipira de Chico Lobo).



As verdadeiras raízes da música brasileira se evidenciam nas interpretações dos diversos temas de domínio público presentes no disco e que se entrelaçam de maneira tal que formam um verdadeiro mosaico de identidade cultural brasileiro a partir de faixas como "Mestre dos reis magos chegou", "Ô-lê-lê" (tema tradicional de Moçambique), "Senhora Santana"(bendito de origem medieval recolhido), "Passarinho pintadinho", "Muriquinho" (canto dos vissungos, escravos da mineração de Diamantina), "Boneca", "Saudação a Oxossi" (tradição afro-brasileira), "Em santo Amaro" e "Cariolé" (sambas de roda tradicional).

O trabalho ainda conta com a participação do violonista, compositor e arranjador Roberto Mendes (que assina e participa da faixa "Deu saudade"), do regente da banda sinfônica do Recife, violonista e arranjador Neneu Liberalquino (cantando em uma das faixas), do sambista Marcos Sacramento (na faixa da composição de Ataúlfo Alves intitulada "Saudades do meu barracão"), do mestre Dominguinhos em "Última estrofe" (de autoria do carioca Cândido Neves - o índio) e do Chico Lobo (que empresta sua viola e voz a serviço da canção de sua autoria "Hoje sei que volto" e da já citada "Festa do fogo").

Sob a maioria dos arranjos de Nilson Lopes o disco conta ainda com a participação dos músicos George Rocha, Tomás Melo, Elias Paulino (percussão), Cláudio Moura (violão e viola), Rodrigo Samico (violão), Julinho, Beto Ortiz (acordeom), Bandeira (clarinete) Nilsinho Amarante (trombone), Erison Oliveira (clarinete), Cláudia Beija, Naara, Lucinha Guerra e Abissal (vocais), Bianca Moraes, Deneil Laranjeiras (arranjo da faixa "Passarinho pintadinho") e Lucas dos Prazeres (percussão e vocal). A direção musical fica sob os cuidados de Cláudio Moura (integrante do grupo Sá Grama e discente do conservatório pernambucano de música) que vem trabalhando a alguns anos com Leal e mostrando que apesar de toda heterogeneidade presente no álbum a coerência e unidade rítmica se faz como marca de tais trabalhos.


Quando questionado a respeito do zelo e o cuidado na elaboração de seus discos ele responde geralmente com a seguinte frase: “Gosto de fazer as coisas aos poucos, saboreando e compreendendo exatamente cada detalhe do que estou criando”, daí explica-se os dois anos de dedicação na elaboração deste trabalho, que chega a excelência por mérito próprio. Enfim, "O que mais aflore" se faz supra-sumo de extremos quando se emaranha de maneira perfeita em um tipo de arte que se faz contemporânea e ao mesmo tempo barroca, requintada sem perder a veia popular. É um disco que traz um novo conceito não só estético, mas também auditivo, onde o cuidado do artista se evidencia nos mais minuciosos detalhes. “Isso expressa o cuidado que tenho com meu trabalho, um respeito do artista com a própria imagem, mas também com o público”, como ele mesmo afirma nesse trabalho essencialmente verdadeiro.

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Sou...
   Até hoje sinto que não tenho objetivos na vida. Na verdade, tenho motivos felizes que me levam, "eu e minha música", "eu e a Terapia Ocupacional", para uma zona de imprecisão onde não há rótulos, definições, regras ou leis. Sou um escravo-refém da liberdade, sempre a serviço da experiência, um aventureiro, um explorador que não quer chegar a nenhum lugar. Ou quero?... Sempre acredito que minha paixão é pela viagem em si, pela força do movimento, pelo ato criativo, pela vontade de arte. Terapia Ocupacional é por excelência arte!...
   Arte para mim é sinônimo de vida. Sendo assim a minha vida passa a ser uma obra aberta. Uma música sem fim. Um quadro inacabado. Rítmos, melodias e cores eternas. Ruidos e silêncios por todo sempre.
   Me esforço para ser um homem cúmplice, alegre, humano, ético. Um homem bacana. Um homem comprometido em emocionar as pessoas. Um homem que procura a simplicidade e a sofisticação ao mesmo tempo e a cada instante. Muito difícil!
Quero ser falso, sem o verdadeiro como oposição. Quero ser diferente do que fui, e diferente do que serei. Me atraí a variedade. Quero ser uma variedade. Meu auto-retrato é meu querer multíplo.
   Me fascina atingir o predileto.
   Minha experiência com o canto e com  a música sempre foi e será permanente. É uma das minhas estabilidades - ou seja, penetrar neste universo convulsivo e intenso da musicalidade.
   Me ligo também a outras coisas, como as artes plásticas, a leitura, o teatro, a dança, a psicanálise e a filosofia. Não me entendo bem com o cinema, muito menos com a televisão. Mas tudo isso de que gosto tem um endereço certo: a música e a Terapia Ocupacional.
   O que é a música e a Terapia Ocupacional? Me faço essa pergunta todos os dias já sabendo que não há uma resposta. É como perguntar o que é a vida. Todas as tentativas de explicá-las, a vida, a música e a Terapia Ocupacional, nunca dão conta dos seus infinitos sentidos, das suas potências, das suas intensidades e possibilidades.
   Só entendemos e explicamos aquilo que tem forma, limite, centro. Mas a imagem que tenho de mim, da minha vida, da minha voz, dos meus fazeres é a de uma nuvem veloz e mutante. Sinceramente me sinto como um móbile diante de um furação.
   O delírio do vento forte modificando toda e qualquer calmaria.
   Vida eterna é a arte...
   Vou sair agorinha para passar o som e a luz de um show que irei fazer daqui há algumas horas.

