terça-feira, 24 de abril de 2012

SOMOS TODOS ANTROPÓFAGOS?


Em nossa época, repleta de matanças e injustiças cometidas em escala universal, muitos artistas têm revivido, por intermédio da parábola antropofágica, as agudas reflexões com que Montaigne e Voltaire tentaram desmentir a presunçosa superioridade do europeu sobre o selvagem de outros continentes.
“Vou comer você a beijos”. Essa afirmação, cochichada aos ouvidos do parceiro amoroso e que parece destinada a inaugurar os transportes de um doce frenesi, é também, para os psicanalistas, uma fonte inesgotável de especulações sobre os paradoxos do inconsciente. E somada a outras analogias usuais do vocabulário galante – “devorador”, “voraz”, “apetitosa”, “gostosa” – insinua uma inquietante afinidade entre o erotismo e uma gastronomia pouco convencional. Assim, pelo menos, entendeu Levi-Strauss, quando definiu a antropofagia como um “incesto alimentar”.
A tentação de urdir teorias sobre a origem oculta da antropofagia tem estimulado muitos estudiosos, incitando-os a aventurar-se mais a frente da interpretação simplista do colóquio sexual. Sgmund Freud, por exemplo, tratou de reconstruir, em  Totem e Tabu, o episódio mítico durante o qual os irmãos, ciumentos do pai, que era dono de todas as mulheres, o mataram e o devoraram, colocando assim fim ao regime patriarcal da tribo. Aquela incorporação permitiu-lhes, sempre a juízo de Freud, apoderar-se do modelo paterno e identificar-se com ele. André Green, autor do ensaio Le cannibalisme: realité ou fantasme agi: acha que a força notável da hipótese de Freu reside precisamente no fato  de conjugar múltiplos temas fascinantes: sacrifício, parricídio, incesto (e sexualidade em geral), canibalismo, identificação, introjecção do superego e de suas proibições.

