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domingo, 20 de maio de 2018

TERAPIA OCUPACIONAL & POETICIDADES SEMIÓTICAS




Pode parecer extravagância comparar um autor já consagrado no século passado com outro ainda em processo de auto-superação. Por enquanto o melhor seria manter um clima de suspense, desde que as analogias são quase sempre atrevidas, perigosas, quando não abusivamente superlativas. Restando alguma ansiedade ao enfrentar um raciocínio comparativo entre duas personalidades tão radicalmente singulares. Além e aquém do jogo de presenças e distâncias, evocações e permanências, dádivas e certezas. Em campos de atuação e prestígio talvez conflituosos. Por isso, esqueçamos os confrontos geracionais, formações específicas, ideários libertadores.
Abismos do Brasil interferindo sobre todos nós.
Nômades pensamentos exigindo novos desafios e perplexidades.
Aquarelas brasilíricas despedaçadas.
Aonde fomos parar? Quantos enigmas indecifráveis?
Da revolução pedagógica desejada por Paulo Freire o que se pode ser transferido e reinventado pela clínica de Luiz Gonzaga Pereira Leal?
O educador Paulo, no ambiente de planejamento desenvolvimentista, reformas de base e múltiplas militâncias, inventou um Sistema de Educação: não um simples método de alfabetização para jovens e adultos iletrados. Entretempos dos finais dos anos 50 ao início dos anos 60 do século XX. Paulo Freire experimentava uma utopia concreta.
O terapeuta Gonzaga Leal, nas pulsações redemocratizadoras das décadas de 80/90, reelaborou a situação da psicose, além das intervenções tradicionais. Situações limite da contracultura investindo nas relações moleculares. Crise de transformações. Outras utopias discretas?
Com esses dois registros, melhor valeria uma tentativa de reaproximá-los. Ou melhor narrando: re-interpretá-los. Assumindo riscos, sem renegá-los. Duas configurações da historicidade no particípio presente de nós, mesmos e outros. Dois registros. Duas reconfigurações. Três apostas como hipóteses.
A primeira hipótese inserindo Paulo Freire e Luiz Gonzaga Pereira Leal numa vivência de complexidade antropológica. Ambos praticando leituras do mundo através de perspectivas substantivamente culturais. Insatisfeitos com o erudicionismo, muito mais ornamental que corporificado, tanto Paulo Freire quanto Gonzaga constroem o núcleo da história no cotidiano. De nossas carências, necessidades, expectativas, tradições e contra-dicções. Investigam, projetam, discutem hábitos, crenças, ilusões, mitos e preconceitos. Apontando e muito mais apostando no sentido da criticidade permanente.
Para onde nos levariam esse terapeutas-educadores da arte-vida?
Quantas veredas nos sugeririam?
Entre localismos e universalismos aonde vamos disparar?
Apontando e apostando nessa palavra geradora – criticidade – os dois pensadores não se confinam no âmbito dos racionalismos empiristas nem intelectualistas, mas intencionam uma racionalidade aberta ao diálogo. Assim instaurando a segunda hipótese de nossa suspeita e empática interpretação. Suspeita por veracidade e poeticidade por empatia.
Em consequência dessa postura dialógica-comunicativa, no trânsito de todos os debates e ideologias, a posição crítica (não criticista) se fundamentaria numa disponibilidade de afeto. Afetividade múltipla, abrangente, totalizante em processo, embora jamais totalitária enquanto exercícios de excludências. Afetividade, radical mas não sectariamente, democratizadora. Sem a tirania da possessividade. Sem a denegação das diversidades. Sem a fantasia das retóricas.
Paulo Freire transformando a sala de aulas expositivas monológicas em círculos de cultura de todos os participantes: educando-educadores e educadores-educandos.
Transformando porque cooperando com todas as modalidades de intervenção dos seres humanos em suas experiências comunitárias de trabalho, lazer, religiosidade e filosofias de vida. Coparticipações. Intercomunicações.
Gonzaga Leal reconfigurando uma concepção de Clínica em Laboratório de Afetos e Sensorialidade. Atravessando um caleidoscópio de linguagens. Ultrapassando os gestos mais opacos e aparentemente sem sentido em projetos da imaginação lúdica, brincante na interatividade. Seus parceiros-companheiros de Laboratório interagindo ao redor de uma mesa ampla, com ambientação de livros e objetos os mais diversificados. A esses objetos, Gonzaga prefere chamá-los trocinhos, vestígios de época, resíduos de civilização, bens culturais ao alcance das manualidades, desempenhos e reinvenções. Seus parceiros-personagens de aventura criativa. Babel de nossos imaginários e musicalidades. A realidade em artefatos e brinquedos.
Se a primeira hipótese reaproximou Gonzaga Leal de Paulo Freire através das convivências antropológicas; se a segunda hipótese fez a ponte/fonte da criticidade para a afetividade, qual será nossa terceira hipótese? Em nome de qual profana trindade?
Desejando abolir ou, pelo menos, driblar o fôlego das dualidades e dicotomias, ambos trabalharam e continuam trabalhando com a esperança da práxis na complexidade. Pelas interpenetrações do humanismo das letras, artes e ciências com o universo das linguagens, gestualidades e sonoridades. Pelas interfaces do discurso no silêncio, da lucidez na loucura, da paixão na razão, da ignorância nos saberes. Pelos labirintos da racionalidade transitiva e transacional. Pela lógica dos paradoxos, quando a “faca só lâmina” experimenta a metamorfose de todos os sentidos, percepções, sensibilidades e significados compartilhados. Essa terceira hipótese nos introduz, tornando-nos cúmplices do multiverso dos trocinhos.
Das leituras do mundo às palavrações da criticidade.
Do prazer do texto ao dialogismo dos afetos e sensações.
Dos traços do letramento às veredas dos paradoxais trocinhos.
Hipótese terciária, das unidades em complexidades, dos paradigmas em paradoxos, das percepções em fabulações, das redundâncias em diferenciações. Hipótese quase hipérbole: pelas intensificações da terapia ocupacional em ação cultural libertadora desdobrando-se em semiótica do olha tátil.
Além do raciocínio comparativo entre o educador Paulo Freire e o terapeuta Luiz Gonzaga Pereira Leal continuaremos oscilando entre diferenças e convergências, identificações e alteridades, localismos e sombreados, closes e panorâmicas, cantatas e dissonâncias cognitivas, um substantivo questionamento: quais os trocinhos e destroços que sobraram, duraram, perduraram em nosso processo psi-civilizatório?
O Brasil de todas as barbáries tão longe perto demais? De nossos trocinhos, objetos de dúvida e de estimação, sujeitobjetos de nossas memórias roubadas e mitologias replicantes. Trocinhos, segundo a denominação carinhosa de Gonzaga Leal: nosso passado em devenir, lembranças transfiguradas, imitações reinventadas, co-realidades afetivas, conceituais, valorativas. Táticas e estratégias religadoras. Traços de imperiosa e dadivosa sobrevivências. Troços e traços ainda sempre carnavalizadores, mundo pelo avesso, máscaras desusadas, afetuosos desmascaramentos. Surpresas além do bem e dos males provinciais. Além do além do AMOR-TE. Pulsões revivescentes. Quase tudo em particípio presente.
Salve-se quem souber de nossas trocas e troças, tramas e traumas, desejos flutuantes e afetos pulsantes.
Salve-se quem souber arriscar-se pela artevida no cotidiano.
Salve-se quem escapar dos messianismos impagáveis. Quixotescos?
O espaço-tempo da clínica-laboratório de Gonzaga Leal, muito mais do que re-unir e aglutinar experiências, pode significar um conjunto plural de historicidades. Linhas de fuga do eterno ao efêmero. Todas as seduções do explícito ao introjetado. Todos os desejos, sem leis nem hierarquias, além das necessidades e demandas.
Da arqueologia dos saberes, epistemes e cortes epistemológicos, matrizes de reconhecimento, às reapresentações do presente cotidiano. Rupturas e continuidades. E tudo é muito mais. Além dos rótulos e das grafitagens. Além das rótulas e dos modismos nominalistas. Das ironias românticas às paródias e pastiches de todas as modernidades. Transpirando-se na temporalidade de convivências por intensidade. Tudo a partir do constante recomeçar pela SEMIÓTICA DO OLHAR FALANTE.
Tudo a ser experienciado: visto, tocado, cheirado, apalpado, descrito, agido, comovido, narrado, contemplado em ações compartilhadas.
SEMIÓTICA DO OLHAR INTERCOMUNICANTE.
Porque tudo continua sendo muito mais. A ser revivido e reinventado.
Um jorrar jubiloso de linguagens.
SEMIÓTICA DO OLHAR MUSICAL.
Muito além do além das lendas, como expressaria em louvor de todos o poeta Carlos Pena Filho. Imagens maternas do lócus-nordestino ao cosmopolitismo mais nômade. Travessias. Dialogismo das possibilidades entre mães e marionetes, ausências e figurações. Bem perto de um Jardim ZEN sobre a mesa de encontros, devaneios, interrogações. Enamoramentos. Iluminações. Medos. Transfigurações. Coleção de quadros (im)pacientes pelas paredes. Artesanatos indígenas. Ancestralidades. Escultura de uma velha pensando à espera da lealdade de um outro Rodin ou Camille Claudel. Transposições.
SEMIÓTICA SO OLHAR VISIONÁRIO.
Calidoscópios de perdidos e reencontrados.
Proust à deriva de Guimarães Rosa. Aprendizagem permanente no livro dos sofreres, quereres e prazeres de outra Clarice Lispector ou Hilda Hilst. Quem desvendará A Roda da Sorte e da Fortuna?
Quem se imaginará coparticipando de uma outra Santa Ceia, tão chilena quanto nordestina?
Quem dialogará com a tecelã decantada talvez pelo poeta Mauro Motta?
SEMIÓTICA DO OLHAR TÁTIL – MUSICAL.
Descentrando-se e multiplicando-se pelos instrumentos de percussão.
Jogos de vida psi-compartilhada. Além dos departamentos especializações e reducionismos. Conceitos incorporados. Afetos irradiantes. Nenhum lance de dados (e dardos) excluirá a loucura e a lucidez, tecendo nossas manhãs cinzentas, nossos luares de angústia, nossos dilaceramentos televisivos, nossa potência como alegria de conviver. Por isso nada poderia ser resguardado entre gavetas, armários, prateleiras, paredes, livrarias, suspenses, perguntas, promessas de felicidadania. Apesar dos terrorismos e roubalheiras.
Jogos de amorosidade em contracanto. Porque tudo é muito mais. Agenciamento de novas subjetividades e intercomunicações. Religações da pedagogia paulofreiriana com a política enquanto terapêutica do cotidiano e poeticidade sem fronteiras.
SEMIÓTICA DO OLHAR SEM LIMITES.
Nesse nosso exercício de intempestivo dialogismo entre Paulo Freire, educador de criticidades democratizadoras, e Luiz Gonzaga Pereira Leal, terapeuta de abissais afetuosidades, o tempo-espaço da POIESES nos instaura e complexifica e solidariza enquanto CAOSMOSE. Transformando signos em SIGNAGENS, como acrescentaria Décio Pignatari.
SEMIÓTICA DO OLHAR TOTALIZANTE.
Por eles, através deles, interpenetrando-se além deles, a terapia ocupacional percorre nossa condição lúdico-humana como vida em jogo, espiral de desejos, anotações da dúvida, envolvimento versus estranhuras, afetividade irrompendo como instigantes ensaio de trocinhos de outras poeticidades. SEMIOTICIDADE de nossos agentes transformadores, Paulo Freire e Gonzaga Leal.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

