sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Máquinas Desejantes

As Máquinas Desejantes
Por: Gonzaga Leal
Ano 1992 


Isto funciona em toda parte, ás vezes sem parar, às vezes descontínuo . Isto respira, isto esquenta, isto come... Em toda parte são máquinas, máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões. Uma máquina - órgão é ligada em uma máquina - fonte: uma emite um fluxo que a outra corta.
O seio é uma máquina que produz leite, e a boca, uma máquina acoplada a ela.
Uma máquina - órgão para uma máquina energia, sempre fluxos e cortes.
Somos todos "bricoleurs" = bricolage: atividade de aproveitar coisas usadas, quebradas, ou apropriadas para outro uso, em um novo arranjo ou em uma nova função.
O homem não vive a natureza como natureza, mas como processo de produção. Não há mais nem homem nem natureza, mas apénas o processo que produz um no outro e acopla máquinas.
Em toda parte, máquinas produtoras ou desejantes, as máquinas esquizofrênicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior não querem dizer mais nada.
Édipo supõe uma fantástica repressão das máquinas desejantes.
O corpo sobre a pele é uma usina superaquecida, e fora o doente brilha, irradia por todos os seus poros estourados. Pois em verdade - a cintilante e negra verdade que faz o delírio -, não há esferas ou circuítos relativamente independentes: a produção é imediatamente consumo e registro, o registro e o consumo determinam diretamente a produção, mas a determinam no seio da própria produção.
Tanto que tudo é produção: produções de produções, de ações, e de paixões; produções de registros, de distrubuições e de marcações; produções de volúpias, de angústias e de dores.
Não o homem enquanto rei da criação, mas como aquele que é tocado pela vida profunda de todas as formas ou de todos os gêneros, que é encarregado das estrelas e dos animais, e que não cessa de ligar uma máquina - órgão em uma máquina energia, uma árvore no seu corpo, ou seio na boca: eterno encarregado das máquinas do universo. Sempre uma máquina acoplada a outra - A síntese produtiva. O desejo faz escorrer, escorre e corta. Todo objeto supõe a continuidade de um fluxo; todo fluxo é fragmentação do objeto. Sem dúvida, cada máquina - órgão interpreta o mundo inteiro segundo seu próprio fluxo, segundo a energia que flui dela: o olho interpreta tudo em termos de ver - o falar, o escutar, o poder.
A regra de produzir sempre o produzir, de enxertar o produzir sobre o produto é a caracteristica das máquinas desejantes - produção de produção.
Quanto ao esquizofrênico, com seu papo vacilante que não cessa de migrar, de errar, de tropeçar, ele se aprofunda cada vez mais na desterritorialização, sobre seu próprio corpo, seus orgãos no infinito da decomposição do socius, e talvez seja sua maneira de reencontrar a terra, o passeio.
Campo Social = Campo de anunciação e enunciação
Libido: energia própria das máquinas desejantes.
O acoplamento de produção, máquinas desejantes e campo social dá lugar a um acoplamento representativo de uma natureza totalmente diversa, familia-mito.
Vocês já viram como uma criança brinca? Como ela já povoa as máquinas sociais com suas máquinas desejantes? A criança toma emprestado peças e engrenagens receptores ou de interrupção, agentes de produção.
Por que ter instalado formas expressivas, e todo um teatro onde havia campos, oficinas, fábricas, unidades de produção? É assim que o Terapeuta Ocupacional monta seu circo - único teatro de produções. É aí onde os fluxos atravessam o limiar de desterritorialização e produzem a terra nova.
Ponto de fuga ativo - onde a máquina revolucionária, a máquina artística se tornam peças e pedaços umas das outras.
O que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao infinito, em todos os sentidos e em todas as direções.
Terapia Ocupacional - proecesso de desemganchamento como procedimento de recorrência. O desejo passa por todas as peças da máquina. Isso significa que as máquinas desejantes não são pacificadas: existem nelas dominações e servidões, elementos mortiferos, peças sádicas e masoquistas justapostas.
Uma verdadeira política da psiquiatria, consistiria, portanto:
1- em desfazer todas as re-territorializações que transformam a loucura em doença mental
2- em liberar em todos os fluxos o movimento esquizoide de sua desterritorialização, de tal maneira que esse caráter não possa mais qualificar um residuo particular como fluxo de loucura, mas afete também os fluxos de trabalho e de desejo, de produção, de conhecimento e de criação na sua tendência mais profunda.
A loucura não existiria mais enquanto loucura , não porque ela tenha sido transformada em doença mental, mas, ao contrário, porque ela receberia o complemento de todos os outros fluxos, inclusive da ciência e da arte - sendo dito que ela só é chamada de loucura, e aparece como tal, porque é privada desse complemento e se acha reduzida a testemunhar sozinha pela desterritorialização como processo universal.
O louco, o que importa é que consiga viver uma experiência estética extremamente rica, garantindo assim a sua sobrevivência humanizada - experiência total do ser, que encerra energia vital, transfigurada nos objetos concretos, vivos, perceptiveis, sublimados e, também denunciadores de força, da consequente experiência emocional de seu ator-autor. São obejtos estruturados e estruturantes de ideias, passivas de serem captadas, reconhecidos pelo expectador, interagente da produção estética. Assume-se que a produção estética seja toda a produção eivada de emoção, em qe se explicita o nível de sensibilidade de seu produtor - fruidor, por isso mesmo considerada humanizadora.
O louco quando expressa-se estéticamente o faz, classificando e organizando objetos de uso virgente na sociedade em que vive, notadamente aqueles objetos de seu passado e se seu pesado cotidiano - o hospital psiquiátrico - tais como: copos, talheres e outras coisas.
Sua obra artística é datada e contextualizada.
Amigo, designaria uma certa intimidade competente, uma espécie de gosto material e uma potencialidade, como aquela do marceneiro com a madeira, ele é o amigo da madeira.
Erigir o novo evento das coisas e dos seres é dar-lhes sempre um novo acontecimento: o espaço, o tempo, a matéria, o pensamento, o possível como acontecimentos...
O que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações composto de percepções e afetos.
Só passamos de um material a outro, como do violão ao piano, do pincel à brocha, do óleo ao pastel, se o composto de sensações o exigir. O objetivo da arte, com os meios do material, é arrancar as percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente. Arrancar o afeto das afecções, como passagem de um estado a outro.
O difícil é juntar, não as mãos, mas os planos.
Composição é estética, que é o trabalho das sensações.
O doente pede somente um pouco de ordem pra se proteger do caos. Nada é mais doloroso, mas angustiante, do que um pensamento que escapa a sí mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não denominamos.
Criar é mergulhar no espaço (morte), ou vivência e superação da morte. No criar a pessoa não cabe em sí; criar é a configuração dos fantasmas e demônios.

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