segunda-feira, 21 de maio de 2018

DRAMATURGIA DE IMPUREZAS




Entre mim e as pessoas de quem cuidei, a escrita sempre se fez presente. Ora como um gesto espontâneo, ora como necessidade do próprio momento do encontro. Alguma dificuldade surgia e a escrita, portanto, se tornava objeto de intermediação no sentido de presentificar o afeto. Ainda assim não deixava de se traduzir no gesto concreto de o outro se dizer no mundo e de se reafirmar como pessoa. Por outro lado, era como se desassossegado estivesse atrás de um porto seguro e nele pudesse ancorar. Escrever, então, era o grande mistério. Pacientes inquietos tornavam-se mais doces e suaves ao vivenciar no cotidiano o exercício da escrita. Era assim que eu entendia o motivo pelo qual determinado paciente era impelido a escrever. E aí eu confirmava a ideia de que escrever tem algo mágico, ilusório, fantástico, enigmático.
Tudo ali se dizia presente. Dor e desassossego, alegria e prazer estavam sempre lado a lado; fios de esperança que se teciam através de frases elaboradas ou impulsivamente construídas. Imagens tantas, desenhadas com os traços e as cores da escrita. Era como se as coisas tomassem um novo rumo e ganhassem outro movimento.
Às vezes eu tinha a impressão de que, para construir tais escritos, os pacientes tinham que descer às profundezas dos infernos. Mais precisamente, os escritos expressavam essa descida e, por vezes, se convertiam até mesmo no caminho de volta. Ao longo da minha vida profissional, fui colecionando poemas, frases, redações, versos, pensamentos, todos relacionados com um momento singular na vida de cada um, verdadeiras confissões em torno do existir. Era enorme o prazer de lê-los e arquivá-los. Em síntese, era para isso que os autores me traziam suas produções: para poder provocar um prazer ao ler os seus textos, mas por outro lado era como se tivessem a garantia de que comigo estariam bem acolhidos e guardados. Daí o máximo cuidado. Significações e Codificações tantas...
Alguns desses escritos me eram endereçados. Tal gesto era por mim encarado como múltiplo, plural. Não me atraía uma leitura reducionista do gesto, pois via nele uma tentativa de ampliar seus universos de referência; mais uma forma do seu jeito de ser, viver e aprender o mundo. Sempre os encorajei a escrever. Constatava que o ato da escrita e o que resultava daí era fonte de sabores vários. Disto tinha a convicção, pois os pacientes, nos seus relatos, me davam a noção do que é saborear os próprios escritos. Não era à toa que manifestavam prazer ao vê-los por mim saboreados. Era a escrita se traduzindo em laço; a pessoa destinando a si, mas igualmente ao outro.
Alguns deles exerciam com maior ênfase o que lhes solicitava. Era como se precisassem apenas de uma palavra, de um consentimento para efetuar o gesto. Era tal o empurrãozinho que faltava. Outros, mais tímidos, ousavam uma menor intimidade com o papel e o lápis. Alegavam sempre: não está na minha hora. E eu compreendia que era o tempo da escrita – era precioso aguardar o devido tempo para jorrar a escrita. O referencial tempo tornava-se para mim algo fundamental, porque era também por meio dos escritos e da maneira como eram praticados que os pacientes tentavam me dizer dos seus universos e do ritmo interno que os movia. Espaço e tempo, relações inúmeras...
Entre os escritos que guardo comigo, estão os depoimentos de Eleonora e Ana, os quais, com seus devidos consentimentos, torno públicos.
Ambas sempre apresentaram uma grande inclinação e jeito para escrever. Durante nossos primeiros contatos logo percebi suas motivações em relação à prática e a partir dali me tornei um incentivador. Ambas possuem uma obra vasta, já que muitos afetos foram tecidos, costurados, desenhados em vidas através do ato de escrever e, consequentemente, de seu produto. Produções incontáveis...
Os dois escritos a seguir, se antes expressam a grandeza, a suavidade, a delicadeza com que elas dizem os seus estar no mundo, por outro lado falam de uma trajetória construída com base nos perigos, nos sustos, na ousadia, na determinação. Se para elas foi importante fazer essa confissão, para mim é comovedor transformar seus escritos no espelho projetor de imagens que me dão uma clareza do processo de mediação no qual fui posto diante dessas vivências de estados inumeráveis.