TERAPIA OCUPACIONAL: entre o que se imagina e o que se pode tocar – com palavras no meio



Abordarei aqui, de acordo com uma forma particular de pensar a Terapia Ocupacional, algumas observações que tenho feito no decurso da minha vivência cotidiana com psicóticos.
Para começar, remeto-me ao Centro de Convivência da Pessoa (CECOP), instituição da qual faço parte há vários anos e onde trabalho junto com outros colegas. No CECOP, tudo ou quase tudo está preparado para que os pacientes vivenciem uma atmosfera de atividades, responsabilidades e co-gestão de interesses e gestos, com vistas a uma transação ativa dos pacientes com a realidade. Isto porque é próprio dos quadros psicóticos o estancamento deste movimento, desta aprendizagem.
Para isso, temos como eixo central de intervenção algumas estratégias que, a rigor, desenham o espaço institucional. Vejamos:
1. Construção de um campo de ação no qual o agir do paciente possa ocorrer voluntária e espontaneamente. Esse campo de ação e interação, por suscitar significações, acaba constituindo-se em campo produtor da subjetividade individual e coletiva, isto porque, neste contexto significativo, o paciente gradualmente vai se percebendo em movimento. Em ação – em situação.
2. Nesse campo de ação significativa, a produção e pronunciamento do paciente inserem-se na dimensão do vínculo social, remetendo-o, portanto, à construção concreta de sua existência.
3. O campo de ação, estando associado a um cotidiano criativo, pedagógico e estético, vai possibilitando o paciente substituir uma forma repetitiva e vazia de vida por atividades que o levem a readquirir um sentido de existência. Através do exercício de um complexo múltiplo de ações, o paciente vai lançando mão do gesto criativo e portanto, ativando processos de mudança.
4. O aguçamento da sensibilidade e dos afetos daí resultante proporciona ao paciente uma certa intimidade com o “caos” e assim ele sai ganhando territorialidade. Territorialidade no sentido de estabelecer laços cada vez mais conscientes com a vida.
Então, o que significa para nós Terapia Ocupacional? Essencialmente passagem do tempo. Colagem, um estado alterado. Meio ambiente. Divertimento. Organização de ideias a partir de artifícios concretos. Reafirmação do presente. Tempo estruturado. Meditação. Estado de pânico. Testemunho. Memória. Fúria. Texto em movimento. Figura no espaço. Dialética entre o agir e pulsar. Movimento da luz. Retrato. Visão. Confissão. Defecação. Máscara. Espaço habitado.
Enfim, produção de diferentes cenas.
Assim entendemos que a Terapia Ocupacional pode promover acontecimentos onde nada se produzia, onde as coisas se estagnavam na pura redundância, suscitando a emergência de singularidades com suas aberturas pragmáticas, suas virtualidades, seus universos de referência.. Por exemplo, certos pacientes de origem humilde, simples, são levados a produzir artes plásticas, teatro, vídeo, música etc, quando antes esses universos lhes escapavam completamente.
Por sua vez, burocratas ou mesmo intelectuais se sentem atraídos por um trabalho manual na cozinha, no jardim em cerâmica etc. O que importa aqui não é unicamente o confronto com um material expressivo, é a construção, a partir daí, de complexos de subjetivação: pessoa – grupo – material expressivo – rocas múltiplas que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, se ressingularizar. Dessa maneira se processam transplantes que procedem de um campo criativo, portanto de vida, criando-se fecundas modalidades de subjetivação, semelhantes ao modo como um artesão produz objetos a partir do “material” de que dispõe. Esse processo de subjetivação implica a injeção de componentes heterogêneos no surgimento de pontos de bifurcação, fazendo com que a um só tempo um pequeno acontecimento abra novos campos de possibilidades, novos roteiros. Convém lembrar que os roteiros dos psicóticos quase não lhe propiciam um eixo de orientação. É preciso conduzi-los a construir novos roteiros. Do pânico, do encurralamento, brotam novos sons, desenhos, poesias inesperadas. Um novo tipo de afeto, uma nova qualidade de vínculo, uma relação inédita podem ter lugar a partir de uma experiência mutante.
Em tal contexto, observa-se que elementos os mais diversos podem contribuir para a evolução do paciente, tomando por base processos de subjetivação: as relações processadas com o espaço arquitetônico, a co-gestão entre os pacientes e os responsáveis pelos diferentes vetores terapêuticos, a apreensão de todas as oportunidades de abertura para o exterior, a exploração processual dos acontecimentos, enfim, tudo aquilo que se pode contribuir para a criação de uma relação autêntica e singular com o outro. Isto porque, é matriz do projeto cecopiano a presença permanente da palavra, de trocas, de problematizações, de ações, de agires o campo da realidade, no campo do cotidiano. Primamos pela manutenção de um campo de ação que possa promover a emergência das mais variadas linguagens e ecos, tendo em vista a vivência de uma experiência retificadora. Senão vejamos: não raro, famílias nos procuram alegando que seus filhos são muito parados, não se interessam por nada e portanto precisam de um lugar onde possam se ocupar. No primeiro contato do paciente com a instituição, observamos que certos mecanismos são acionados, dando lugar a determinados gestos: a iniciativa de ligar uma TV, de pedir um copo d’água, de voluntariamente se dirigir à oficina de criação; gestos em si elementares, embora não cogitados pela família como possíveis de o paciente realizá-los.
Supomos com isso, que o CECOP acaba por converter-se no que denominamos de “Usina de Criação”, cujo ponto de lance são os processos de subjetivação, resultante da criação de novos roteiros de vida em transversalidade inesperada com antigos roteiros. Esses processos vêm desenhar novo devires, criando e abrindo frestas na individualidade serializada à qual o psicótico encontra-se ancorado.
No CECOP, utilizamos uma grande variedade de atividades, como pintura, música, vídeo, literatura, poesia, teatro, jornais escritos e falados, expressão corporal, passeios, jardinagem etc. Tomamos todas estas atividades essencialmente como linguagens de uma profunda riqueza, uma vez que injetam novos códigos nas antigas fortalezas da territorialidade do já feito, do já dito. Nessa perspectiva, o desejo assume o lugar da invenção, efetivando processos de mudança, objetivando um novo devir, ou seja, o chamamento de determinada coisa que ainda não está aí, mas que existe como possibilidade. O devir do sentido da construção cotidiana da realidade.
