Morte, Velhice e Terapia Ocupacional.
Evaldo Cavalcante Monteiro[1]
Morte e Velhice
A construção desse texto brota de um fragmento da minha
dissertação, mais precisamente o primeiro capítulo que é intitulado: velhice um
conceito em ralação. No qual busco articular quatro elementos (o tempo, o
Estado, a família e a morte) como formadores desse conceito.
A assistência a saúde, ação desenvolvida pelo Estado,
vista como aquela que mantém os corpos voltados para a produção e reprodução é
uma leitura que renega a decadência física e seu símbolo maior, a morte.
É a partir do
final do século XVIII e início do XIX que o Estado intervém no espaço urbano/social procurando modificar as
condições sanitárias, assim estaria tratando da qualidade de sua população.
Todas as intervenções eram justificadas desde que fossem para assegurar a vida
das pessoas. Embora este fosse o
conteúdo manifesto do discurso, na verdade o que estava em jogo no quadro
sócio-político-administrativo era o corpo reprodutor e produtor de riqueza.
Nesse quadro, os
corpos da população eram aquilatados pela faixa etária e sua participação no
sistema de produção. Dessa forma, o corpo adulto e útil era desejado, pois
participava do mercado de trabalho. Depois vinham os corpos jovens e infantis
que eram potencialmente úteis. E, finalmente, o corpo velho que não mais reproduzia nem produzia, portanto não
participava mais da produção de riqueza.
O conceito de velhice surge neste período, ou seja, com a
modernidade. Mas como é possível se sempre tivemos pessoas longevas? Esse
conceito é relativamente novo no ocidente embora a existência humana sempre
tenha tido diversas fases entre o nascimento e a morte, incluindo aqueles que
vivem muito. A partir do momento que nos referimos a percepção dessas etapas, passa a ser feita por intermédio de uma leitura
biológica: a maturação neurológica afirma a condição para aprendizagem e as
ações hormonais marcam o início da puberdade. Esta leitura está respaldada nos
saberes biológico e médico.
São estes mesmos saberes que lêem as transformações do corpo que envelhece como
decadência. O próprio termo utilizado traz um dado implícito. Se ele decai é
porque sai de um patamar bom e desejável para um ruim, indesejável. O bom, o
desejável é o corpo jovem que é belo, ágil, produtivo e reprodutivo. O réprobo,
feio, não-produtivo e não-reprodutivo é o corpo do velho. A velhice é, deste modo, posta à
margem.
A família participa desse cuidado a saúde. Precisamos
lembrar que a instauração da intimidade leva a uma modificação no padrão
interacional entre os membros de uma família. Essa alteração se dá antes que
haja uma mudança na taxa de mortalidade. Podemos entender a intimidade familiar
como um recolhimento, um fechar-se em si mesma. Este retraimento leva a uma
concentração dos afetos, agora partilhados, quase restritivamente, entre filhos
e pais. Cabe-nos perguntar: o que se processa por trás dessa intimidade neste
momento? Vemos que “começa a aflorar a preocupação com a particularidade de
cada indivíduo, sobrepondo-se àquela aceitação natural da destinação coletiva
da espécie” (Py, 1994, p.207). Se antes éramos mais um membro de uma
coletividade, a Casa, a família nobre ou a comunidade aldeã, de agora em diante
seremos um indivíduo, seremos unos. Um filho não mais substituía o outro falecido
Assim, é possível entender como os pais passaram a ter cuidados com a saúde.
Estes significavam uma forma de evitar a perda de um ente querido e o sofrimento causado por ela.
Os cuidados com a
saúde, tanto os tomados pelos pais quanto os adotados pelo Estado levam a uma
alteração no perfil epidemiológico. Assim passamos de um padrão
infecto-parasitário para um crônico-degenerativo.
“...
à medida que as nações se modernizam, tendem a aprimorar suas condições
sociais, econômicas e de saúde. (...) o risco de morte por doenças infecciosas
vai sendo reduzido, aqueles que escapam de morrer de tais doenças sobrevivem
até a meia-idade e a velhice, quando enfrentam um risco maior de morrer de
doenças degenerativas ou criadas pelo homem” (Veras, 1994, p.28).
1.2 O horror a
morte
As mudanças do perfil epidemiológico parecem ter vindo ao
encontro do que podemos chamar de “nosso desejo básico, alcançar o infinito”
(Torres, 1999, p.56). Contudo, este desejo humano é determinado historicamente,
só podendo ser compreendido dentro da modernidade, como Veras (1994) se refere
acima. Entretanto “houve época em (...) que as pessoas conviviam melhor com a
realidade da morte, suportavam-na, enfrentavam-na com maior galhardia” (Papaléo
Netto, 1999, p.89). Quando isso se dá, o autor não precisa, mas podemos
deduzir, a partir do relato acima, que é anterior à modernidade. Há, atualmente, na nossa sociedade uma tendência
ao banimento no que se refere à
morte (Papaléo Netto, 1999).
Esse temor está presente nas práticas de saúde.