“Não recordo bem se foi abril ou maio do ano passado, 1993, que recebi do meu clínico geral o diagnóstico: Síndrome de Pânico. Estava eu naquele momento vivendo um crítico período da minha vida, em que se misturavam sintomas físicos, psicológicos, emocionais; um verdadeiro turbilhão de pensamentos, sensações e emoções, definidas e indefinidas, que poderia ser chamado apenas de medo.
Foi quando, de repente, num programa de televisão, (...) do qual participavam médicos psiquiatras e outros profissionais da área de saúde mental, que vislumbrei um raio de esperança para a cura daquela dor tão profunda e inexplicável... Anotei o nome de um daqueles profissionais e saí à procura dele: Luiz Gonzaga Pereira Leal. Terapeuta Ocupacional.
Marquei uma consulta e assim conheci o dr. Luiz Gonzaga e o CECOP, local onde ele atendia seus pacientes. Era a primeira vez que um profissional me recebia as 12 horas do dia, e foi a primeira vez que enfrentei o calor escaldante da rua e o abafado de um ônibus superlotado, ao me deslocar de Olinda, onde moro, até o Parque da Jaqueira, local do consultório. Algo dentro de mim me impulsionava a seguir; mesmo correndo o risco de ter enxaqueca, coisa que o sol e o calor sempre me trouxeram. Assim encontrei o dr. Luiz Gonzaga e confirmei a impressão que ele havia me passado quando o vi, num certo programa na televisão, pela primeira vez. Era um Terapeuta, mas, antes de tudo, era uma pessoa. E foi com essa pessoa, sensível, simples e humana, que comecei o meu processo.
Durante oito meses dediquei-me aos encontros semanais com o dr. Luiz e o ambiente da clínica. O CECOP era um espaço de terapia ocupacional e por lá transitavam os mais variados graus de conflitos e patologias; e talvez por isso também mais rico e mais importante para mim naquele momento. Com minhas sessões individuais e aquele ambiente bom à minha volta, percebido enquanto aguardava a hora de ser atendida, comecei a sentir que alguma coisa se transformava dentro e em torno de mim. Através do estímulo, da solidariedade, do saber ouvir e da cumplicidade do dr. Luiz, alguns de meus medos foram lentamente desaparecendo e outros foram tomando cada um o seu devido lugar e exercendo o devido papel na minha vida. E também aprendi uma forma mais bonita de me expressar e talvez até mais verdadeira: desenhando, pintando e escrevendo.
Sutilmente, meu terapeuta me conduziu de volta à expressão poética, coisa que havia deixado se perder num tempo passado de dores contidas e viver mal vivido. Participei de um grupo no CECOP chamado: Clínica da Poeticidade, sob a coordenação do professor Jomard Muniz de Brittto. Foi nessa primeira aula de poeticidade que comecei a me dar conta das minhas mudanças internas. E tudo passou a ser novo. Nas minhas sessões individuais com o dr. Luiz (...), através de suas expressões faciais, gestos, posturas etc., fui sendo capaz de aos poucos, repensar as palavras, corrigir, manter, compreender...
(...) Lembro de uma palavra dele que, desde que a ouvi pela primeira vez, calou fundo dentro de mim: fertilizar. Sim, eu me fertilizava a cada sessão e essa fertilização trazia à tona minhas descobertas. Comecei a atentar mais para meus desenhos e, através deles, a trabalhar não só a criatividade, mas principalmente comecei a rever a noção dos limites, tão importantes e necessários à vida, ao cotidiano, à coisa do meu. Nos meus desenhos eu conseguia colocar formas e cores, talvez sem lógica bem definida, das figuras, mas bem verdadeiras e intensas conforme meu sentimento do momento. Inúmeras vezes percebi que cada desenho concluído era como se eu resolvesse uma emoção ou fato vivido pela metade. Dessa maneira, fui me sentido cada vez mais companheira de mim mesma.
(...)
Nesses oito meses de terapia, ou melhor dizendo, de novo aprendizado, consegui dar voz ao meu próprio coração e reconheci dentro dele minha religiosidade, através da libertação de culpas e do reconhecimento delas. E assim os dias foram passando... Quando, porém, meus problemas começaram a se organizar. De repente a vida me colocou novamente em xeque...