Tenho observado, em muitos casos, que ao cuidar de psicóticos torna-se necessário e às vezes prudente abrir mão do corpo estabelecido, isto é, o psicológico, o universitário, o nosográfico etc, para depois recompor esse corpo a partir das redes de relações. Para isto, é preciso estarmos abertos aos acontecimentos, ao imprevisto, ao inédito, àquelas “pequenas manchas que tendem a surgir, de forma semelhante às manchas que surgem na tela quando o artista pinta” (Felix Guattari). Os psicóticos são muito imprevisíveis, razão porque mantém uma relação muito rica com a estética, isto é, estão sempre em busca de fendas para a organização, na medida em que as coordenadas do seu universo são muito frágeis. É comum observarmos gestos de pacientes que nos causam certa impressão, isto porque os remetem à constante busca da forma e expressão de conteúdos. Grafites em paredes e móveis, rabiscos e desenhos espontâneos em papéis, performances etc, são gestos que observamos no cotidiano de pacientes psicóticos e que, via de regra, expressam sinalizações de busca de conexões.
Partindo dessa premissa, torna-se necessário, torna-se necessário dar-lhes a oportunidade de contato com materiais concretos que oportunizem por sua vez uma produção também concreta, quer dizer, uma criação. Falar em criação é também dizer da responsabilidade da instância criadora em relação à coisa criada.
No CECOP existe uma espécie de tratamento barroco da instituição, em que a procura de novos temas, novas variações, novas leituras estão sempre postas em tela, com o objetivo de conferir aos psicóticos marcas de subjetivação e autenticidade. A partir dos mínimos encontros, das pequenas dobras advindas dos mais variados contextos, brota uma rede de relações de natureza interfertilizante que, a rigor, respondem por processos de produção de uma nova subjetividade. O que importa, portanto, é poder trabalhar programas de vida em função de personalidades com um certo grau de complexidade. É como se para cada pessoa que nos procura fosse necessário “reescrever”, refundar o CECOP. Para tanto se deve estar disposto a assumir discursos muito heterogêneos, sem que isso venha a significar duplicidade do discurso. Trata-se principalmente de adotar uma escuta singular em face de um acontecimento também singular. Afirma Guattari: “(…) o sujeito não é tão evidente, ele não está dado, ele não é naturalmente engendrado: é preciso trabalhá-lo. Sua modelização – na realidade, sua produção – é artificial e o será cada vez mais. A subjetividade coletiva, ela também, tem necessidade de uma prática em constante evolução(…).”
Será isto realmente uma proposta de abertura de alguma claridade? Ou será a claridade uma forma de cegueira, uma forma de ilusão? Que claridade realmente o paciente busca? Inferimos que é uma claridade semelhante ao brincar de cabra-cega, quando uma pessoa de olhos vendados, tateando, tenta atingir, pegar e identificar quem e o que está à sua volta. Na maioria das vezes o que é encontrado é o “ponto”, quer dizer, uma área da retina que ainda se encontra sensível à luz. É o turbilhão se convertendo em síntese. É a possibilidade do gesto. É a vertigem caótica que se encarnou na produção de um fazer criativo. E, neste aspecto, para o paciente o mundo e o outro não lhe falam mais a mesma voz, com o mesmo tom. O paciente entra em diálogo não tanto com uma ordem delirante, mas através de uma ordem de natureza socializante. Cada psicótico é ímpar na sua maneira de viver a psicose, portanto, é necessário não sermos redutivos tentado impor-lhe um sistema de igualdade.
Venho trabalhando com psicóticos há algum tempo e, apesar de tudo, honestamente, às vezes me vejo procurando saber o que fazer. Sou alguém consumido pela curiosidade do que está por vir.
Como produzir uma subjetividade processual onde tudo está bloqueado, paralisado, estratificado, num jogo de cartas marcadas? Para mim está claro que quando os psicóticos presenciam o perfil de um trabalho, de algum movimento que lhes inspire confiança e vida, não raro deixam de se engajar. Por outro lado, torna-se problemático alguém responder e atender a padrões anêmicos e estéreis de comunicação. Se o Terapeuta Ocupacional se utiliza das mais variadas linguagens para viabilizar ações terapêuticas, a Terapia Ocupacional é por excelência uma abordagem de natureza comunicacional e dialogante. Assim, o Terapeuta Ocupacional é alguém que pode ser identificado com a figura d trovador, do poeta, do viajante, do malandro, do ator, do cantor, do músico etc. Imagem-modelo, molde corporificado junto ao qual os psicóticos podem vivenciar experiências significativas numa arena também significativa.
É um pouco em função disso que conduzimos nossas intervenções. O que fazer em tal contexto, com tal pessoa ou com tal grupo, para que se tenha uma relação tão criadora quanto possível com a situação em que está vivendo – como um músico com sua música ou um pintor com sua pintura?
Sobre essa questão refere Guattari, no que diz respeito à cura: “Uma cura seria como construir uma obra de arte; com a diferença de que seria preciso reinventar, a cada vez, a forma de arte que se vai usar – quer dizer que o indivíduo adquira um ‘plus’ de virtuosidade, como um pianista para certas dificuldades”; ou melhor, mais disponibilidade, mais humor, mais abertura para pular de uma gama de referência para outra… mais charme, mais simpatia.
Os recursos terapêuticos ocupacionais, por serem diretos, ativos, cinéticos, tornam-se poderosos. Da descoberta do prazer de ter mãos e corpo que criam, que fabricam, o psicótico passa a falar de uma outra referência que não a da loucura. Passa a falar através da criação e assim já não é mais tão louco, isto porque passou a produzir novas posições, novas associações, novas reivindicações, novas visões.
Certos pacientes se surpreendem ao ver que suas criações são objeto de apreciação, outros se espantam ao constatar que podem representar uma peça teatral. Alguns são tomados de prazer vendo sua criação como algo utilizável.
Terapia Ocupacional, em síntese, é isto: - imagens em colisão. Colisão determinante de uma cinética, de uma anarquia; implícita no fazer - desfazer, construir – desconstruir, compor – decompor para assim chegar à “arquitetura” desejada, u seja, a um “alcance pragmático”.
Trata-se portanto de uma vivência de êxtase e paixão.

