terça-feira, 12 de junho de 2012

OS EXPERIMENTOS DO CECOP – CENTRO DE CONVIVÊNCIA DA PESSOA.



   Mais um texto que encontro arquivado em minhas gavetas. Sem data e sem nenhuma referência onde foi apresentado, pela linguaguem da qual me utilizo, não tenho muita dúvida que deve ter sido no início dos anos 90 em algum colóquio de Psicanálise. Neste período andava dialogando bastante com psicanalistas pertencentes a várias escolas de psicanálise. O Centro de Convivência da Pessoa - CECOP, instituição criada por mim e por mais quatro colegas, veio ocupar um espaço vago em Recife para cuidar de psicóticos. Esta instituição foi inspirada na Escola Experimental de Bonneuil, na França e na Casa das Palmeiras, Rio de Janeiro.
Na medida em que suscitou muita polêmica, ela veio a tornar-se um modelo de envergadura terapêutica produzindo os mais diversos interesses.
Estamos publicando o texto sem nenhuma correção ou acréscimo. Da minha parte, o considero nem tanto datado assim... 



Vida e Criação


   Resumo - O trabalho experimental do Centro de Convivência da Pessoa – CECOP, fundado em 1986, pelo Terapeuta Ocupacional Luiz Gonzaga P. Leal, oferece locais e momentos de criações diversas. Momentos suscetíveis de produzirem efeitos terapêuticos, sem que o valor destes seja o seu objetivo. Realizações, produções coletivas dentro de um circuito de mudança e de reconhecimento do exterior. Possibilidade de trajetórias pessoais, agente-ator-autor de sua própria história a ser construída.
  
   Palavras-chaves: Momentos de criação – Efeitos terapêuticos – Produções coletivas – Agente – Ator – Autor.

