terça-feira, 12 de junho de 2012

OS EXPERIMENTOS DO CECOP – CENTRO DE CONVIVÊNCIA DA PESSOA.



   Mais um texto que encontro arquivado em minhas gavetas. Sem data e sem nenhuma referência onde foi apresentado, pela linguaguem da qual me utilizo, não tenho muita dúvida que deve ter sido no início dos anos 90 em algum colóquio de Psicanálise. Neste período andava dialogando bastante com psicanalistas pertencentes a várias escolas de psicanálise. O Centro de Convivência da Pessoa - CECOP, instituição criada por mim e por mais quatro colegas, veio ocupar um espaço vago em Recife para cuidar de psicóticos. Esta instituição foi inspirada na Escola Experimental de Bonneuil, na França e na Casa das Palmeiras, Rio de Janeiro.
Na medida em que suscitou muita polêmica, ela veio a tornar-se um modelo de envergadura terapêutica produzindo os mais diversos interesses.
Estamos publicando o texto sem nenhuma correção ou acréscimo. Da minha parte, o considero nem tanto datado assim... 



Vida e Criação


   Resumo - O trabalho experimental do Centro de Convivência da Pessoa – CECOP, fundado em 1986, pelo Terapeuta Ocupacional Luiz Gonzaga P. Leal, oferece locais e momentos de criações diversas. Momentos suscetíveis de produzirem efeitos terapêuticos, sem que o valor destes seja o seu objetivo. Realizações, produções coletivas dentro de um circuito de mudança e de reconhecimento do exterior. Possibilidade de trajetórias pessoais, agente-ator-autor de sua própria história a ser construída.
  
   Palavras-chaves: Momentos de criação – Efeitos terapêuticos – Produções coletivas – Agente – Ator – Autor.