Fazer um percurso entre dois ou mais espaços gera movimento, ação, figuras correndo, objetos cinéticos. Tudo isso vem colocar o paciente na dimensão do provisório, do contingente, do precário, do fugaz e do efêmero da existência, do limite, contido no fato de que vamos necessariamente morrer e de que as formas e os processos que criamos para mudar a vida são finito e falíveis. E, no entanto, a consciência dessa limitação não diminui o mérito do empreendimento. Ao contrário, o valoriza.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

CENÁRIO TERAPÊUTICO OCUPACIONAL: alteridade em espaço e tempo

“Tempo-Tempo-Tempo-Tempo
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos.” 
                   (Caetano Veloso) 


I - Uma breve introdução
Este trabalho tem sua origem em reflexões sobre o que convencionalmente se designa “sala ou setor de Terapia Ocupacional”; estaremos aqui tentando avaliar este “Lugar-Espaço” enquanto detentor de potencialidades que lhe assegurem atributos terapêuticos.
Convém ressaltar que pouca importância tem sido atribuída a este “Lugar-Espaço” no sentido de reconhecê-lo enquanto “continente” que possa favorecer e abrigar uma experiência, que, por assim dizer, possa converter-se em “experiência retificadora”. Pelo menos é isso que genericamente visualiza- -se como objetivo, em se tratando de cuidados a pacientes psicóticos.
Nas instituições, este “espaço-lugar”, via de regra, não é posto e entendido como objeto de primazia e prioridade. Constitui-se sempre numa “Cavidade escura” – porque sombria, fria, contendo pedaços e restos, objetos ali colocados de forma mais ou menos aleatória, sem refletir-se sobre a importância e função que podem assumir no processo terapêutico ocupacional. Espaço anatomicamente deficiente, aleijado, deformado, produzindo assim um impacto em quem nele adentra. Torna-se então objeto de recusa e afastamento, porque amedronta, assusta, apavora.
É neste “espaço-lugar” abrigador que os Terapeutas Ocupacionais buscam e insistem em exercer seu ofício, cuja essência reside em favorecer ao paciente um reinvestimento na realidade externa, através do qual uma construção possa se processar, via o fazer, o experimentar, o fabricar. Esse “espaço-lugar” carece de uma materialidade que o sustente, delimite, demarque, para assim apresentar-se enquanto espaço significativo. Este fazer implica, no entanto, vivências e revivências de rituais, ou melhor, o contato com um espaço-tempo que se distingue assim de outros sem significação, porquanto vividos sem a delimitação, que o defina como personalizado e organizado em função de sua finalidade terapêutica.