   Nossa proposta não se inscreve em um projeto puramente terapêutico, mas no de uma experiência de vida. O Centro de Convivência da Pessoa, que foi fundado em 1986, acolhe um certo tipo de paciente com grande dificuldade – isto dentro de uma perspectiva de não segregação, daí o lugar específico que esse centro ocupa, como um local que se apoia em uma busca e uma luta por uma política diferente frente à loucura.
   O Centro de Convivência da Pessoa pela sua estrutura e suas referências a noção de cenário oferece locais e momentos de criações diversas. Momentos de criação que podem produzir efeitos terapêuticos, sem fazer do valor deles o seu objeto. As estruturas, as instalações estão ali para garantir um espaço de jogo, de fantasia e de invenção dando lugar a diversas produções que, dentro de um circulo de mudança e de reconhecimento fora da instituição, assumem o valor de criação artística. Nas oficinas: pintura, teatro, escultura, realização de um desenho animado têm pretexto terapêutico, o objetivo é de expor, de apresentar, de brincar e de levar a seu termo um trabalho coletivo. As referências de trabalho são MATISSE – RODIN – GROTOWSKY – ARTAUD – e profissionais dessas disciplinas.
   Estes tempos de criação constituem um trabalho coletivo concernente ao campo social e cultural. O ato criador, se existe um, é tomado dentro de uma linguagem comum, uma escrita tanto quanto uma maneira de agir. E enquanto forma de trabalho necessário à realização do homem se inscreve no interior de uma prática social e de uma transformação de uma certa realidade, que nós identificamos como aquilo que toca à criação.
   Todavia, se o objetivo que nós nos propomos é de levar a seu termo final o trabalho empreendido, confrontando-o aos olhos de um público, isto não impede que é dentro da preocupação de criar as condições necessárias ao advento de uma palavra apropriada. Nossas tentativas é de fazê-lo nascer como sujeito face a um “fazer”.
   Para melhor compreender o que está em jogo nessas diversas criações, parece-me importante apontar alguns elementos específicos da vida do Centro, por quanto eles podem engajar um certo processo dinâmico dentro dessa instituição.
   Um desses elementos é de levar em conta a dimensão histórica. A instituição clássica anula a possibilidade de uma historicidade própria, não deixando aos indivíduos outra alternativa do que serem agentes de uma história cuja cena se situa alhures. O Centro, de início, não teve outra prioridade do que um projeto nascido de um encontro entre a psicanálise, o movimento de antipsiquiatria, a Terapia Ocupacional e o desejo daquele que foi seu fundador (Luiz Gonzaga P. Leal). A postura atual corresponde à tomada de consideração de uma história (história singular e própria de cada paciente que passam ali algum tempo). Por exemplo, o fato de representar nosso trabalho em um teatro nasceu da palavra de um paciente, que o desejara, palavra ouvida naquele momento da história do Centro, que conduziu a uma reflexão teórica sobre a noção de abertura. Assim sendo, a possibilidade de serem também os agentes de uma história futura, que retoma um momento de sua própria história é dado àqueles que ali vivem. O que permite uma leitura é a colocação de um enquadramento, não como regulamento institucional, mas como estrutura permitindo pontos de referência e questionamento. É também para garantir a permanência de um trabalho coletivo dentro do centro, permitindo as evasões individuais, até mesmo as fugas e as propostas de um trabalho externo. As oficinas, pela sua regularidade no tempo e no espaço participam desse enquadramento – enquadramento deve ser entendido como um campo de linguagem. As produções individuais nele se inscrevem como mediações, trata-se de superá-las a fim de inseri-las em uma articulação simbólica através dos ritos e dentro de uma transformação. É uma dimensão essencial, por quanto permite evitar uma situação imaginária onde tudo pode se ligar do paciente aos cuidadores, sem qualquer interferência de terceiros. Garantia contra a angústia, acha-se ali também para ser continuamente interrogado em sua permanência.
   Esta noção de enquadramento demonstra bem que o trabalho realizado dentro e fora da instituição, em si mesmo não tem forçosamente valor, mas se reveste de um sentido em relação àquele pano de fundo, onde dentro do jogo da ausência e da presença um sujeito pode emergir. Chegamos assim à noção de abertura que descortina a possibilidade de modificações dialéticas. Uma prática da abertura está elaborada: ao invés de oferecer a permanência, o enquadramento da instituição oferece desde então uma proposta de permanência de abertura para o exterior, de brechas de toda espécie. O que permanece é um local de recesso, mas o essencial da vida se desenrola em um outro lugar. Nesta alternância, é a oscilação entre um projeto e uma fuga que está em jogo. É na organização desse tipo de inscrição, dentro de uma ordem social, e do discurso que a sustenta que o paciente vai evoluir em uma história futura.
   Nós estamos atentos, para à escuta do discurso coletivo. O que pode se representar no ato “precede” o fazer. É fundamental, e deve ser reintroduzido no discurso que existe ali (da mesma forma, aliás, naquilo que precede a invenção).
   Dois exemplos de realização de oficina de expressão artística vão nos servir para apreender o processo de nossas propostas criativas através do desejo dos cuidadores. Proponho-lhes retomar o exemplo da peça “Alice no País das Maravilhas”, já representada em diferentes teatros, através de diferentes montagens. E a realização de um desenho animado atualmente projetado em sala.
  
   Tomemos exemplo do teatro:
É a partir do olhar ingênuo de Alice, que não se surpreende com coisa alguma, diante do insólito do mundo onde ela evolui, no olhar dos espectadores, que se situa nossa ação teatral. Nós nos apoiamos aqui no trajeto efetuado por um paciente para ilustrar qualquer palavra de que se trata ali e quais são os seus efeitos.
“Após sua longa queda do terreiro do coelho, Alice tentou em vão abrir as portas da grande e baixa sala onde caiu. Ela retorna tristemente ao meio da sala, perguntando a si mesma como poderia sair”. Percebendo este relato, Carlos se levanta bruscamente e grita.
- “Eu quero sair, deixem-me sair”. Ele bate com a cabeça na parece, derruba os outros participantes.
- “Eu, eu tenho medo. Deixem-me sair”, grita ele.
Adultos atores fazem então eco a seu grito
- “Alice quer sair. Ela tem medo. Está escuro”, e nós martelamos com os punhos as paredes.

Carlos parece acalmar-se por um momento, depois ele repete já com menos violência: - “Eu quero sair. Alice quer sair, tenho medo... Alice tem medo”.
Depois, muito calmo, ele repete conosco: “Alice tem medo, ela quer sair”, mas desta vez inteiramente ao nível do jogo do ator.
  