Primeiros os parentes

A hipótese de Freud, embora cativante, não é corroborada por nenhum testemunho histórico e, escreve Green, apoia-se mais na fantasia e no mito do que na ciência. Gira, acrescenta o mesmo autor, em torno de uma interpretação sociológica do totemismo, enxertada num tronco pseudobiológico.
É certo que o canibalismo é bastante comum entre os animais: muitos peixes, se comem uns aos outros; os ursos, os javalis, os coelhos, as cobaias e sobretudo os porcos devoram, muitas vezes, suas crias. Algumas espécies começam por ingerir a placenta, depois o cordão umbilical e finalmente o recém-nascido. Ao homem sempre pareceu assustador, aliás, o costume daquelas aranhas fêmeas, que matam e devoram o macho apenas terminado o ato sexual. Mas nada autoriza a forjar paralelismo fantasiosos entre esses animais e o homem, nem a supor que os antepassados da espécie humana ou os primeiros homens se comiam entre si. Aparentemente a antropofagia não era então, como não é agora, um traço comum a todos os povos aos quais chamamos selvagens. Quando apareceu na terra, numa data imprecisa, distintas raças a praticaram em épocas e lugares igualmente diferentes.
A palavra de origem grega antropofagia, que figura em escrito da era pré-cristã, serve ao menos para inferir que o costume não era desconhecido entre os antigos e que, além disso tinha suficiente difusão, uma vez que vários autores a mencionavam em suas obras literárias. Polifemo, o ciclope de A odisseia, é um dos primeiros antropófagos da ficção épica. Naturalmente horrorizados com as notícias que lhes chegavam de terras “bárbaras”, os antigos utilizaram a antropofagia para dramatizar alguns episódios de sua mitologia. Cronos, um deus polífero, devorava seus filhos porque temia que estes lhe arrebatassem o poder e a vida. Atreo, rei de Micenas, matou a Tântalo e Plistenes, filhos de seu irmão Tieste e logrou através de enganos, que este os comesse sob aparatos apetitosos manjares. Progne, filha do rei de Atenas, perpetrou o mesmo embuste contra seu esposo, Tereu, para vingar-se dele, que havia violado Filomena, irmã de Progne.
Os cronistas dos tempos pré-cristãos estavam atentos às manifestações de antropofagia e se ocupavam de registrá-las, como fatos curiosos, em seus livros. Empédocles descreve, no fragmento VII das Purificações, uma matança, na qual seres unidos por estreitos laços de parentescos “devoravam uma carne que era deles”, sob o império da discórdia. Heródoto fala dos masagetas, um povo de costumes bastante peculiares. “Cada um casa-se com uma mulher, mas o uso das mulheres casadas é comum para todos”, explica atônito Heródoto, acrescentando em seguida: “Se alguém fica caduco, reúnem-se todos os parentes, matando-o em seguida, junto com várias reses, sendo feito com a carne dos mesmos (o velho e os bois) um grande banquete. Esse modo de sair da vida é considerado entre eles como uma felicidade extrema. Se alguém, entretanto morre de doença, não se convida ninguém para comer sua carne, que é enterrada, com pesar por parte de todos, pois a pessoa em questão não conseguiu chegar ao ponto de ser imolada.
As referências ao canibalismo aparecem, igualmente, nos livros do Antigo Testamento, como uma ferramenta retórica apropriada para descrever casos limites e enunciar prognósticos terríveis. “Comerás o fruto de teu ventre, a carne de teus filhos e de tuas filhas que Jehová, teu Deus, te deu, no lugar e com o apuro com que te angustiará teu inimigo”, se lê no Deuteronômio 28:53, versículo que encabeça uma série de vaticínios relacionados com a generalização da antropofagia. Segundo Reis II, 6:25-29, durante o sítio de Samaria “houve grande fome” e duas mulheres concordaram em comer sucessivamente seus respectivos filhos. Uma delas cumpriu sua parte no pacto, mas no dia seguinte, a outra ocultou seu rebento. Voltaire ironiza essa passagem, escrevendo em seu Dicionário Filosófico: “Contudo é menos verossímil que duas mulheres não tivessem, com uma criança, o bastante para se alimentar um par de dias; seria suficiente até para quatro”. “O que se deve crer, adverte Voltaire, é que pais e mães devem ter comido os próprios filhos durante o sítio de Samaria, como foi predito no Deuteronômio.” Em Jeremias 19:9 repetem-se os maus augúrios: “E os farei comer a carne de seus filhos e a carne de suas filhas e cada um comerá a carne de seu amigo”. As passagens de Lamentações 4:10 e Ezequiel 5:10 não são, afinal, mais do que variações sobre este mesmo tema.
Ainda no Dicionário Filosófico, o gênio cáustico de Voltaire se estende sobre a questão. Citando Júlio Cesar, afirma que os primitivos gauleses não estavam livres de reproche e que os defensores da cidade sitiada de Alexia decidiram por pluralidade de votos “comerem todas as crianças, umas atrás das outras”, pois “desse modo as forças dos combatentes não ficariam debilitadas”. Transcreve também palavras de São Gerônimo: “Vi escoceses nas Gálias, que, podendo alimentar-se nos bosques com a carne dos porcos do mato e outros animais, preferiam cortar as nádegas dos homens jovens e os peitos das donzelas, sendo esses seus alimentos favoritos”. Acrescenta Voltaire: “Pode-se discutir com um padre na Igreja sobre o que se ouviu dizer, mas sobre o que se viu, com os próprios olhos, não se deve discutir, porque seguindo tal sistema, o mais seguro é desconfiar de tudo, até daquilo que se viu.”

Afinal, o que é barbarismo?

