sexta-feira, 18 de maio de 2018

CAIXA DE ARQUITETURAS INACABADAS: silêncio de fundo, ausência de formas




INTRODUÇÃO
Ao longo da minha trajetória profissional, o contato com o paciente me despertou sempre curiosidade e dúvida. Cada encontro provocava situações inéditas e inesperadas.
Dentre as minhas inúmeras observações, registro uma que me causava certa perplexidade: muitos pacientes psicóticos, na tentativa de criar algo, não raro faziam dessa possível criação uma forma inacabada. Possível criação que estava comumente associada ao manuseio de um material concreto. Pinturas, tapeçarias, bordados etc, invariavelmente traziam a marca do inconcluso. Surpreendia-me que o tornar objetos inacabados, fazia-se presente não apenas naqueles pacientes mais necessitados, portanto mais cindidos – e então era fácil compreender tal atitude –, mas também naqueles que estavam vivenciando etapas de uma maior estruturação interna. Ao mesmo tempo, eu podia reconhecer naquele especto lacunar uma trama, um fio de ligação que tecia a história de vida do paciente. Isto ia me dando condições de avaliar o modo pelo qual todas as variações, transformações e elementos diversos são parte integrante e necessárias. Constava assim que a experiência nos dá acesso a outras dimensões, as quais, de outro modo, nos seriam vedadas.
Se eu lhes pedir que explicassem por que seus projetos não eram concluídos, nunca deixava de ter uma resposta na ponta da língua. Alguns alegavam ter perdido a paciência, outros fingiam não escutar minha indagação e com isso fechava circuitos de comunicação; outros respondiam que aquilo era tudo o que conseguiam fazer.
A palavra daí decorrente sugeria-me o traçado d um caminho tortuoso na direção do que eu poderia chamar de Centro do Labirinto; quer dizer, uma permanente e dolorosa busca da forma. E tudo isso encontrava expressão naquelas inconclusas arquiteturas.
Em termos de processo terapêutico, tenho claro que isso significa uma versão manifesta que encobre um tempo e uma história bem mais complexa e pouco familiar, portanto mais informativa e transformadora.
É fácil observar que os psicóticos estão sempre buscando contato com algum material e que isso para eles é uma maneira de expressar-se em rabiscos, em paredes e móveis, escritos em papéis jogados e imprestáveis, manuseio de material sucateado, como pedaços de madeira, retalhos de tecidos, peças de automóveis e eletrodomésticos, brinquedos quebrados etc. Tudo isso serve a essa busca de contato, são materiais das mais diversas origens, sempre com o aspecto de coisa arqueológica, trabalhada pelo tempo. É como se, a partir daí, camadas mais antigas e mais soterradas fossem adquirindo nova versão. A meu ver, é nessa etapa que se inicia o processo de criação no qual o inconsciente, de forma radical, tem papel predominante. Penso que o inconsciente e o acaso sejam os principais responsáveis pela construção desses esboços de forma, dessas arquiteturas inacabadas. É o “tornando-se subjetivo” na expressão de Thomas Mann.

A CAIXA
“Arquiteturas Inacabadas” era como eu designava todos os projetos não concluídos dos pacientes, ou seja, abandonadas a meio caminho. Esse acervo avoluma-se a cada dia, por vezes os objetos se misturavam uns aos outros, dificultando uma identificação, de modo que, se algo poderia servir como pista elucidativa, canal dialogante, ficava perdido no espaço e no tempo. Compreendi isso quando alguns deles manifestavam o desejo de que lhes fossem mostradas suas antigas produções; objetos que, via de regra, guardavam uma relação com o inacabado. Era como se eles quisessem apreciar uma antiga fotografia, o que marcava o tempo e o espaço de uma trajetória. Fui assim valorizando esse material, destinando-o àquilo que vim chamar de “Caixa de Arquitetura Inacabada”. Cada paciente tinha uma caixa separada e para ela era encaminhada a sua produção. Pude, então, observar: a caixa que abrigava as referidas arquiteturas em si já representava uma possibilidade de forma, dado que proporcionava uma experiência visual, ligada ao todo. Portanto, se por um lado a caixa se convertia em “continente”, aglutinando objetos que traduziam afetos, por outro lado se constituía em recurso gerador de uma forma, isto é, “o conjunto de arquiteturas inacabadas”. Fui constatando que a caixa era um elemento a mais, mediante o qual o paciente narrava sua história de forma espontânea, lúdica, despojada, sincera, sem subterfúgios. Ao mesmo tempo lhes proporcionava determinadas autopercepções.
A partir daí, fiz observações que me pareciam significativas, uma vez que estava lidando com pacientes que viviam um profundo estado de desassossego e desesperança. Alguns deles manifestavam prazer ao ler o seu nome escrito numa caixa, outros se deliciavam em exibi-la, outros ainda adotavam uma postura contemplativa em relação à caixa, como se estivessem enxergando algo que antes lhes escapara: como se soubesse que saber como era a caixa fosse possível apreender-se a si próprio.
Se o dar um destino a todos aqueles objetos era um passo a mais rumo à organização do mundo interno do psicótico, é preciso no entanto, entender que esses mesmos objetos se encontravam inseridos numa esfera significante, quer dizer, não eram objetos no sentido de uma concretude imediata e sim, representações de quem os produziu.
O manejo da caixa como recurso terapêutico, veio a tornar-se por excelência, um elemento integrador, pois ali estavam presentificadas as conexões e desconexões vivenciadas pelo paciente. Semanalmente, em hora e local previamente combinados, Terapeuta Ocupacional e Paciente empenhavam-se em elaborações em torno da caixa, um com relação ao ser a caixa outro continente, outro com relação ao seu conteúdo. Dessa experiência, que tem por base uma ação concreta e por isso uma dimensão material, uma palavra brotava, um gesto inédito se fazia presente, um discurso novo se articulava. Era como se colocar a realidade em movimento.
Quero portanto, enfatizar a importância que tem, para o processo terapêutico com psicóticos, toda e qualquer produção deles advinda, seja uma simples garatuja em papel imprestável, seja a criação de um objeto esteticamente apreciável, Tudo é fonte de renovação contínua para aquele que se encontra excluído. Exemplo do fio de Ariadne, tais criações permitem ao paciente não só guiar-se através do próprio labirinto, mas também sair dele a salvo, fazendo o que é preciso: penetrar no labirinto e matar o minotauro.

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