   Isto se passava no momento do trabalho propriamente dito, na oficina de teatro do Centro. Quando foi representada em público, Carlos participou, gritando conosco – “Eu quero sair”, mas do lugar de Alice, desta vez.
   Foi depois dessa sessão de trabalho que os pais nos interrogaram sobre o que havia se passado com seu filho.
- “Ele fala sempre do teatro. Após sua última sessão, ele esqueceu que tinha medo da escuridão. Pela primeira vez em sua vida desceu ao porão”.
  
   Ato que só o pai tinha o hábito de fazer para ir buscar vinho. Assim, Carlos aceitou representar Alice e representar do interior das convenções do teatro. A partir de uma encenação que nada tem a ver com o normal e o patológico, inscrevem-se efeitos que nós chamaríamos de terapêuticos. A partir dessa data, Carlos apresentava-se, sempre com as mesmas palavras: “Haverá teatro hoje? Posso ir? É certo?”.
   Desta forma, esse paciente representando do lugar de Alice com seu medo, começou a dominar esse medo, deslocando-o: o que merece ser evocado é o domínio adquirido pelo paciente, em função do jogo. Na cena do teatro, Carlos chega com o real de seu sintoma, medo que se traduz no nível do corpo e de sua destruição. O grupo acolhe este medo trazendo então a única resposta possível a esta realidade manifestada por Carlos, isto é, dando um sentido outro que no medo experimentado, isto por um discurso que vem de fora. (A trama do texto é Caroll). É esta intervenção que permite a Carlos superar e deslocar seu sintoma e desta forma aceitando dar-lhe um sentido universal, a saber aqui o sentido que uma menina Alice, sentiu e que o grupo pode acolher.
   Sob a pressão das convenções teatrais, encontramos aí tudo o que nos diz FREUD, quando afirma que é na medida onde o drama subjetivo está integrado em um mito com um valor humano entendido, que o sujeito se realiza. A partir daí, Carlos descobrirá que seu jogo tem efeitos sobre os espectadores, e estes efeitos, por sua vez, tornar-se-ão simbólicos.

- “Eu não quero mais representar no centro, nos diz ele”. Sim, por que?

“Isto não impressiona as pessoas, quero que tenha espectadores” e isto num tom inteiramente diferente daquele que lhe é habitual e onde falava de si na 3ª pessoa.

   Foi após uma representação de pleno êxito, que seria observado que pela primeira vez em sua vida, Carlos poderá reconhecer nele a dimensão do jogo em seus atos. Com efeito, um dia, quando ele então tentava jogar-se debaixo de um carro, parou bruscamente, e olhando as pessoas que se preparavam para intervir, declarou: “Mas eu estou brincando de fazer medo, de me fazer medo”. O que ele pôde adquirir no palco, o saber investir nesta cena como imaginária, após tê-la vivido como real, será em seguida transportado para sua vida diária. 
   E essa aquisição parece ser nada menos que uma estruturação da imaginação necessária á instauração dessa série de equivalência em um sistema onde os objetos se substituem uns aos outros. Aí está, quer nos parecer, toda a força e fragilidade de um tal trabalho, força por quanto é pelo fato que a cena pode ser investida como imaginária, e não como real, que um efeito de simbolização é possível, fragilidade pois o espectador percebe como é preciso pouca coisa para que todo este jogo oscile do lado real. Aconteceu, quando de representações, que esse deslizamento para o real ficasse esboçado: “Eu quero sair”, grita Carlos. No momento do processo, esquecendo que se representa Alice.

“Silêncio, diz o rei, ou eu faço evacuar a sala do tribunal”.
“Ah, sim”, responde ele, retomando então um lugar no jogo.