No mês de setembro minha filha adoeceu repentinamente e foi internada num hospital. Sofri muito, me preocupei bastante, mas não entrei em desespero. (...) feitas todas as pesquisas cardiológicas e neurológicas, ela saiu do hospital e entrou num processo psicoterapêutico. Em fins de setembro, começo de outubro, chegou a minha vez. Comecei com um problema na coluna cervical. Aí fui eu quem foi socorrida num hospital de emergência. Depois de vários Raios X, foi diagnosticado um problema na coluna cervical e nos braços. Tive o pescoço imobilizado por cinco dias e tão logo retirei o colarinho, iniciei a fisioterapia. Mas, antes mesmo desse problema que tive, aconteceu a brusca interrupção do meu processo terapêutico. Dr. Luiz adoeceu e teve de ser internado. E eu? Bem, eu estava com poucos movimentos nos braços e pescoço; minha filha em tratamento psicoterápico, dinheiro pouco e, o que era pior: sem terapeuta; sem meu ponto de apoio. Era chegada a hora e a vez de eu testar e pôr em prática toda aquela transformação que se processava dentro de mim. Reuni então toda a coragem e toda a energia que armazenei durante minhas sessões terapêuticas e me pus a adiante. Momentaneamente desestabilizada, a pedido do meu fisioterapeuta, procurei uma médica psiquiatra a fim de solicitar-lhe uma medicação para ajudar no processo de relaxamento neuromuscular, tendões e ligamentos da cervical, ombros e braços. E assim foi feito. E foi a partir desse momento que compreendi que estava somatizando, jogando sobre o meu corpo toda a minha impotência diante da perspectiva de possíveis e irreversíveis perdas, apontadas por sombrios diagnósticos sobre a saúde da minha filha e também do doutor Luiz, justamente as duas pessoas mais presentes e próximas de mim. À primeira, eu servia de apoio; na segunda eu me apoiava. À luz dessa compreensão, voltou-me a coragem, novamente me senti fértil e descarreguei no meu caderno de desenho todas as minhas emoções traduzidas em imagens coloridas e bizarras, por vezes desmaiadas e tímidas, colocando assim, de forma ordenada, sentimentos e sensações de dúvidas, medos e incertezas, não deixando que essa impotência tomasse conta de mim outra vez.
(...)
Formada essa compreensão, meu corpo foi recuperando sua mobilidade, as coisas foram se ajustando, as tristezas e preocupações começaram a ser bem digeridas...
Alguns dias atrás, volto a encontrar o Dr. Luiz, não no CECOP, mas num outro consultório, e reinicio um novo processo de acompanhamento para rever tudo aquilo que foi assimilado na minha primeira vivência, marcada pelo pânico, pela depressão, pela tristeza...”
- Eleonora.
Recife, maio de 1994

“Minha experiência em terapia ocupacional foi algo doloroso e ao mesmo tempo muito lúdico. Nada era desprezado e tudo se transformava em material terapêutico.
O simples rabiscar no papel, que antes poderia ter o lixo como destino, tomava outro rumo. Passava a ser colecionado, só pelo fato de existir, sem qualquer julgamento. Com isso, a vontade de me expressar tomou corpo e começou a se tornar importante para mim. Os desenhos cresciam em detalhes e qualidade. Outros materiais, alguns que até ofereceram uma certa resistência, como por exemplo o barro, passaram também a ser instrumento. Tudo era usado na terapia, até mesmo as coisas mais corriqueiras. Mas o escrever passou a ser o meu grande companheiro, a minha grande descoberta. E o mais importante que eu percebia era como o ato de escrever passava a fluir espontaneamente dentro desse meu processo...
Minha terapia não se limitou às quatro paredes do consultório, sempre foi um processo muito rico e dinâmico. Era algo muito maior do que aquilo que me diziam. Estava além de qualquer coisa a buscar, o procurar, o intuir... No processo nada era pronto e acabado ou seguia sequências pré-estabelecidas. Tudo era ditado pelo momento e nele tudo ia se fazendo.
(...) Percebia a cada momento que a mola mestra da terapia era a descoberta das capacidades e do seu consequente desenvolvimento.
Dessa forma, fui enfrentando os meus altos e baixos com mais coragem e clareza...”
- Ana
Recife, abril de 1994

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