Expressões como “o paciente não resistiu”, “perdemos o paciente” e “o paciente
veio a óbito” apontam para rejeição do termo morte. Existe um medo do
sofrimento e da morte presentes na prática médica (Leme, 1999). O autor
apresenta a utilização da sigla s.p.p. (se parar parou) para designar os
cuidados com os pacientes terminais como uma manifestação dessa dificuldade. Ao
enfrentar um paciente moribundo, o profissional se depara com a própria
finitude e se assusta, acusa ainda Leme (1999). Três autoras, Torres (1999),
Goldfarb (1998) e Beauvoir (1990) ao abordarem o tema morte usam a mesma
categoria sartriana: o irrealizável, uma realidade que vem de fora e permanece
inatingível.[2] O mesmo
termo é empregado quando se referem à velhice. Nesse sentido finitude e velhice
passam a ser sinônimos.
As práticas de
saúde e os cuidados com a mesma se tornaram um anteparo da morte. Poderíamos
dizer que nosso desejo básico foi atendido? A mudança no perfil epidemiológico
poderia nos sinalizar que estamos bem próximos de atingi-lo. Contudo, Carneiro
(2000), nos seus estudos sobre AIDS, reflete
que, onde pensamos encontrar a certeza encontramos a dúvida e quando
supomos ter domado a morte, as epidemias nos fazem lembrá-la. O pavor das
epidemias aponta para a constatação da falha, da quebra, da certeza.
Retomemos à temática da mudança do perfil epidemiológico.
Ao sairmos do padrão infecto-parasitário controlamos os problemas que acometem
a vida nas etapas mais jovens, restringimos os riscos de morrer nestas fases, porém
o deslocamos para o padrão crônico-degenerativo presente na fase tardia. Muito
embora a morte possa ocorrer a qualquer momento, ela é vista como um acidente,
como sendo precoce quando se dá antes da vida provecta. Queremos dizer com isso
que a velhice fica colada à idéia de ameaça iminente de doença, por isso é que esta etapa da vida é
percebida como a ante-sala da morte em todas sociedades (Goldfarb, 1998).
2.1 A Terapia
Ocupacional
A vivência de uma longevidade com um corpo que se
modifica, interpretado como decadência, e a ausência de função social torna-se
uma experiência acachapante para quem vive essa fase. É nesse cenário social
que nós, terapeutas ocupacionais atuamos. Atendimento a uma pessoa implica:
ele, sujeito e seu contexto, seja ele familiar ou social. Vai depender do foco,
quero dizer do tipo de atendimento, se clínico ou social.
O que importa, portanto, é poder trabalhar programas de
vida em função de personalidades com um certo grau de complexidade. A ação
terapêutica ocupacional caminha, nesse sentido, na direção da desconstrução ou
reconstrução desse cenário. Nas palavras de Gonzaga: sair de seus impasses repetitivos
e, de alguma forma, re singularizar (...) injetamos novos códigos nas antigas
fortalezas da territorialidade do já feito, do já dito.
Podemos ter três atitudes ante a situação: agir
ignorando-a, questiona-la abertamente chocando-se com ela ou criar estratégias
de mina-la. A idéia de rizoma.
Na Terapia Ocupacional a
ação e a criação abrem espaço para um resignificação de si para si e
para o outro. Assim não seremos mais tão: tão velho, tão louco, tão aleijado,
tão cego, mudo, surdo...talvez, quem sabe, nunca deixemos de sê-lo
completamente, mas o olhar.......certamente mudou. Não sofremos pelo real, mas
pelo que atribuímos a ele. Assim mudamos nós e mudam os outros.
Considerações
finais
Terapia Ocupacional, em síntese, é isto: imagens em
colisão. Colisão determinante de uma cinética, de uma anarquia; implícita no
fazer-desfazer, construir-desconstruir, compor-decompor para assim chegar à
“arquitetura” desejada, ou seja, a um “alcance pragmático”.
O homem se percebe finito e se organiza em função desta
percepção. Desenvolvemos saberes e práticas de saúde que nos permitem viver
mais anos. Contudo ninguém deseja envelhecer ou morrer. Aliás, esquecemos que
temos de morrer (Leme, 1999). Se procuramos ou se esquecemos de fato, não nos
importa. Há uma clara volição de suprimir e uma evidente dificuldade na
aceitação desse limite. Mas a sabedoria popular, através do aforismo “quem de
novo não morre de velho não escapa” não nos deixa esquecer a nossa condição
humana.
Esse mesmo autor ao tratar das dualidades vida/morte,
prazer/dor e saúde/doença nos remeteu ao trabalho de Machado (1997) acerca de
Nietzsche.
Este filósofo trabalha com os opostos numa relação
direta, complementar e indissociável entre os mesmos. A metáfora da árvore
demonstra bem o que ele quer dizer. A árvore apresenta o caule e a copa como
partes visíveis, mas tem suas raízes que são invisíveis. O sofrimento humano
ocorre por desejar apenas um dos pólos e renegar o outro. Isso vem ao encontro do ponto de vista
defendido por Carneiro (2000), no parágrafo anterior.