   Nos vestígios dos passos de Alice, sendo que não é indiferente que eles se inscrevam inteiramente na cena do sonho, o que abandona Carlos com seu medo do rei? “O teatro, escreve ARTAUD, deve ser considerado como o substituto não da realidade cotidiana... mas, de outra realidade perigosa e típica onde os príncipes, como os delfins, quando mostram a cabeça, apressam-se em voltar para a obscuridade”.
   Desses olhares cruzados, a partir dos quais cada um tem um lugar, que pode trocar com outro, isto é ao nível da troca entre ator, espectador, que se representa a realidade concreta do acontecimento teatral, isto em nome das convenções do teatro.
   A obra teatral não é o texto, o livro. O teatro tornaria de preferência sensível, o que na página impressa só pode se traduzir por brancos ou ausência de pontuação, reticências... etc. Ao término desse trabalho coletivo, parece realmente que a criação é secundária a um drama secreto, a um aniquilamento primeiro, onde o universo é derrubado. Nós trabalhamos com os sintomas, as crises, os atos criativos, mas para nós, o essencial continua sendo a escrita do sujeito e de seu desejo.
   O outro exemplo é o da realização de um desenho animado. Ele acentua talvez a melhor noção de intencionalidade, na qual é preso o paciente para agir e criar.
   Quando por ocasião de uma conversação, a ideia de fazer um filme foi levantada e retomada por um paciente: E por que não um desenho animado? A partir daí, uma longa aventura rica em criação de toda espécie, nasceu. Nós nos dirigimos a profissionais, para nos iluminar com a sua experiência. Entre eles, Sávio Furtado, profissional de cinema com grande experiência em curtas-metragens.  A ideia de uma verdadeira realização mobilizou muitos pacientes, e nove dentre eles tornaram-se autores. Um período durante o qual a introdução da câmera, do visor, do: “Silêncio: estamos gravando”, impôs um verdadeiro convite à criação. Criações individuais de desenhos, pintura, colagem a partir de cenários inventados pelos próprios pacientes. No final, apareceu um filme de ficção em cinema de animação.
   Não me estenderei mais, por enquanto ainda teria muito a dizer sobre o desenrolar dessa oficina de criação. Mas, o que é interessante sublinhar, é a maneira como se propõe o paciente a sair de sua PASSIVIDADE; Passividade feita de sintomas, até mesmo de inibições, na qual ele está preso, fazendo entrar sua palavra, suas fantasias, seu jogo, seus fantasmas através de desenhos e pinturas, em uma criação que transforma a realidade deles. Eles assumem um outro sentido, um outro destino por ordem dessa escrita animada e filmada. Inscrição dentro de outro campo, de outro contexto. Não se trata aí de solucionar os conflitos. A tentativa é ir além de sua própria história dentro de uma proposta ativa onde os efeitos “hic et nun”, escapam a eles e a nós, em proveito de uma realização coletiva.
Tornando-se atores, não se poderia dizer que se tornam efeito de seu próprio ato?
Com o ato criativo, o autor mostra à distância um prazer que não investe mais seu corpo.
Então, para concluir, criar alguma vez curou?
   E a outra pergunta é: se a arte é terapêutica, a terapia ocupacional através da arte não esvaziaria a arte de seu conteúdo e de suas potencialidades? Por enquanto, a julgar de nossa prática teatral, o levantamento do recalque que acompanha o efeito terapêutico não sucede absolutamente à produção da obra.
Terminemos com esta frase de PABLO PICASSO:
“O que conta é o próprio drama do ato, o momento em que o universo escapa de si mesmo para reencontrar sua própria destruição.”

Sumário


Vida e criação no “Centro de Convivência da Pessoa”.
   “O Centro de Convivência da Pessoa”, fundado em 1986 por Luiz Gonzaga P. Leal fornece suporte para a estruturação de diferentes locais e tempos devotados ao desenvolvimento da ação criativa. Estes locais e tempos otimistas produzem efeitos terapêuticos, mas sem ser especificamente planejados para isso. Em lugar de pretextos terapêuticos intra-mural, trabalho coletivo e projetos de trocas comuns e reconhecidos pelo mundo externo são desejados. Isto inclui encorajamento individual de cada um em respeitar sua história pessoal e determinar seu próprio caminho de auto-realização.

Palavras-chaves:

Trabalho coletivo - Projetos comuns – Mundo exterior – Terapia Ocupacional - Auto-realização – Criatividade – Potência Criativa.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O ato de adoecer: compreensão para manejo daquele que sofre.