II – Terapia Ocupacional – uma conceituação a ser pensada
“Tempo-Tempo-Tempo-Tempo
 vou te fazer um pedido.” 
                          (Caetano Veloso) 

A Terapia Ocupacional, ao longo de sua trajetória, tem sido conceituada, portanto, das mais variadas formas. Isto denota a pluralidade deste campo. Porém, parece-me oportuno pensar sobre o que certa vez um paciente me disse sobre o que significava para si a Terapia Ocupacional: “A Terapia às horas, e se apaixonar por aquilo que a gente faz. Na Terapia Ocupacional fazemos coisas para os outros verem e gostarem. As horas na Terapia Ocupacional passam mais rápido”.
O que o paciente Antonio Roberto expressou pode ser lido através de várias ópticas e vertentes. Contudo, no seu depoimento, fica evidente a experiência subjetiva de representação do “fazer” inserido na dimensão do espaço e do tempo, que por sua vez definem um contexto a ser enfrentado. Neste confronto o paciente arrisca-se a viver emoções através das quais o indivíduo não se limita à contemplação solitária de si, mas é também contemplado no que diz, no que exerce e no que faz. Nesta dimensão, o monólogo converte-se em diálogo, o singular converte-se em plural, o um converte-se em uns, o que apresenta fixo vai ganhando movimento, e o que se era errante gradativamente vai tomando o seu devido lugar. 
A atividade inserida na ordem de espaço e tempo define assim um contexto, que, regido por normas previamente estabelecidas em consenso, por aquele(s) que dela participa(m) passa a ocupar um lugar qualitativamente distinto das mesmas atividades quando realizadas no cotidiano.
A íntima ligação com noções de obrigação e dever confere ao exercício da atividade em Terapia Ocupacional um movimento, uma dinâmica, uma regularidade, imprimindo-lhe assim “caráter ritual”, estabelecendo portanto uma união ou mesmo uma comunhão, ou pelo menos uma relação orgânica entre paciente e terapeuta podendo o primeiro confundir-se, ora com a pessoa do terapeuta ora com o coletivo, que são dados no início como dissociados. 
Fica assim evidente a contraposição de “Espaço-Tempo-Atividade” que encerra “significações” e “Espaço-Tempo-Atividade” desprovido de sentido, identificado com a desordenação.

III – Cenário de Terapia Ocupacional no que pode comportar 
“Ainda assim acredito 
Ser possível reunirmo-nos 
Num outro nível de vínculo 
Tempo-Tempo-Tempo-Tempo.” 
                        (Caetano Veloso)

Quando se fala cenário, logo se imagina o que o mesmo possa representar em termos de comprimento, largura e altura, assegurando assim um espaço que possa abrigar determinado instrumental, possibilitando a ritualização da atividade cênica. 
Por outro lado, entendemos que qualquer espaço, para tornar-se significativo ao homem, precisa ser demarcado concreta ou imaginariamente, e no qual uma ordem específica é vivenciada, que, portanto, lhe concede significação. Uma ordem interna estabelecida, em oposição ao espaço externo, muitas vezes vivenciado de forma desordenada. 
O cenário terapêutico ocupacional deve desta maneira, ser um espaço evidentemente dotado de dimensões estratégicas, contendo instrumentos que deverão também ser tomados como espaços em si mesmos: a mesa, as cadeiras, a tela, o cavalete, os tubos de tintas, as prateleiras, etc. são instrumentos-espaços e definem os aspectos anatômicos e geográficos do cenário terapêutico ocupacional. Anatômicos porque à semelhança de um organismo, reúnem-se para a formação do todo; geográficos, na medida em que estas partes delimitam territórios dentro do continente maior e portanto definindo uma forma particular de circulação dentro deste “Espaço-Continente”.
A casa, o palco, o templo, o quarto, o campo de futebol, etc. se configuram em espaços delimitados aos quais o homem atribui significados. 
No cenário terapêutico ocupacional, a mesa, a tela, os tubos de tintas, o tabuleiro de jogos, a folha de papel, o tear, o tecido, etc. adquirem significados, já que através deles o paciente expressa veemente sinceridade e despojamento, nos quais suas fantasias e fantasmas ganham materialidade, podendo assim ser enfrentados e dominados. Esses instrumentos-espaços quando retirados da “Inércia”, vêm por sua vez colocar em movimento quem ousa tocá-los ou transformá-los, convertendo assim um desejo, uma vontade, em objeto esteticamente observável por si e por aqueles que comungam daquele espaço. 
A “Cena-Evento” ali representada de forma ritual apresenta-se estruturada em relação ao espaço, cujo ponto central é “uma mesa com cadeiras”, ponto por excelência gerador de movimentos centrípetos. O movimento ali deflagrado empresta ritmo à preexistente harmonia contida naquele espaço. Desta forma, o cenário terapêutico ocupacional adquire uma “fisionomia estético-sensorial”, convertendo-se então em espaço de natureza provocativa no qual fenômenos e fatos são vivenciados e portanto sujeitos a um registro. 
O som, a luz, as cores, as formas, o odor, os sólidos, etc. traçam linhas reais ou imaginárias que demarcam o campo de ação e interação possibilitando-se assim, modulá-lo, aquecê-lo, ativá-lo, possuí-lo. 
Convém, assinalar o que nos diz Nise da Silveira sobre a questão do espaço e sua relação com a psicose: “O que causa o delírio e a alucinação é, sobretudo, a aproximação excessiva do objeto. Eu observava nas pinturas dos doentes que os objetos estavam tão próximos, que quase se superpunham.” 
É de se notar que a Terapia Ocupacional cumpre uma função compensatória através de “linguagens outras”, pelo fato de processar-se em espaço significativo, num tempo mítico e repetindo um modelo de criação. 
Este cenário, possuindo propriedades que lhe são inerentes, promove o conhecimento e reconhecimento principalmente do que perceptivamente era experienciado de forma caótica e indiferenciada, cumprindo assim uma função ordenadora.
Observemos o que diz Freud: “A consciência passa pela percepção.” 
Estas propriedades conferem ao cenário terapêutico ocupacional um valor simbólico, portanto organizador e exploratório. Vejamos algumas delas: 

1 – Conformidade 
“De modo que meu espírito 
Ganhe um brilho definido
E eu espalhe benefícios 
Tempo-Tempo-Tempo-Tempo.”
                       (Caetano Veloso) 

