INTRODUÇÃO
Ao
longo da minha trajetória profissional, o contato com o paciente me
despertou sempre curiosidade e dúvida. Cada encontro provocava
situações inéditas e inesperadas.
Dentre
as minhas inúmeras observações, registro uma que me causava certa
perplexidade: muitos pacientes psicóticos, na tentativa de criar
algo, não raro faziam dessa possível criação uma forma inacabada.
Possível criação que estava comumente associada ao manuseio de um
material concreto. Pinturas, tapeçarias, bordados etc,
invariavelmente traziam a marca do inconcluso. Surpreendia-me que o
tornar objetos inacabados, fazia-se presente não apenas naqueles
pacientes mais necessitados, portanto mais cindidos – e então era
fácil compreender tal atitude –, mas também naqueles que estavam
vivenciando etapas de uma maior estruturação interna. Ao mesmo
tempo, eu podia reconhecer naquele especto lacunar uma trama, um fio
de ligação que tecia a história de vida do paciente. Isto ia me
dando condições de avaliar o modo pelo qual todas as variações,
transformações e elementos diversos são parte integrante e
necessárias. Constava assim que a experiência nos dá acesso a
outras dimensões, as quais, de outro modo, nos seriam vedadas.
Se
eu lhes pedir que explicassem por que seus projetos não eram
concluídos, nunca deixava de ter uma resposta na ponta da língua.
Alguns alegavam ter perdido a paciência, outros fingiam não escutar
minha indagação e com isso fechava circuitos de comunicação;
outros respondiam que aquilo era tudo o que conseguiam fazer.
A
palavra daí decorrente sugeria-me o traçado d um caminho tortuoso
na direção do que eu poderia chamar de Centro do Labirinto; quer
dizer, uma permanente e dolorosa busca da forma. E tudo isso
encontrava expressão naquelas inconclusas arquiteturas.
Em
termos de processo terapêutico, tenho claro que isso significa uma
versão manifesta que encobre um tempo e uma história bem mais
complexa e pouco familiar, portanto mais informativa e
transformadora.
É
fácil observar que os psicóticos estão sempre buscando contato com
algum material e que isso para eles é uma maneira de expressar-se em
rabiscos, em paredes e móveis, escritos em papéis jogados e
imprestáveis, manuseio de material sucateado, como pedaços de
madeira, retalhos de tecidos, peças de automóveis e
eletrodomésticos, brinquedos quebrados etc. Tudo isso serve a essa
busca de contato, são materiais das mais diversas origens, sempre
com o aspecto de coisa arqueológica, trabalhada pelo tempo. É como
se, a partir daí, camadas mais antigas e mais soterradas fossem
adquirindo nova versão. A meu ver, é nessa etapa que se inicia o
processo de criação no qual o inconsciente, de forma radical, tem
papel predominante. Penso que o inconsciente e o acaso sejam os
principais responsáveis pela construção desses esboços de forma,
dessas arquiteturas inacabadas. É o “tornando-se subjetivo” na
expressão de Thomas Mann.
A
CAIXA
“Arquiteturas
Inacabadas” era como eu designava todos os projetos não concluídos
dos pacientes, ou seja, abandonadas a meio caminho. Esse acervo
avoluma-se a cada dia, por vezes os objetos se misturavam uns aos
outros, dificultando uma identificação, de modo que, se algo
poderia servir como pista elucidativa, canal dialogante, ficava
perdido no espaço e no tempo. Compreendi isso quando alguns deles
manifestavam o desejo de que lhes fossem mostradas suas antigas
produções; objetos que, via de regra, guardavam uma relação com o
inacabado. Era como se eles quisessem apreciar uma antiga fotografia,
o que marcava o tempo e o espaço de uma trajetória. Fui assim
valorizando esse material, destinando-o àquilo que vim chamar de
“Caixa de Arquitetura Inacabada”. Cada paciente tinha uma caixa
separada e para ela era encaminhada a sua produção. Pude, então,
observar: a caixa que abrigava as referidas arquiteturas em si já
representava uma possibilidade de forma, dado que proporcionava uma
experiência visual, ligada ao todo. Portanto, se por um lado a caixa
se convertia em “continente”, aglutinando objetos que traduziam
afetos, por outro lado se constituía em recurso gerador de uma
forma, isto é, “o conjunto de arquiteturas inacabadas”. Fui
constatando que a caixa era um elemento a mais, mediante o qual o
paciente narrava sua história de forma espontânea, lúdica,
despojada, sincera, sem subterfúgios. Ao mesmo tempo lhes
proporcionava determinadas autopercepções.
A
partir daí, fiz observações que me pareciam significativas, uma
vez que estava lidando com pacientes que viviam um profundo estado de
desassossego e desesperança. Alguns deles manifestavam prazer ao ler
o seu nome escrito numa caixa, outros se deliciavam em exibi-la,
outros ainda adotavam uma postura contemplativa em relação à
caixa, como se estivessem enxergando algo que antes lhes escapara:
como se soubesse que saber como era a caixa fosse possível
apreender-se a si próprio.
Se o
dar um destino a todos aqueles objetos era um passo a mais rumo à
organização do mundo interno do psicótico, é preciso no entanto,
entender que esses mesmos objetos se encontravam inseridos numa
esfera significante, quer dizer, não eram objetos no sentido de uma
concretude imediata e sim, representações de quem os produziu.
O
manejo da caixa como recurso terapêutico, veio a tornar-se por
excelência, um elemento integrador, pois ali estavam presentificadas
as conexões e desconexões vivenciadas pelo paciente. Semanalmente,
em hora e local previamente combinados, Terapeuta Ocupacional e
Paciente empenhavam-se em elaborações em torno da caixa, um com
relação ao ser a caixa outro continente, outro com relação ao seu
conteúdo. Dessa experiência, que tem por base uma ação concreta e
por isso uma dimensão material, uma palavra brotava, um gesto
inédito se fazia presente, um discurso novo se articulava. Era como
se colocar a realidade em movimento.
Quero
portanto, enfatizar a importância que tem, para o processo
terapêutico com psicóticos, toda e qualquer produção deles
advinda, seja uma simples garatuja em papel imprestável, seja a
criação de um objeto esteticamente apreciável, Tudo é fonte de
renovação contínua para aquele que se encontra excluído. Exemplo
do fio de Ariadne, tais criações permitem ao paciente não só
guiar-se através do próprio labirinto, mas também sair dele a
salvo, fazendo o que é preciso: penetrar no labirinto e matar o
minotauro.