Adiantando-se aos antropólogos modernos, Voltaire vislumbrou a importância que tem a diversidade de pautas culturais quando se trata de julgar os costumes alheios. Em 1731, o filósofo conversou em Fontanebleau com uma senhora de Mississipe, “a qual perguntei se já havia alguma vez comido carne humana, ao que ela, francamente me contestou que sim... Notando que fiquei assombrado com sua resposta, defendeu seu proceder, dizendo-me que era preferível comer o inimigo morto, do que deixar que fosse devorado pelas feras. Os vencedores deveriam ter essa preferência...” E acrescenta Voltaire: “Nós matamos nas batalhas os nossos inimigos e, pela mais insignificante recompensa, proporcionamos alimentos aos corvos e aos vermes, sendo este sim um verdadeiro crime. Pois ao certo tanto faz ser devorado por um soldado, corvo ou carnívoro. Dessa forma estamos respeitando mais os mortos que aos vivos, quando deveríamos respeitar a ambos de igual forma.”
Voltaire parecia guiar-se, em relação à diversidade cultural, pela visão crítica de seu predecessor, Miguel de Montaigne, que escreveu no século XVI: “Não deixo de reconhecer a barbárie e o horror à ideia de se comer o inimigo, mas o que me surpreende é que compreendamos e vejamos suas faltas, mas sejamos cegos para reconhecer as nossas. Creio ser mais bárbaro comer um homem vivo do que comê-lo morto, desgarrar, por meio de suplícios e tormentos, o corpo ainda cheio de vida, assá-lo lentamente para logo depois jogá-lo aos cães e aos porcos; coisas como essas não lemos em nenhum livro, mas presenciamos recentemente. E não se tratava de antigos inimigos, mas sim de vizinhos e concidadãos, com a circunstância agravante de que paras se cometer tais atrocidades, valeu-se do pretexto da piedade e da religião. Isso eu considero ainda mais bárbaro do que assar o corpo de um homem morto e depois comê-lo”.
Sintomaticamente, o grande interesse despertado pela antropofagia na Europa, nos tempos de Montaigne, foi produto dos rumores que circulavam sobre os costumes dos aborígenes americanos, rumores que ajudaram a estender um véu de esquecimento sobre os antecedentes que tal prática tinha no Velho Mundo. Cristóvão Colombo foi o primeiro que colocou em marcha, talvez inconscientemente, os mecanismos de ocultamento: quando chegou aos seus ouvidos o fato de que os habitantes, designou a todos os consumidores de carne humana com o nome de “canibais”. Imediatamente os europeus legaram ao esquecimento a palavra “antropofagia”, cuja raiz grega trazia incômodas recordações sobre as práticas de sua antiga civilização, e passaram a utilizar o termo “canibalismo” como para ratificar que a barbárie só podia provir de outras latitudes.

Boas maneiras

Acontece que, como adverte Jean Pouillon em seu estudo sobre “Maneiras à mesa, maneiras ao leito, maneiras de linguagem”, a miúde os antropófagos se sentem ofendidos quando são catalogados como tais. “Os canibais, explica Pouillon, são sempre os outros, e esses outros são precisamente os “selvagens”, os que não conhecem as boas maneiras”. Os fatalekas do arquipélago das ilhas de Salomão “opõem seu canibalismo institucional... ao canibalismo selvagem... O mito fundador da célebre associação política das “Cinco Nações” iroquesas narra como os homens passaram do canibalismo selvagem, monstruoso, ao canibalismo institucionalizado, socializado. Os guayaquies não necessitam recorrer aos mitos para condenar o canibalismo: comem seus próprios mortos, e isso é considerado correto, mas seus vizinhos, que matam os inimigos e os comem, dão um exemplo do que é necessário precaver-se. Eles sim são verdadeiros canibais.”.
Semelhantes diferenciações, que nos parecem absurdas soa possíveis em razão da quantidade de normas dietéticas, tabus e preceitos rituais que rodeiam a prática da antropofagia. “O canibalismo, sublinha Pouillon, é um modo de pensar mais do que uma forma de comer”. Os enxocanibais, continua Pouillon, não comem seus defuntos, enquanto os endocanibais não comem os estranhos. Há antropófagos que comem exclusivamente pessoas do mesmo sexo masculino e outros que não fazem qualquer discriminação. O consumo pode ser total ou parcial. A distribuição das partes pode ser aleatória ou estar regulamentada. Há tribos que inclusive autorizam a própria vítima a escolher, antes de ser morta, entre seus parentes, aqueles que poderão saborear a sua carne.
A prática pode estar generalizada ou circunscrita a determinadas categorias de indivíduos: nas ilhas Fidji, por exemplo, os únicos autorizados a praticar a antropofagia são os sacerdotes e chefes, e a carne humana só pode ser tocada com garfos especiais, enquanto os alimentos comuns são comidos com as mãos.
O trânsito do canibalismo selvagem ao canibalismo selvagem ao canibalismo mítico e socializado também se manifesta na preparação culinária e nos hábitos de mesa. Na primeira etapa, o indivíduo procede à ingestão solitária de um defunto, cru, e não o comparte com outros comensais. Na segunda etapa aparecem as regras e os ritos, em geral muito complexos, governam o consumo de um cadáver cozido. Geralmente o aproveitamento é total sendo desdenhados apenas os ossos. Os yanomani são uma exceção, porque deixam apodrecer a carne do cadáver, para depois limpar e moer os ossos, que são comidos misturados com purê de bananas.