Propriedade através da qual as partes passam a conceber e definir o todo, articulando-se entre si. Nesta concepção uma certa organização é visualizada permitindo assim uma fotografia do todo e não das partes.
Este recinto, comumente quadrado, e os instrumentos nele contidos devem, numa combina- ção harmônica, imprimir uma forma cujo objetivo é promover impressões relacionadas com estrutura, ordem, lugar. 
Diz-nos Micea Eliade: “O lugar nunca é escolhido pelo homem, ele é simplesmente descoberto por ele.” 
Ao contrário de cenários destituídos de harmonia, que provocam distanciamento, afastamento, acentuam fragmentação, portanto não referendam, não integram, não acolhem, cenários harmonicamente constituídos convidam à ação e à interação, ao convívio. Esta referência externa ordenadora, vem contrapor-se à experiência interna de dissociação e desmanchamento vivida pelo psicótico. 
O quadrado é tido como um dos quatro símbolos fundamentais, juntamente com o centro, o círculo e a cruz. Sendo um plano ancorado em quatro lados, simboliza a interrupção, a parada, a retenção do instante, implicando também uma ideia de solidificação e até mesmo de estabilização. Quero lembrar que muitos espaços significativos, tais como altares, templos, praças, casa, quarto, tendem a uma forma quadrangular. Em termos simbólicos o “quadrado” é algo que engloba, protege, sustenta. Para Eliade “representa um lugar reservado aos processos dinâmicos de transformação e renovação, determinado pela necessidade, de inviolabilidade do seu campo de ação”.
É neste lugar-espaço harmonicamente constituído, concreto, real, que o paciente é arrastado para o espaço do sonho, que o estimula e incita, e no qual as coisas ora se fundem e ora se confundem. É como se aqui tudo fosse possível. 
Pintando, modelando, jogando, tecendo, escrevendo, o paciente penetra nas suas projeções, atravessando assim o espelho. Neste espaço a ritualização do passado e a simulação do futuro justapõem-se às novas percepções da pessoa. Ouvi certa vez, e isto não é raro, de um paciente o seguinte comentário: “Luiz, jamais pensei em fazer tal coisa. Achava que não dava pra isso. De onde fui tirar essa ideia?”. O comentário era sobre pintura e o conteúdo nela expresso. A experiência parecendo-lhe então inédita, provocou-lhe um misto de impacto, surpresa, medo e gratificação. 
Este espaço que se revela à pessoa sob uma ou outra forma, na verdade trata-se de um espaço organizado, cosmicizado, quer dizer, provido de um centro, servindo então de muralha e defesa mágica contra desordens e confusões inerentes a um espaço caótico, não propício à criatividade e o sonho. Na verdade um espaço significativo, como que “sagrado”, é sempre resultado da conversão de espaço não significativo, dito, portanto “profano”. E sua condição para assim tornar-se, decorre também, dos cerimoniais ali celebrados e das emoções então suscitadas por este conjunto. Recentemente vejo um paciente que é ator e pianista, porém muito grave. Sua família queixa-se de ele não tocar piano há muito tempo e de que quando o faz é de forma muito rápida. Constatamos que o seu piano encontrava-se no quarto que a sua mãe dorme, separada do pai. Lugar entulhado de objetos, de difícil circulação e clima sombrio. Por sua vez em tempos atrás o paciente solicitou de sua família que preparassem um quarto abandonado, localizado nos fundos da casa, para que pudesse assim ali ficar, tocar e fazer suas coisas, no que não foi atendido.
A partir deste fragmento biográfico, entre tantas coisas, podemos inferir o quanto o paciente se debate na busca de encontrar um espaço que lhe pareça significativo, determinador e onde possa exercer-se.

2 - A mesa como ponto central e determinante de um ritual
 “Que sejas ainda mais vivo 
No seu do seu estribilho 
Tempo-Tempo-Tempo-Tempo 
Ouve bem o que te digo.” 
                           (Caetano Veloso) 

O homem está sempre perseguindo o desejo de achar a si mesmo e sem esforço, ou seja, superar de maneira natural a condição humana, a condição anterior à queda. Essa dimensão do humano vem definir o que o paciente possa vir a conquistar com a vivência de um processo terapêutico. É como que, simbolicamente, a pessoa estivesse num labirinto de cujo centro se encontra perdido. Um processo terapêutico que pretenda ser bem-sucedido reside no fato de levar a pessoa a procurar e achar o centro. 
Em Terapia Ocupacional, ainda no que se refere às propriedades espaciais do seu cenário, a “mesa”, enquanto objeto concreto e simbólico, vem ocupar um destaque e essencialidade, na medida em que vem conferir uma significação ao cenário terapêutico. É portanto, um espaço inserido em outro espaço, que, por sua localização geográfica ou imaginária, determina o “centro” do espaço maior, promovendo uma ligação com a periferia, relacionando-se portanto este cenário com espaços ritualísticos: assim, a mesa na Terapia Ocupacional configura um “ponto” em torno do qual se estrutura um ritual. Ritual que tem como característica bá- sica a reunião em torno deste ponto, gerador de movimentos centrípetos e centrífugos em relação a si próprio, ou seja, movimentos de aproximação e afastamento. É de se notar que os pacientes sentem-se atraídos por este ponto, aglutinando-se em torno dele e numa atitude de reconhecimento e recitação, inicialmente conversam ou mesmo silenciam, como que esperando que algo seja anunciado. A exemplo de certos rituais, esta anunciação introdutória tem relação com a pessoa do Terapeuta Ocupacional, que traz, que introduz uma atividade num gesto de proposição e decretação de um “ritual expressivo e renovador”. A mesa, portanto, encarna-se como “espaço criativo”, lugar onde a “criação” pode ter início, já que este lugar vem também significar um “lugar de ruptura” com um tempo e espaço vivenciado sem significação. O acesso a este lugar equivale a uma iniciação, já que à existência sem significação que o antecedia sucede uma nova existência, real, durável, eficaz, porque significativa. 
O itinerário que conduz a este “centro” está permeado de obstáculos e que tão bem se encontram desenhados nas circunvoluções, muitas vezes complicadas e confusas, que o paciente exerce para nele ancorar-se. Podendo, a exemplo do “labirinto”, adentrá-lo e dele regressar, tendo o “centro” deste como “marco e guia”. 
Deste “centro”, fonte de energia e vida, emanam processos criativos, instauradores de uma nova realidade, símbolo de integração regenerativa. É como se este “centro”, este “microcosmo”, pudesse ser identificado como “centro do mundo”, e que remete, portanto, à coletividade.
Concretamente, a mesa se dispõe também ao apoio e sustentação à ação expressivo-criativa, e na qual a “mão” e “seus comandos” têm papel decisivo, para início e conclusão da manifestação criativa. 
Determinando o princípio, foco de intensidade dinâmica, a mesa converte-se em ponto concentrador de energia, lugar privilegiado ao encontro e coesão das diferenças, de onde brotam as possibilidades de projetos e acordos. Não é raro diante de uma dificuldade ou desacordo as pessoas nele envolvidas mutuamente se convocarem a “sentar à mesa”. Lugar promovedor “do olho a olho”, “do cara a cara”, é porém foco de onde parte o movimento da unidade rumo à multiplicidade, do interior para o exterior, do não manifesto para a manifestação. Em Terapia Ocupacional, este objeto cumpre esta função convocatória que sua disponibilidade e força inspiram. É um objeto que está ali disponível. 
Poderíamos seguir discorrendo sobre as evocações que a mesa pode suscitar: de refeição, comunhão, banquete, liturgia, rituais por excelência fomentadores de união e vida para os indivíduos e a sociedade. Sendo estes rituais também rituais reparadores, instauram entre os indivíduos e nos indivíduos novas formas, relação e produção. Em Terapia Ocupacional observo e detecto isto, no meu cotidiano cuidando de pacientes psicóticos. 
Milton Nascimento e Chico Buarque em “Cio da Terra” dizem: 
“Debulhar o trigo 
Recolher cada bago de trigo 
Forjar do trigo o milagre do pão 
E se fartar de pão 
Afagar a terra 
Conhecer os desejos da terra 
Cio da terra, propícia estação 
E fecundar o chão. ” 
E agora Willian Blake: “Aquilo que agora se prova foi antes apenas imaginado.” 
Comumente observo pacientes espontaneamente se aglutinarem em torno da mesa com intuito de única e exclusivamente compartilhar de uma conversa, uma discussão, uma recitação, deixando ali impressas algumas de suas marcas: as mesas de Terapia Ocupacional estão sempre povoadas de desenhos, rabiscos, nomes, grafites como se fossem códigos secretos à espera de codificação e leitura, denotando assim a existência também de uma trama enigmática, resultado da experiência de “estar juntos”. Estes códigos entendidos como fala, como palavra, como discurso, ou seja, como comunicação, a mesa presta-se também a este fim, convertendo-se em suporte a todas estas falas. 
Se ela por um lado converte-se em espaço aglutinador, por outro lado converte-se em espaço de demarcação e separação. O lugar da direita, o da esquerda, o do lado de lá, o do lado de cá etc.; imprimem uma noção de especialidade por certo harmonizadora e rítmica. 