   Nossa proposta não se inscreve em um projeto puramente terapêutico, mas no de uma experiência de vida. O Centro de Convivência da Pessoa, que foi fundado em 1986, acolhe um certo tipo de paciente com grande dificuldade – isto dentro de uma perspectiva de não segregação, daí o lugar específico que esse centro ocupa, como um local que se apoia em uma busca e uma luta por uma política diferente frente à loucura.
   O Centro de Convivência da Pessoa pela sua estrutura e suas referências a noção de cenário oferece locais e momentos de criações diversas. Momentos de criação que podem produzir efeitos terapêuticos, sem fazer do valor deles o seu objeto. As estruturas, as instalações estão ali para garantir um espaço de jogo, de fantasia e de invenção dando lugar a diversas produções que, dentro de um circulo de mudança e de reconhecimento fora da instituição, assumem o valor de criação artística. Nas oficinas: pintura, teatro, escultura, realização de um desenho animado têm pretexto terapêutico, o objetivo é de expor, de apresentar, de brincar e de levar a seu termo um trabalho coletivo. As referências de trabalho são MATISSE – RODIN – GROTOWSKY – ARTAUD – e profissionais dessas disciplinas.
   Estes tempos de criação constituem um trabalho coletivo concernente ao campo social e cultural. O ato criador, se existe um, é tomado dentro de uma linguagem comum, uma escrita tanto quanto uma maneira de agir. E enquanto forma de trabalho necessário à realização do homem se inscreve no interior de uma prática social e de uma transformação de uma certa realidade, que nós identificamos como aquilo que toca à criação.
   Todavia, se o objetivo que nós nos propomos é de levar a seu termo final o trabalho empreendido, confrontando-o aos olhos de um público, isto não impede que é dentro da preocupação de criar as condições necessárias ao advento de uma palavra apropriada. Nossas tentativas é de fazê-lo nascer como sujeito face a um “fazer”.
   Para melhor compreender o que está em jogo nessas diversas criações, parece-me importante apontar alguns elementos específicos da vida do Centro, por quanto eles podem engajar um certo processo dinâmico dentro dessa instituição.
   Um desses elementos é de levar em conta a dimensão histórica. A instituição clássica anula a possibilidade de uma historicidade própria, não deixando aos indivíduos outra alternativa do que serem agentes de uma história cuja cena se situa alhures. O Centro, de início, não teve outra prioridade do que um projeto nascido de um encontro entre a psicanálise, o movimento de antipsiquiatria, a Terapia Ocupacional e o desejo daquele que foi seu fundador (Luiz Gonzaga P. Leal). A postura atual corresponde à tomada de consideração de uma história (história singular e própria de cada paciente que passam ali algum tempo). Por exemplo, o fato de representar nosso trabalho em um teatro nasceu da palavra de um paciente, que o desejara, palavra ouvida naquele momento da história do Centro, que conduziu a uma reflexão teórica sobre a noção de abertura. Assim sendo, a possibilidade de serem também os agentes de uma história futura, que retoma um momento de sua própria história é dado àqueles que ali vivem. O que permite uma leitura é a colocação de um enquadramento, não como regulamento institucional, mas como estrutura permitindo pontos de referência e questionamento. É também para garantir a permanência de um trabalho coletivo dentro do centro, permitindo as evasões individuais, até mesmo as fugas e as propostas de um trabalho externo. As oficinas, pela sua regularidade no tempo e no espaço participam desse enquadramento – enquadramento deve ser entendido como um campo de linguagem. As produções individuais nele se inscrevem como mediações, trata-se de superá-las a fim de inseri-las em uma articulação simbólica através dos ritos e dentro de uma transformação. É uma dimensão essencial, por quanto permite evitar uma situação imaginária onde tudo pode se ligar do paciente aos cuidadores, sem qualquer interferência de terceiros. Garantia contra a angústia, acha-se ali também para ser continuamente interrogado em sua permanência.
   Esta noção de enquadramento demonstra bem que o trabalho realizado dentro e fora da instituição, em si mesmo não tem forçosamente valor, mas se reveste de um sentido em relação àquele pano de fundo, onde dentro do jogo da ausência e da presença um sujeito pode emergir. Chegamos assim à noção de abertura que descortina a possibilidade de modificações dialéticas. Uma prática da abertura está elaborada: ao invés de oferecer a permanência, o enquadramento da instituição oferece desde então uma proposta de permanência de abertura para o exterior, de brechas de toda espécie. O que permanece é um local de recesso, mas o essencial da vida se desenrola em um outro lugar. Nesta alternância, é a oscilação entre um projeto e uma fuga que está em jogo. É na organização desse tipo de inscrição, dentro de uma ordem social, e do discurso que a sustenta que o paciente vai evoluir em uma história futura.
   Nós estamos atentos, para à escuta do discurso coletivo. O que pode se representar no ato “precede” o fazer. É fundamental, e deve ser reintroduzido no discurso que existe ali (da mesma forma, aliás, naquilo que precede a invenção).
   Dois exemplos de realização de oficina de expressão artística vão nos servir para apreender o processo de nossas propostas criativas através do desejo dos cuidadores. Proponho-lhes retomar o exemplo da peça “Alice no País das Maravilhas”, já representada em diferentes teatros, através de diferentes montagens. E a realização de um desenho animado atualmente projetado em sala.
  
   Tomemos exemplo do teatro:
É a partir do olhar ingênuo de Alice, que não se surpreende com coisa alguma, diante do insólito do mundo onde ela evolui, no olhar dos espectadores, que se situa nossa ação teatral. Nós nos apoiamos aqui no trajeto efetuado por um paciente para ilustrar qualquer palavra de que se trata ali e quais são os seus efeitos.
“Após sua longa queda do terreiro do coelho, Alice tentou em vão abrir as portas da grande e baixa sala onde caiu. Ela retorna tristemente ao meio da sala, perguntando a si mesma como poderia sair”. Percebendo este relato, Carlos se levanta bruscamente e grita.
- “Eu quero sair, deixem-me sair”. Ele bate com a cabeça na parece, derruba os outros participantes.
- “Eu, eu tenho medo. Deixem-me sair”, grita ele.
Adultos atores fazem então eco a seu grito
- “Alice quer sair. Ela tem medo. Está escuro”, e nós martelamos com os punhos as paredes.

Carlos parece acalmar-se por um momento, depois ele repete já com menos violência: - “Eu quero sair. Alice quer sair, tenho medo... Alice tem medo”.
Depois, muito calmo, ele repete conosco: “Alice tem medo, ela quer sair”, mas desta vez inteiramente ao nível do jogo do ator.
  