Comunhão íntima

O estudioso dinamarquês Kaj Birket-Smith sustenta, em Vida e História das culturas, que as origens da antropofagia se remontam ao ingresso do homem na economia agrícola. “Do mesmo modo que os caçadores se identificam com o animal totêmico, escreve Birket-Smith, os agricultores, por sua vez, identificam-se com as plantas, e à ideia de que a fruta tragada pela terra continua, apesar de tudo, vivendo, surge a ideia da antropofagia. Em nenhum outro escalão cultural aparece em igual medida, como nos mais antigos agricultores, a prática da canibalismo, a caça às cabeças, os sacrifícios humanos em massa e as extravagâncias sexuais”.
Do ponto de vista dos agricultores primitivos, o ser humano apenas tem sua vida assegurada quando comparte plenamente sino das plantas. Come-se a planta, e portanto é preciso comer também o homem. A essência intrínseca do canibalismo, que reside no desejo de unificar-se ao morto, fica clara quando oficiar-se comer seus parentes mortos. Com isso, não apenas consegue renovar suas foras vitais próprias, mas também que os pais continuem vivendo em seus descendentes, a estirpe nas crianças, no eterno ciclo de vida e morte. Ao matar os anciãos, o canibal procede em consideração a eles próprios antes que tenham esgotado sua força vital. Come a carne do velho e do seu nome para assegurar-lhe a vida depois da morte, incorporando-o dessa estranha maneira.
Birket-Smith afirma que “a mesma ideia que fundamenta o canibalismo em sua forma originária, voltamos a encontrar no sacramento da comunhão, que em seus primórdios foi um ato puramente mágico. A divindade apresenta-se em forma humana ou animal, e a comunidade participa na essência da divindade, comendo a carne dela. No México adornavam a um jovem esbelto com a vestimenta de deus Tzcatlipoca, desposavam-no com quatro moças, que levavam o nome de quatro deusas, rodeavam-no de luxo faustoso, e lhe permitiam gozar durante um ano inteiro de todas as honras que correspondiam a sua alta dignidade. Mas, ao transcorrer esse lapso de tempo, o levavam a pedra de sacrifício, onde um sacerdote, armado de uma faca sagrada, lhe abria o peito para arrancar-he o coração. O corpo morto era imediatamente comido... Muito mais tarde dá-se então um sentido simbólico ao sacramento da comunhão, o da união espiritual com a divindade.”
São esses elementos atávicos que floresceram novamente quando um dos sobreviventes do avvião uruguaio, que caiu na cordilheira dos Andes, em Outubro de 1972, Alfredo Delgado, disse numa entrevista coletiva à imprensa: “Tinha chegado o momento no qual já não tínhamos qualquer alimento, então pensamos: Se Jesus, em sua última ceia, repartiu seu corpo e seu sangue a todos os apóstolos, estava aí nos dando a entender que nós deveríamos fazer o mesmo. E tomamos seu corpo e seu sangue, que se haviam encarnado. E isso, que foi uma comunhão íntima entre todos nós, ajudou-nos a subsistir. E foi uma entrega de cada um”. Como se sabe, Delgado estava se referindo ao caso de antropofagia por necessidade mais comentado dos últimos tempos.
A antropofagia por necessidade é, isso é claro, a que perdurou com mais força entre os grupos que, dentro da relatividade das pautas culturais, definimos como civilizados. No Antigo Testamento abundam as referências a essa compulsão. Em seu livro Guerra dos Judeus, Flávio Josefo narra que Maria, filha de Eleazar, matou e comeu seu filho durante o cerco de Jerusalém por Tito. As regras de guerra do rei Afonso, o Sábio, também admitem a possibilidade do pai comer o filho “se estivesse em tal estado e fome e não tivesse qualquer outra maneira de saciar essa sua necessidade”. Os episódios de antropofagia, aliás, foram comuns durante o cerco de Paris, em 1590, e durante a grande fome de Argel, em 1868.
Em 1884, registrou-se um caso de canibalismo que haveria de enriquecer a jurisprudência: os náufragos do yate La Mignonette, que estavam há vários dias vagando pelo mar num bote salva-vida, sem ter o que comer e o que beber, terminaram matando um gumete de 17 anos, que estava doente por ter bebido água do mar. Beberam seu sangue e alimentaram-se de sua carne durante vários dias, até que foram vistos por um barco alemão que os içou a bordo. Os três tripulantes do barco salva-vidas foram julgados em Londres, tendo o tribunal condenado à morte a dois deles, absolvendo o terceiro que, embora também se alimentara de carne humana houvera sido contra a execução do grumete. A rainha Vitória posteriormente comutou a pena de morte por seis meses de prisão.
Poucos detectaram nesse momento uma coincidência notável. Exatamente meio século antes a mente atormentada de Edgar Allan Poe havia alinhavado, em Aventuras de Artur Gordon Pym, uma fantasia macabra que pressagiava quase ao pé da letra os fatos de La Mignonetre. Gordon Pym e os outros tripulantes do baleeiro Grampus, que navegava a esmo, elegem, por sorteio quem irá lhes servir de alimento. “Não insistirei a respeito do terrível festim que se seguiu – lê-se na novela – basta dizer que, depois de haver apaziguado até certo ponto, com sangue da vítima, a abrasadora sede que nos consumia, atiramos ao mar, por comum acordo, a cabeça, as mãos, os pés e as vísceras, e comemos o resto do corpo, pedaço por pedaço, durante os quatro memoráveis dias que se seguiram.”
A antropofagia por necessidade é, obviamente, a que a sociedade tolera com mais benevolência. Ao ter-se notícia do acontecimento na cordilheira dos Andes, no final de 1972, o teólogo Gino Concetti escreveu no L’Osservotore Romano que “se é admissível que para sobreviver pode-se enxertar qualquer órgão ou parte do corpo de um morte em um ser vivo, não há razão por que, num casa extremo, os homens não haveriam de servir de todo o corpo de um morto, a fim de se salvar. O fato apenas tem uma aparência de canibalismo. A necessidade de sobreviver tira todo o aspecto negativo deste comportamento.