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Meu corpo, minha terra! Como se pode pensar em ti, a coisa mais íntima e a mais estrangeira.

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A importância que arte tem sobre o meu ofício é o fato da arte ser um domínio que nos conduz para além das amarras, quaisquer que elas sejam. A arte mergulha no universo sensível carregada de elementos incorporais, correndo o risco de provocar uma ruptura radical, um colapso de toda significação. Como o colapso produzido, por exemplo, por um artista como Marcel Duchamp. A arte está pois associada a uma vertigem absoluta do sentido e uma recomposição desse sentido. Daí ela constituir-se como um lugar de resistência às redes de significações dominantes. Resistência que encontramos, claro, também em outros dominios, na própria filosofia e na ciência.

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Viver é muito perigoso... mas cada um só vê e entende as coisas dum modo.
João Guimarães Rosa


Não se ocupa com o novo um lugar essencial, sem que o outro o deixe vago.
A paixão move a minha vida. Cantar é essencialmente um estado de paixão. As canções vão aparecendo de um lugar jamais visto, úmidas de rio, de orvalho, escorrendo algas. Ora com perfumados matizes de sabonetes, ora com apetitosos tons de frutas de feira, ora como se fossem românticas cartas. Elas vêm de reinos inexistentes. Soltas, leves e ricas, vestem-se despudoradas e tímidas de flores, conchas e mato entrelaçados em brilho.
Nasci no sertão de Pernambuco. O convívio com as coisas simples e paisagens bucólicas me tornou um homem com enorme apetite pelo brejeiro, pelo agreste, pelo sertão. Essa é a minha partitura na qual se assenta todo o meu movimento em direção à criação. Uma verdadeira viagem de descobrimento pressupõe o encontro com um novo olhar. Um pertencimento.
Quem já experimentou os fundos do rio e o intrincado da mata, sabe do que estou falando, matéria da terra sonorizada através de ritos e sagrados cânticos.
Neste projeto falo de memórias. A memória é moeda de duas faces, faca de dois gumes, perigoso labirinto ou porta dos sonhos. Age de noite e de dia. Ela é um quarto de guardados ao qual nem sempre temos acesso, mas cujos objetos uns dormem e outros acordam. A canção de Junio Barreto, “A quem glória possa ser”, me reconecta a uma arcaica visão e a um primitivo sentimento: à minha primeira experiência diante do mar. De tão belo, levei um susto!... Traduzo hoje como um flagrante de um baile sereno, a calma da cena de um sonho, mas fico também a lembrar de imagens de “Morte em Veneza”, de Visconti, um filme que se inicia e termina no mar, figura do ilimitado, do inumano.
Estar no estúdio é como se estivesse em um templo, em um lugar sagrado. Sinto-me confortável e seguro. O palco representa sofrimento e êxtase. No entanto, é lá que também me faço acontecer. Ele me põe exposto, vulnerável e desconfiado. Enfrentá-lo torna-se um desafio. Termino por amar a cena. Sou um artista em primeiro lugar, me aproprio do canto para dizer o texto, me encarrego de ficar à disposição e a serviço do texto. O intérprete está contido no artista, o artista vem na frente, o intérprete chega depois.
Recife foi a cidade que escolhi para viver. Sua leveza, suas cores e perfumes me levam a experimentar um estar diferenciado no mundo, uma leveza do cotidiano, do pequeno gesto, das pequenas coisas. A leveza que aguarda e guarda o mundo na sua impureza.
Não faço a menor ideia do que é ser moderno. Sou mesmo um sujeito interiorano com sotaques de urbanidade. Me agrada mesmo é a vida filtrada pela memória afetiva, permeada de imagens e acontecimentos assombrosos, felizes ou até mesmo dolorosos. Minha conexão é com o tempo e com a emoção. Aroma de florada de jasmim no quintal com cheiro de terra molhada e perfume de alecrim é uma das coisas de que mais gosto. Sou um convertido. Converti-me ante a força da amizade, da paixão e do amor. É mera vocação para ser kitsch. Não temo o sentimentalismo. Antevejo o fato de que antes de sermos esquecidos seremos transformados em kitsch. O kitsch é como se fosse uma estação intermediária entre o SER e o ESQUECIDO.