UMA BREVE NOTA: Há uma semana encontrei esta minha fala datilografada e cheia de rabiscos. Trata-se de uma conferência realizada no ENORFITO - Encontro Nordestino de Fisioterapeutas e Terapeutas Ocupacionais. Realizado em Salvador - BA, Dezembro de 1990.
Fiquei na dúvida se publicaria da forma como a encontrei ou se faria uma revisão adequada ao tempo de agora. Decidi que depois de 23 anos, mesmo datada, faz sentido publicá-la. Entendi que foi através dessa escrevinhação, que começei a ensaiar os meus primeiros passos para entender os processos de Terapia Ocupacional numa relação imediata com os processos subjetivos. Naquele época buscava através da psicanálise elementos que pudessem suavizar os conflitos por mim vivenciados no meu fazer clinico. Aliado também da antropologia, fui remetido a Lacan que através da leitura dos seus textos, quebrou-me inúmeros galhos. Leituras densas, instigadoras, inteligentes e absolutamente fascinantes. Diante das dificuldades de entendimento de todos aqueles conceitos, resolvi encarrar o que lia, como se estivesse lendo um lindo e misterioso romance. Terminei por me dar bem, já que fui encontrando grandes veredas e pistas.   

*Luiz Gonzaga P. Leal.



É sempre bom lembrar que um copo vázio está cheio de ar.
(Chico Buarque de Holanda)



   Agradecer o convite por estar aqui, é falar também de minha emoção em participar deste evento, bem como do meu desejo de comunicar minhas ideias. Desta forma, então, falar do quê, senão também sobre minhas histórias...
   Quando consultado para dar uma conferência neste encontro, de início fui tomado por uma dúvida: se falaria em torno de um tema que congregasse interesse apenas dos Terapeutas Ocupacionais, ou se acerca de algo que a um só tempo pudesse também interessar aos Fisioterapeutas. Decidindo pela 2ª opção ocorreu-me escolher o tema.
   O fio condutor que me levou a escolha, partiu da constatação de que nós Fisioterapeutas e Terapeutas Ocupacionais, não apenas tratamos a doença, mas o doente na qual esta se instala. O doente por sua vez, a sua pessoa, empresta significados ao ato de adoecer, que por ser vivenciado como terrificante e ameaçador declara sofrimento e dores.
   É da sua compreensão que resulta um adequado manejo daquele que se encontra atrelado as malhas da doença. Pois estar doente significa, estar preso a uma determinada ocorrência da qual não se pode livrar (o sintoma) e que causa sofrimento, cujo alívio é buscado através do Terapeuta, de suas possibilidades, do seu saber. A ameaça de aniquilamento, de destruição e de morte, são vivenciados de forma intensa e catastrófica, uma vez que estar doente significa facilmente esta regredido e como tal privado parcialmente de um raciocínio lógico e adulto. Essa angústia de aniquilamento provoca que se procure na figura do Terapeuta um poder maior onipotente, que se possa imediatamente promover um controle sobre o que se sente como o incontrolável.
   Nós, Terapeutas Ocupacionais e Fisioterapeutas não fomos preparados exatamente para cuidar de pessoas, e sim de doentes. Fomos por demais influenciados pelo discurso médico, cuja marca, prima pela exclusão da subjetividade do sujeito, ou seja, pela exclusão da subjetividade daquele que adoece.
   Esta subjetividade inerente a cada um, a cada pessoa, empresta um significado, uma tonalidade ao ato de adoecer, pois na verdade, não somos capazes de reconhecer a realidade, senão da forma como ela está organizada dentro de nós.