Arte agressiva

Os estudiosos admitem que é impossível traçar linhas divisórias rígidas entre diversas origens e motivações dos atos antropofágicos e que estes resultam de um intrincado entrecruzamento de fatores desencadeantes. Há, entretanto, traços sobressalentes que permitem esboçar uma classificação empírica elementar.
Embora pareça paradoxal, pode-se falar de antropofagia por afeto, que é aquela que Heródoto atribui aos massagetas.  Os binderwurs da Índia Central matavam e comiam os fracos e os anciãos “pensando ser este um ato de misericórdia, grato à deusa Kali”. Os tangara levam seus mortos consigo e, cada vês que se sentem tristes pela morte de seus entes queridos, comem um pouco de sua carne, até restar apenas os ossos. Lyden descreve um costume canibalesco que tem toda a aparência de uma cerimônia muito piedosa. Os anciãos e doentes se oferecem a seus descendentes para que estes os comam. A vítima sobe numa árvore, em torno da qual se reúne sua família entoando um hino fúnebre: “A estação chegou; o fruto está maduro e deve cair.” A vítima desce e é executada e ingerida em um solene banquete.
No polo oposto encontra-se, presumivelmente a antropofagia por ódio e por vingança. “Que  a ira e a raiva me induzam a devorar em pedaços, cortados e cru, o corpo do malvado, antes que mais danos ele produza”, diz uma famosa imprecação de Aquiles. As tribos ferozes da Nova Caledônia apenas consideram que a vingança está completa quando devoram seus inimigos mortos. Os nativos de Samoa também praticavam a antropofagia movidos pelo ódio, e seu pior insulto era: “Assarei você”. Inclusive depois de renunciar ao canibalismo, os samoanos obrigavam seus cativos a oferecer-lhes tochas acessas e a recitar a seguinte súplica: “Mate-nos e cozinhe-nos quando quiser”. Alguns estudiosos de nossos índios brasileiros chegam a afirmar que os tupis comiam seus inimigos e criavam os filhos desses para comê-los quando completassem 14 anos.
O mais chocante de todos é, sem dúvida, o canibalismo por gula. Birket-Smith conta que para os mangabetus, que vivem no limite entre o Congo e o Sudão, “a carne humana representa uma guloseima que se vende nos mercados, bem apresentada e envolta em falhas frescas”. Cieza de León espantou-se porque os índios da Colômbia, catalogados como os mais ferozes canibais da America do Sul, tinham especial prazer em matar as mulheres grávidas, como propósito de comer-lhes o embrião, cuja carne muito lhes agradava. Jean De Lery escreveu a respeito dos tupis: “Todos confessam que a carne é maravilhosamente saborosa e delicada”. A carne das anciãs era, acima de qualquer outra, seu manjar predileto. Entretanto, a gula não era a única nem a principal motivação dos tupis, assevera Lery. O que mais os interessava, quando roíam os mortos até os ossos, era “espantar os vivos”.
“Espantar os vivos” é também o objetivo que pretende alcançar a cíclica reiteração do tema antropofágico na arte. Basta recordar, por exemplo, as alucinantes imagens que Goya pintou em dois de seus quadros intitulados Os canibais. A literatura e o drama são outros dois gêneros nos quais a antropofagia assoma como uma alegoria ideal para transmitir mensagem de castigos exemplares. Esta técnica intimidatória repete-se em várias histórias infantis, como a de Hansel e Gretel, que tem suas raízes no folklore tradicional, ou em lendas famosas, como Tito Andrônico, a tragédia de Shakespeare, que relata a história mitológica do culpado que como, sem saber, um prato preparado com a carne de seus próprios filhos.