3 – Terapia Ocupacional - A dimensão do tempo 
“Pretendo descobrir no último momento 
O tempo que refaz o que desfez 
Que recolhe todo o sentimento 
E brota no corpo outra vez.” 
                         (Cristovão Bastos/Chico Buarque de Holanda) 

A dimensão “tempo” encerra também significação em razão de como é vivida. Na Terapia Ocupacional esta dimensão está imposta e implícita conferindo-lhe importância e significação. Se um espaço significativo se configura como ruptura com um espaço que não encerra significação, aquilo que no seu interior se realiza, se celebra, marca também uma ruptura com a duração temporal, já que não é o tempo corriqueiro que agora representa, mas trata- -se de um tempo, cuja vivência está marcada pela realização de eventos que encerram significação: tempo no qual o paciente se reverte, recupera-se e se reconcilia com outras experiências temporais, quer das dimensões passada ou futura. 
O tempo entre um encontro e outro, obedecendo assim a uma periodicidade, bem como a sua duração, caracterizado por algo que se inicia e completa-se, vem simbolizar também o tempo expressivo-renovador, através do qual o paciente se recria e se regenera. É o tempo criando-o novamente. A abertura dessa “janela do tempo” provoca aberturas de novas e fecundas janelas de ligação temporal. A exemplo disto, poderíamos refletir sobre a solicitação de alta que os pacientes nos fazem. Geralmente nos dizem coisa desta ordem: “Quando terei alta, pra poder voltar a estudar? Acho que estou ficando bom. Já consigo ir sozinho ao cinema. Antigamente pra mim o dia não tinha fim. Tinha até medo de dormir.” 
Esta experiência cíclica relacionada ao tempo vem inserir o paciente numa dimensão mítica, na qual compartilha de um momento criativo de uma realidade. 
Através de sua canção, Ivan Lins nos situa:
“No novo tempo 
Apesar dos castigos 
Estamos atentos 
Estamos mais vivos 
Pra nos socorrer 
No novo tempo 
Apesar dos perigos 
Da força mais bruta 
Estamos na luta 
Pra sobreviver.” 
Inferimos daí que o tempo vivido de forma processual e significativa em Terapia Ocupacional vem servir como garantia para o reingresso do paciente em experiências temporais não significativas e assustadoras, podendo com elas estabelecer algum grau de vínculo e intimidade. Para pacientes psicóticos, um tempo que lhe foge à regra é sempre objeto de medo e pânico, portanto recusa. Podemos citar como exemplo todos aqueles tempos que estão fora ou à parte dos seus rituais psicóticos: um tempo vivido na rua, no ônibus, na praia, etc. Normalmente essas experiências temporais que se tornam objeto de evitação têm uma relação com a vivência de rituais que são celebrados na dimensão do coletivo. 
Lembramos que qualquer processo evolutivo pressupõe movimento, dinâmica, confronto através do tempo. Certa vez ouvi de um paciente o seguinte: “A Terapia Ocupacional é uma ‘pilastra’ na minha vida. Pilastra que me faz crescer. A vida é uma passagem de tempo até a morte.” 
De outro: “A Terapia Ocupacional é uma forma de passar o tempo, pensando na vida. A pessoa não pode estar ocupada com coisas bobas.” 

Conclusão 
Vemos com isso, que este confronto que se efetua na ordem do espaço e do tempo obriga o paciente a elaborar uma narrativa, uma recitação sobre si mesmo. Recitação sobre um “Eu” presente, referente, que tende a se contrapor a um “Eu” anterior, a um “Eu” de antes. É pois um “Eu” que narra o “Eu” que “foi e que está sendo”. 
Neste campo de jogo e de lances o Terapeuta Ocupacional é também um narrador, ampliando o âmbito de participação daqueles que do jogo participam e entendendo em grande medida, o “raio de ação ritual”. 
A tríade: Paciente-Terapeuta-Atividade, parece assim representar em contexto simbólico e ordenador, um estado de transição criativa, um estado de movimento para a maturação e a integração. 
A imagem do trio, triádica, do três, alude a movimento, ritmo, mutação através da tensão, do conflito, inerente ao confronto dialético da tese e da antítese, desdobrando-se na síntese. Que em Terapia ocupacional encontra-se marcada na “forma” e na “produção” resultante de um processo. Poderíamos seguir refletindo sobre os acontecimentos, fatos, papéis, eventos que o campo e o solo terapêutico ocupacional produz.