   Isto se passava no momento do trabalho propriamente dito, na oficina de teatro do Centro. Quando foi representada em público, Carlos participou, gritando conosco – “Eu quero sair”, mas do lugar de Alice, desta vez.
   Foi depois dessa sessão de trabalho que os pais nos interrogaram sobre o que havia se passado com seu filho.
- “Ele fala sempre do teatro. Após sua última sessão, ele esqueceu que tinha medo da escuridão. Pela primeira vez em sua vida desceu ao porão”.
  
   Ato que só o pai tinha o hábito de fazer para ir buscar vinho. Assim, Carlos aceitou representar Alice e representar do interior das convenções do teatro. A partir de uma encenação que nada tem a ver com o normal e o patológico, inscrevem-se efeitos que nós chamaríamos de terapêuticos. A partir dessa data, Carlos apresentava-se, sempre com as mesmas palavras: “Haverá teatro hoje? Posso ir? É certo?”.
   Desta forma, esse paciente representando do lugar de Alice com seu medo, começou a dominar esse medo, deslocando-o: o que merece ser evocado é o domínio adquirido pelo paciente, em função do jogo. Na cena do teatro, Carlos chega com o real de seu sintoma, medo que se traduz no nível do corpo e de sua destruição. O grupo acolhe este medo trazendo então a única resposta possível a esta realidade manifestada por Carlos, isto é, dando um sentido outro que no medo experimentado, isto por um discurso que vem de fora. (A trama do texto é Caroll). É esta intervenção que permite a Carlos superar e deslocar seu sintoma e desta forma aceitando dar-lhe um sentido universal, a saber aqui o sentido que uma menina Alice, sentiu e que o grupo pode acolher.
   Sob a pressão das convenções teatrais, encontramos aí tudo o que nos diz FREUD, quando afirma que é na medida onde o drama subjetivo está integrado em um mito com um valor humano entendido, que o sujeito se realiza. A partir daí, Carlos descobrirá que seu jogo tem efeitos sobre os espectadores, e estes efeitos, por sua vez, tornar-se-ão simbólicos.

- “Eu não quero mais representar no centro, nos diz ele”. Sim, por que?

“Isto não impressiona as pessoas, quero que tenha espectadores” e isto num tom inteiramente diferente daquele que lhe é habitual e onde falava de si na 3ª pessoa.

   Foi após uma representação de pleno êxito, que seria observado que pela primeira vez em sua vida, Carlos poderá reconhecer nele a dimensão do jogo em seus atos. Com efeito, um dia, quando ele então tentava jogar-se debaixo de um carro, parou bruscamente, e olhando as pessoas que se preparavam para intervir, declarou: “Mas eu estou brincando de fazer medo, de me fazer medo”. O que ele pôde adquirir no palco, o saber investir nesta cena como imaginária, após tê-la vivido como real, será em seguida transportado para sua vida diária. 
   E essa aquisição parece ser nada menos que uma estruturação da imaginação necessária á instauração dessa série de equivalência em um sistema onde os objetos se substituem uns aos outros. Aí está, quer nos parecer, toda a força e fragilidade de um tal trabalho, força por quanto é pelo fato que a cena pode ser investida como imaginária, e não como real, que um efeito de simbolização é possível, fragilidade pois o espectador percebe como é preciso pouca coisa para que todo este jogo oscile do lado real. Aconteceu, quando de representações, que esse deslizamento para o real ficasse esboçado: “Eu quero sair”, grita Carlos. No momento do processo, esquecendo que se representa Alice.

“Silêncio, diz o rei, ou eu faço evacuar a sala do tribunal”.
“Ah, sim”, responde ele, retomando então um lugar no jogo.