Foi Jonathan Swift quem levou até as últimas consequências o emprego simbólico e moralizador da antropofagia, num desbordamento exasperante de humor negro. Com a finalidade de sacudir a sensibilidade de seus contemporâneos e de comunicar-lhes a magnitude tétrica da pobreza e fome que assolavam o Grã-Bretanha por volta de 1700, Swift redigiu seu panfleto satírico intitulado Uma Modesta Proposição, no qual, depois de descrever a proliferação de “mendigas seguidas por três, quatro ou seis crianças, todas farrapos”, que importunam os passantes pedindo esmolas, dá como certo que “todos estão de acordo que este prodigioso número de filhos, nos braços às costas ou seguindo suas mães e frequentemente seus pais é, na atual situação deplorável do Reino, outra grande injustiça”.
O que Swift aconselha, pois, humildemente, é que as mães amamentem seus filhos durante um ano, coisa que podem fazer a baixo custo, e que em seguida o Estado separe um lote de cem mil crianças de um ano e as ofereça “em venda às pessoas de qualidade e fortuna de todo o reino. Recomenda também que sempre a mãe lhes permita mamar copiosamente no último mês, a fim de tornar as crianças gordinhas e tenras para uma boa mesa. Uma criança servirá bem para a confecção de dois pratos quando se tem amigos convidados. Quando a família come sozinha, o quarto dianteiro bastará para se fazer um prato razoável, que temperado com um pouco de pimenta e as, e bem fervido, poderá durar até quatro dias, principalmente no inverno... Suponho que tal manjar custará um pouco caro – acrescenta intencionalmente Swift, e por tanto muito adequado para os abonados que, como já devoraram a maioria dos pais, parecem reunir as melhores condições para aspirar também os filhos”.
Também o Marquês de Sade não perdeu a oportunidade de introduzir a antropofagia em seu nutrido catálogo de aberrações. “Meus amigos – escreveu em Julieta – já os preveni que aqui só nos alimentamos de carne humana; todos os pratos aqui apresentados foram preparados com ela. -  Provaremos, contestou Sbrigan; as repugnâncias são formas de absurdo: são defeitos criados pelo hábito; todas as comidas feitas para o sustento do homem, todas, nos são oferecidas pela natureza para essa finalidade e não há qualquer diferença entre comer homem ou frango. Enquanto dizia isso, meu marido enterrou o garfo num pedaço de criança assada, que lhe pareceu bem ao ponto, e colocando pelo menos meio quilo sobre seu prato, o devorou em poucos instantes. Eu o imitei...”
Não é estranho, com semelhantes antecedentes, que em nossa época, repleta de matanças e injustiças que se cometem em escala universal, muitos artistas e sobretudo cineastas, tenham revivido, por intermédio da parábola antropofágica, as agudas reflexões com que Montaigne e Voltaire tentaram desmentir a pretensiosa superioridade do europeu sobre o selvagem. As agressivas cenas dos filmes como A Pocilga (Piero Paolo Pasolini), Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade), Week-End (Jean Luc Godard) refletem, segundo André Green, “a vontade de interpretar a violência típica de nossas sociedades como uma prolongação apenas modificada de uma relação canibalística”.
Teoricamente a antropofagia habitual está restrita, na atualidade, a algumas tribos americanas isoladas e aos habitantes de comarcas da África equatorial e central, a algumas ilhas do arquipélago Malaio e Melanésia e de zonas remotas da Austrália. Mas, é possível que tal enumeração seja equívoca e que o homem civilizado esteja tão longe de ter superado sua antropofagia como o estava aquele chefe de tribo que, consultado por um explorador, respondeu-lhes: “não, claro que aqui não há mais canibais. Ontem comemos o último”.

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