UMA TERAPIA OCUPACIONAL LEAL

A TERAPIA OCUPACIONAL - QUE EU ESCREVO POLITICAMENTE EM LETRAS MINÚSCULAS, PARA AFIRMAR SUA DIVERSIDADE - é, no mínimo, engraçada. Engraçada por seus caminhos misteriosos e inesperados. Engraçada também por suas doces e intensas descobertas. Vivendo como terapeuta ocupacional, nós, muitas vezes, apreendemos algumas revelações que intensificam nossa existência. Algumas delas são encontros que nos proporcionam esse modo de sentir a vida pulsar em alto grau. A lealdade é uma dessas possíveis facetas que encontramos na terapia ocupacional e que nos faz acreditar em momentos poéticos da nossa existência. Uma das possíveis formas de perceber a realidade é entendê-la como fidelidade, ser fiel, seguir conforme a lei. Num primeiro momento, se tomarmos o termo em sua forma moral, podemos entender o ser fiel como algo aprisionador. Contudo, para ser fiel, para ser intensamente fiel, é preciso navegar nas águas da traição, sentir desejos por outros caminhos, por outros amores e até mesmo experimentar outros sabores. Desse modo fazemos nossa escolha de forma mais amadurecida. Aqui nossa escolha não é pela lei penal, mas, como diz Almodóvar, pela lei do desejo. Leal é aquele que está de acordo com a lei; só que, para nós, a lei do desejo. Há muito me impressiona a passionalidade, às vezes até mesmo inocente, de muitos terapeutas ocupacionais. Alguns, quando falam dela, a colocam nas alturas como uma espécie de senha sagrada para ascensão ao Olimpo ou para transferir esferas de um mundo idílico dos justos e solidários.  Por que a terapia ocupacional pensa de forma tão apoteótica sobre si? Porque, penso eu, é movida pela lei do desejo. É leal ao desejo. Sua lei é o desejar.
Esse doce mistério que extrapola toda a racionalidade, lógica e paradoxalmente à própria lei na sua forma tradicional, é algo que parece estar presente na terapia ocupacional, tornando-a engraçada. Porque a terapia ocupacional deve transitar no paradoxo entre a ciência, presente na área da saúde, e a arte constituinte dos fazeres. Assim, todo desejo caminha entre ódio e amor. Quem deseja ama, porém também pode odiar. Por isso há tanta tensão na terapia ocupacional. Tensão porque só podemos realizá-la por desejo, mas alguns protocolos acadêmicos têm que ser cumpridos!
Por mais que sintamos a cada dia o crescimento da terapia ocupacional - e essa é uma verdade inegável - ela ainda permanece com um certo tom de ser mal compreendida, de que, para entendê-la, é preciso possuir outras sensibilidades, quase que divinatórias. Vários caminhos são tomados nessa direção, em busca sempre da fidelidade e da lealdade à terapia ocupacional. Alguns a apresentam com seus métodos seguros e firmes, bem reconhecidos e legitimados, e em tom professoral afirmam que os males da terapia ocupacional estão nas mãos daqueles que a profanam com seus pensamentos herméticos e filosóficos. Estes são fieis, pois querem a legitimação da terapia ocupacional através da ciência, e têm a difícil tarefa de verificar a normatização das atividades, descobrem as verdades do macramé... Para esses terapeutas ocupacionais, os outros profissionais ditos filosóficos borrariam a profissão com caminhos pouco claros, que não levam a terapia ocupacional para a crista dos saberes médicos homologados pelo conhecimento autoritário e hegemônico.
Do outro lado, os terapeutas filosóficos, espécie de messiânicos, proclamam uma dimensão ontológica para a terapia ocupacional. Uma natureza ocupacional invade nossos pensamentos e estes afirmar que o fazer é condição humana, que organiza os homens, suas sociedades, sua cultura, sua transcendência, sua essencialidade, sua existência. Homens e fazeres tornam-se espécie de ovo e galinha.
Surge, então, uma tensão na terapia ocupacional que é belíssima, belíssima porque a faz fervilhar de pensamentos que ora são diferentes, ora paradoxais, ora excludentes. Com tudo isso, a terapia ocupacional jamais se tornaria estagnada. Há várias seduções: ser mais científica ou ser mais poética. Há ainda aqueles que querem se manter na boa relação entre os dois lados.  Mas dessa forma muito se esgarça na terapia ocupacional, e se ainda permanecemos nela, seguramente é por paixão, uma paixão que nos faz amar e odiar facetas da própria terapia ocupacional.
Sabemos da importância daqueles que querem organizar a terapia ocupacional em pensamentos seguros e precisos, coo se pudessem fazer da atividade um arco de movimento universal, medido por um goniômetro do deus absoluto. Valorizo e dedico minha lealdade a eles. Mas graças a muitas cantorias, algumas nordestinas, a terapia ocupacional se faz também por outros goniômetros mais tortos. Tortos não porque não são precisos, mas porque se entortam precisamente nas distorções dos sonhos. Esses terapeutas ocupacionais são espécie de ontólogos que querem fazer da profissão uma potência para conceituar a vida, fazendo brotar um estilo novo de viver. Já há muito sabemos que a terapia ocupacional mergulha no vale das ontologias (materialismo histórico, existencialismo, esquizo-ocupação, ocupação humana). Talvez pela complexidade e fragilidade de seu objeto, o terapeuta ocupacional deixe de ver a atividade somente como elemento redutor de sintomas e entenda a função do fazer criar realidade humana, e algumas vezes dando sentido à existência. O macramé não é apenas um estimulador de arcos e movimentos, é o tramar da própria vida. A atividade, a ocupação, o fazer humanizam o homem e guardam simples mistérios que se abrem quando o corpo age de forma intensiva. Esses terapeutas ocupacionais ora são patéticos, ora são poéticos, ora são políticos. São porém, sempre sonhadores.Não produzem sonhos para se perderem e delírios de um mundo próprio, mas sonham com novos mundos ao seu lado, a sua frente, consigo mesmos e com os outros. Eles falam na língua de Bachelard, na língua de Nise da Silveira, na língua de Deleuza, na língua de Rui Chamoni, na língua de tantos outros.
Alguns terapeutas ocupacionais são assim: plurais, místicos, jocosos, porque acreditam demasiadamente na vida, querem a vida intensa com todas as suas cores, sons e gestos. Um desses profetas ocupacionais é Luiz Gonzaga, ele é um Leal, leal de nome e de vocação. E é um desses que produzem devaneios diversos. Não porque faz da terapia ocupacional uma precisão, mas ele justamente quer o contrário, fios de imprecisão, para que nesse arco de abertura muitos convites possam ser feitos... e aceitos. É uma quizomba, um encontro de todas as raças, de todas as facções. Jô, Nise, Bastide, tu, eles, nós. Todos estão povoando a alma leal de Gonzaga. Espécie de paternidade acolhedora da diferença e dos diferentes - claro, ele é Terapeuta Ocupacional.
Leal é desses que fazem do quotidiano profissão de viver. Por isso, tudo lhe é muito caro: um som, uma canção, um orixá, um pierrô, uma Nise, um gato, um amigo, uma carta, um encontro. Nada é em vão, tudo traz sentidos múltiplos e na multiplicidade de sentidos é ue o sentido de sua existência se faz. Mais uma vez ovo e galinha. Gonzaga é assim por ser terapeuta ocupacional, ou tornou-se um por ser assim?
Ele, na qualidade de leal, tem a marca da fidelidade. Nise, de certa forma, dizia que os felinos são leais. Eles escolhem bem aqueles que são leais, por isso nossa mãe da terapia ocupacional fez de seus gatos espécie de juízes que escolhiam seus frequentadores em sua casa. Eram os gatos que decidiam quem iria estudar os arquétipos de Jung, as materialidades de Bachelard ou a terapêutica ocupacional nisiana.
Leal é amado por Nise, poi, enquanto felina-mor, gata mestra, seus bugalhos enormes enxergam ontólogos leais.  Ela nos faz pensar então que o nome Leal queda uma profecia, uma sina abençoada com gosto de Nordeste. Que faz a terra branca arder de desejos por nossa profissão.
Obrigado, Luiz, por ser sonoro como Gonzaga e por ser leal como profissão.

Escuto a ti, bem aqui,
ao pé do ouvido.
Fala baixo,
fala manso...
Não é preciso te cansares,
não desgastes teu verbo aberto de nordestino.
Basta pouco mais que meio quilo
de peso de teu som em sol maior quente do agreste
para me recitar teu mantra secreto...
Vai, ensina mais,
cada mistério que há no viver.
Mexe tuas e nossas mãos abertas
para a criação
e não me deixes as rugas vazias de sentido.

- Marcus Vinícius Machado de Almeida
Marquinhus, para os ontólogos
Rio de Janeiro, Maio de 2005