   Nos vestígios dos passos de Alice, sendo que não é indiferente que eles se inscrevam inteiramente na cena do sonho, o que abandona Carlos com seu medo do rei? “O teatro, escreve ARTAUD, deve ser considerado como o substituto não da realidade cotidiana... mas, de outra realidade perigosa e típica onde os príncipes, como os delfins, quando mostram a cabeça, apressam-se em voltar para a obscuridade”.
   Desses olhares cruzados, a partir dos quais cada um tem um lugar, que pode trocar com outro, isto é ao nível da troca entre ator, espectador, que se representa a realidade concreta do acontecimento teatral, isto em nome das convenções do teatro.
   A obra teatral não é o texto, o livro. O teatro tornaria de preferência sensível, o que na página impressa só pode se traduzir por brancos ou ausência de pontuação, reticências... etc. Ao término desse trabalho coletivo, parece realmente que a criação é secundária a um drama secreto, a um aniquilamento primeiro, onde o universo é derrubado. Nós trabalhamos com os sintomas, as crises, os atos criativos, mas para nós, o essencial continua sendo a escrita do sujeito e de seu desejo.
   O outro exemplo é o da realização de um desenho animado. Ele acentua talvez a melhor noção de intencionalidade, na qual é preso o paciente para agir e criar.
   Quando por ocasião de uma conversação, a ideia de fazer um filme foi levantada e retomada por um paciente: E por que não um desenho animado? A partir daí, uma longa aventura rica em criação de toda espécie, nasceu. Nós nos dirigimos a profissionais, para nos iluminar com a sua experiência. Entre eles, Sávio Furtado, profissional de cinema com grande experiência em curtas-metragens.  A ideia de uma verdadeira realização mobilizou muitos pacientes, e nove dentre eles tornaram-se autores. Um período durante o qual a introdução da câmera, do visor, do: “Silêncio: estamos gravando”, impôs um verdadeiro convite à criação. Criações individuais de desenhos, pintura, colagem a partir de cenários inventados pelos próprios pacientes. No final, apareceu um filme de ficção em cinema de animação.
   Não me estenderei mais, por enquanto ainda teria muito a dizer sobre o desenrolar dessa oficina de criação. Mas, o que é interessante sublinhar, é a maneira como se propõe o paciente a sair de sua PASSIVIDADE; Passividade feita de sintomas, até mesmo de inibições, na qual ele está preso, fazendo entrar sua palavra, suas fantasias, seu jogo, seus fantasmas através de desenhos e pinturas, em uma criação que transforma a realidade deles. Eles assumem um outro sentido, um outro destino por ordem dessa escrita animada e filmada. Inscrição dentro de outro campo, de outro contexto. Não se trata aí de solucionar os conflitos. A tentativa é ir além de sua própria história dentro de uma proposta ativa onde os efeitos “hic et nun”, escapam a eles e a nós, em proveito de uma realização coletiva.
Tornando-se atores, não se poderia dizer que se tornam efeito de seu próprio ato?
Com o ato criativo, o autor mostra à distância um prazer que não investe mais seu corpo.
Então, para concluir, criar alguma vez curou?
   E a outra pergunta é: se a arte é terapêutica, a terapia ocupacional através da arte não esvaziaria a arte de seu conteúdo e de suas potencialidades? Por enquanto, a julgar de nossa prática teatral, o levantamento do recalque que acompanha o efeito terapêutico não sucede absolutamente à produção da obra.
Terminemos com esta frase de PABLO PICASSO:
“O que conta é o próprio drama do ato, o momento em que o universo escapa de si mesmo para reencontrar sua própria destruição.”

Sumário


Vida e criação no “Centro de Convivência da Pessoa”.
   “O Centro de Convivência da Pessoa”, fundado em 1986 por Luiz Gonzaga P. Leal fornece suporte para a estruturação de diferentes locais e tempos devotados ao desenvolvimento da ação criativa. Estes locais e tempos otimistas produzem efeitos terapêuticos, mas sem ser especificamente planejados para isso. Em lugar de pretextos terapêuticos intra-mural, trabalho coletivo e projetos de trocas comuns e reconhecidos pelo mundo externo são desejados. Isto inclui encorajamento individual de cada um em respeitar sua história pessoal e determinar seu próprio caminho de auto-realização.

Palavras-chaves:

Trabalho coletivo - Projetos comuns – Mundo exterior – Terapia Ocupacional - Auto-realização – Criatividade – Potência Criativa.

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