Adoro trabalhar, mas o fruto desse trabalho precisa ser, antes de tudo, e no mínimo: prazer! Não me interessa trabalhar com pessoas sem cenários, sem lembranças, sem humor, sem potência criativa, sem histórias para contar e sem intimidade com o silêncio. Me fascina o convívio com pessoas bifurcadas que não temem a salvação porquanto ancoradas no frágil e no precário. Me fascina o convívio com pessoas que não estão atreladas a verdades acabadas, a sistemas fechados, pesados. Por mais que o mundo nos pese sobre os ombros, ainda resta uma saída: rir de nós mesmos, de onde estamos, do lugar aonde chegamos. E nesse riso, nesse gesto tolo, num ato gratuito, voa algo que não se pode prender. São pessoas afins que me ajudam a transformar imagens em profissões de fé, protestos, festas, celebrações, sons e... coreografias.
Dispenso a assepsia de atmosferas CLEAN, tenho como escolha o olhar e a inspiração para o barroco, ele me impressiona, me impregna, me enfeita e me reborda. Acredito que é nos excessos que se encontra o melhor dos extratos do tempo, suas paisagens, suas feições e seus imaginários.Ao fazer um disco, imagino e antecipo a cena. Não ponho música na vida, ponho a vida na música. Preciso da música para dizer de mim. É uma imperiosa necessidade.
Sem nenhum problema, admito que também sou um apreciador de moda. Ela, o figurino, entranha-se-me no abandono das convenções ritualizadas que cadenciam o vestir como estar no mundo, desenquadrando-o das variações rítmicas. O mundo é belo antes de ser verdadeiro, é admirado antes de ser verificado, mundo de extrema solidão que a cada matéria se dissolve e se perde. A felicidade fácil nada prova a não ser a generosidade da vida para com quem a recebe. Ser feliz em meio a tormentos é o desafio e o aprendizado.
Quando penso em realizar um projeto de música, tenho sempre em mente a ideia de ter que lidar com volumes como faz um escultor; com texturas, o designer; modelagem, cortes e caimentos, o estilista... Um projeto de música me envolve ainda em formas e cores, traduzidas pela linguagem do artista plástico; em luz e sombra, essência primeira na arte de fotografar. É como, a exemplo dos camaleões, estivesse sempre rabiscando dunas.
Sempre imagino as cenas da vida na penumbra. Aquela luz construída de sonhos e sons. Aquele clima noturno e aquelas résteas de luz que vêm da memória guardada. Acabo de ler “Viagem à roda do meu quarto”, de Xavier de Maistre. Está escrito na orelha do livro: publicado em 1794, “Viagem à roda do meu quarto” é uma das obras centrais para a formação do romance moderno. Sou um delirante da palavra. Deliro com a palavra, sonho com a imagem. O detalhe me fascina; o detalhe do detalhe, como os olhos num rosto ou um musgo sob uma árvore. A alegria e a felicidade produzem em mim um certo estado de sonolência e desleixo. Tudo que me emociona também me provoca uma certa tristeza.
Venho de uma família exemplarmente religiosa. A religião é o meu dique. Desde que me entendo de mim, sempre gostei de entoar cânticos sagrados. Eles exercem sobre meu espírito, uma força e uma enorme intimidade com o mistério, com o tempo, com a finitude. São cânticos de onde se vê... Lembro aqui de Joaquim Cardozo: “De tudo faço um sonho imaginoso”.
Esse é o meu processo; ele se alimenta de contradições: feminino e masculino, sonho e pesadelo, doçura e agressividade, vida e morte, branco total e preto absoluto, crença e agnosticismo, fome e banquete, floresta e caatinga, verdades e mentiras, orgia e solidão, rural e urbano, materialidade e êxtase.
Constato cada vez mais que a arte é uma confissão e que a vida não basta.
A obra é seu ato.

Gonzaga Leal

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