Discurso Médico – Marcas e caracterizações


   O discurso médico prima por excluir a subjetividade tanto daquele que enuncia como daquele que o escuta. Daí a pretensa objetividade do cientista que, na verdade, está calcada na abolição da subjetividade do autor.
   Evidenciando que é a exclusão das posições subjetivas do médico e do paciente o que funda a relação médico-paciente, é que Lacan dirá que não existe relação médico-paciente.
   O médico só intervém e só fala enquanto lugar tenente da instituição médica, enquanto funcionário, instrumento do discurso médico. O médico só existe em sua referência constante do saber médico, do corpo médico, dá instituição médica. Ele se anula enquanto sujeito perante a exigência de objetividade científica, ou seja, o médico só se autoriza por não ser ele próprio, por ser próprio o menos possível.
   O apagamento da subjetividade do médico pode ser evidenciado ao constatarmos que a lógica institucional – transcende a particularidade do médico que examina, decorrendo daí o fato de o estilo das observações do prontuário de um doente ser o mesmo, independentemente do sujeito que entrevistou.
   O médico diante do outro que sofre, que agoniza, sofre também, não por partilhar do sofrimento daquele, mas por nada poder fazer para superar sua própria impotência perante a doença fatal. Impotência que seria desfeita no momento em que a potencia de seu saber pudesse enfrentar, sem temer uma derrota, o Mestre absoluto, ou seja, a morte. Arma terapêutica, arsenal terapêutico são expressões vigentes no vocabulário médico – para enfrentar o inimigo, o que lhe possibilitará dar provas de sua mestria.
   Dessubjetivação, ainda, que se revela pela rareza do encontro entre médico e doente, ficando este submetido ao tratamento de uma equipe médica – o trabalho em equipe é um dos estandartes que o discurso médico levanta atualmente, ao mesmo tempo que, contraditóriamente, e sem aperceber-se disso, alteia a flâmula da relação médico-paciente – que se reveza junto ao doente, valoriza apenas os dados escritos no prontuário por outros médicos para diagnosticar e prescrever. O que se demonstra no inegável hábito de o médico chegar junto ao leito do doente já ciente de todas as informações da equipe escritas no prontuário.
   Tais informações, tal saber, constituem o elemento que mediatiza, a partir daí, o que se passará no encontro. Encontro que, portanto, não existe, sendo apenas o ardil para o encontro do médico com seu próprio discurso. Sob a máscara de um diálogo, é um monólogo que se instaura. Onde se evidencia a função silenciadora do discurso médico, que ao se valer apénas dos elementos de seu próprio discurso abole tudo o que nele não possa se inscrever.
   Por outro lado, o doente, não é a ele que o médico se dirige, mas ao homem presumidamente normal que ele era e que deve voltar a ser. Homem normal, ou seja, que raciocina com justeza o que significa que ele deve se submeter à razão médica. Qualquer insurgência contra a razão médica é sempre tomada como sinal de desrazão.
   A ordem médica, é sobretudo uma ordem jurídica. O direito, “diz Kelsen”, não fala do ser, mas apenas do “dever-ser” e os meios do direito, as sansões, destinam-se a fazer com que cada um aceda ao dever-ser. O homem tal como é definido pela medicina, também é da ordem do dever-ser, é o homem em boa saúde, aquele ao qual cada um acenderá se seguir as prescrições da razão médica.
   Mas o ser, o mormente doente, não interessa a medicina, daí o médico não se dirigir ao doente, mas ao futuro homem são.
   E é nesse sentido que também se pode evidenciar que não existe relação médico-paciente. Só existe a relação instituição médica-doença.
   Médico e doente destituídos de sua subjetividade prevalecem à instituição médica, lugar da totalidade do discurso médico, e da qual o médico é apenas o anônimo representante -, e a doença – objeto constituído pelo próprio discurso médico, sendo o homem únicamente o anônimo terreno no qual a doença se instala.
   A exigência do uniforme tanto para o médico quanto para o doente hospitalizado – do mesmo modo que no exercito, no presídio, e no convento – parece adquirir sua significação não apenas da necessidade de identificação imediata do sujeito ou das regras de higiene e da assepsia, mas também da uniformização que o duplo anonimato em questão requer.
   É através de uma receita que o médico prescreve ao doente, ou seja, através de uma ordem. A prescrição médica é um enunciado dogmático: coma isso, não beba aquilo, não fume, repouse, faça exercícios... Até a sexualidade  sofre este efeito de ordenação que está implícito na prescrição: manter relações sexuais periodicamente ajuda a manter a boa forma!... O que tem por efeito transforma a vida amorosa do sujeito num dever conjugal, o que é exatamente o modo pelo qual a ideologia dominante encara a sexualidade. Por onde se depreende o conchavo do discurso médico com o discurso dominante, um utilizando o outro para impor seus ditames, suas leis e seus ideais. Daí, que, converter, convencer, vencer, passam a ser palavras de ordem deste discurso, ou seja, o discurso do Mestre. O inquérito médico, configurado pela anamnese, abole a “escuta” – escuta “seletiva”, não valorizando a priori nenhum dos elementos do discurso do sujeito, estando o cuidador submetido aos pré-conceitos para ouvir.
   O que está em jogo é a passagem de um discurso a outro, do discurso do mestre para o discurso do Terapeuta, passagem da posição dogmática para a posição compreensiva. Passagem, enfim, da postura do sujeito que sabe, próprio do médico (domínio do Mestre) a do suposto saber, lugar do Terapeuta.
   Tomemos aqui o exemplo da histeria. A histeria, com seus sintomas denominados pelo discurso médico de migratórios, ludibria o saber médico, colocando-o num impasse. E do médico, a histérica só ouvirá como resposta: “Você não tem nada!”.
   Mas, curiosamente, entre os médicos, comenta-se que ela tem alguma coisa, sim, ela sofre de “piti”... O que para nós, só faz evidenciar a desqualificação que é promovida pelo diagnóstico de “piti", diagnóstico impossível de ser revelado sem desencadear no outro seu intuito mais secreto, a agressão moral. Diagnóstico que tem como função a de desqualificar o sujeito, desqualificando-o enquanto doente.
   A histérica é acusada de simular os sintomas, termos que remete diretamente ao contexto teatral e seu jogo. O papel que deveria representar na cena médica, este papel ela não o desempenha bem. E recusando-se a coadjuvar no papel que lhe apresentam, será, então, seu drama que não será ouvido.
   Esta recusa está na dependência de os sintomas da histérica não remeterem ao discurso médico, mas ao próprio sujeito.
   Na antiguidade, eram as histéricas tidas como bruxas, feiticeiras, possuídas, por isso sujeitas a fogueiras dos inquisidores.
   No presente diz-se: “com esta paciente só matando”, pois tanto num registro, quanto no outro, o que se incinera, se esfuma, se matam é o desejo do sujeito – a sua subjetividade.
   Através das diversas etapas pela quais se efetua o “ato médico”, ou seja, as etapas do diagnóstico, do prognóstico, e da terapêutica, o que se configura é um discurso totalitário que exclui a diferença, único modo pelo qual a subjetividade poderia se manifestar.
   Por intermédio da utilização de um vocabulário ao qual o doente não tem acesso, o discurso médico opera reduzindo o sentido dos diferentes ditos do sujeito, àquilo que é passível de ser inscrito no discurso médico.
   A pluralidade de sentido, característica da língua, é abolida para dar lugar à univocidade de sentido, ideal do código. Desse modo, o discurso médico apropria-se do discurso do sujeito, transformando os significantes de sua fala em signos, em sinais médicos.
   Importa relembrar aqui a definição que Lacan dá do signo, como sendo aquilo que representa alguma coisa para alguém (que saiba lê-lo), diferentemente do significante que representa um sujeito para outro significante.
   Operação de que se vale o discurso médico e pela qual diversos significantes, tais como um abafamento no peito, uma falta de ar, uma angustia por dentro, uma sensação de sufoco etc., serão todos reduzidos, univocamente, ao sinal clínico da dispneia. E isto para que possam ser inscritos no discurso médico. Do mesmo modo, um peso na cabeça, uma ardência na testa, um latejamento na mente, um pensamento que não para de martilhar, serão reduzidos ao sinal clínico da cefaleia. 
   A fala do sujeito é ouvida apenas para ser descartada imediatamente. Onde se depreende a função sentenciadora do discurso médico e seu posicionamento exatamente inverso ao discurso daquele que se predispõe cuidar.
   O discurso médico, escamoteia o discurso do sujeito não restituindo-lhe o seu lugar, ou seja, constitui uma fala em que o sujeito da enunciação não se manifesta, em que a verdade anunciada por ele deve ser independente daquele que a enuncia.
   Desta forma, para finalizar, é impossível conciliar psique e soma no campo do discurso médico. O que a antiga máxima parece, entre outras coisas, sugerir: menssana in corpore sano.