sexta-feira, 18 de maio de 2018

MEUS TROCINHOS



Aqui o livro, ali a estante, o mobiliário no canto parado, os objetos em sua aura, a viagem dos postais que doem ou fazem sorrir – o cenário estático, o fixo.
A fixidez conjurando o mutável, no entanto, fluindo noutras formas, no encalço do sopro que anima. Sensações se desdobrando de núcleos concentrados, os trocinhos carregados de significação, signos para travessias insuspeitadas.
A simbologia deslizante, o ver e o tocar que levariam a outros estados de experimento, de provocação, voos a novos sortilégios, lavas e brasas nos fusos da tecelã.
Do que se pode cercar a caverna de tesouros que sussurram descobertas, o sótão sombrio que traz a sua própria luz, a penumbra onde a chama da vela abre cortinas, desvenda as noites brancas, com mulheres e horizontes?
E a vontade de amar não paralisa o trabalho.
Como no minério da Itabira do poeta, o hábito de sofrer diverte para propiciar a liberdade – é o que se espera daqui.
Deste eco longínquo de camadas ancestrais, onde Sísifo não interrompe seu labor, persiste crendo, a esperança em exercício de que há uma construção. Nem que seja a do nosso rosto espelhado no regato, ou o fígado cruento, dilacerado e renascido.
Contamos com esta dezena de mães arcaicas, do sertão nordestino às margens do Danúbio Azul. As mãos de um simbólico artesanato nos conduzem ao espanto da origem: terra, útero, com ou sem criança, pequenina ou já crucificada, nos braços da que alimenta, afaga e devora.
Contempla-se a lâmpada, ou a vela dançarina, e friccionamos a seda da imaginação, a ponta dos dedos do afeto. Os gênios escapam, na invenção, à beira do abismo – o arquipélago emerge de um inconsciente de vozes e oceanos, ansiando por sua expressão livre, cheia de conteúdo e desejo, ninho e tela, interminável labirinto.
A alegria das reinações se instala, em tubos de tintas, cores de lápis, carvão e giz, cola, pincéis, recortes, massa e aquarelas enlaçando o arco-íris e suas vertigens.
São papéis pintados, na parede, enchendo gavetas e mapotecas, revelando trilhas de coragem e alumbramento que esta nau propõe. Navegar e viver são precisos, preciosos, indispensáveis.
Há dor e aflição, na certa. O velho marinheiro Artaud que o diga, náufrago sobrevivente, o druida iluminado que assombrou com a peste o caráter do drama, em carne viva.
Há indicações de histórias infindáveis, Eros e Psique gestando monstros,, meio gente, meio bicho. Os livros ocultando fórmulas a serem transmudadas no caldeirão.
Magia de todos os tons. A busca da realidade que enriqueça, liberte e confirme a condição alada e bípede da pessoa humana, barro seguindo caminhos de nuvens – do seu ponto de refúgio e fuga, ancoradouro e arremesso, dizendo adeus com as asas, em direção às estrelas.
Á sua verdade, na modelagem desta arte suprema que é a própria vida, de cada um de nós.
A paisagem irrepetida onde só o amor move o que juntamos, o que nos compõe.
Pastor e nauta, cada troço à vista nos repetirá: olha-me de novo, com menos altivez, e mais atento.
Do que vimos – e as fotos registram toda a expressividade e beleza dos elementos na moldura das mutações – e comentamos, se esboça o trabalho-arte deste misto de ferreiro, poeta, pássaro, decifrador e alquimista, em seu laboratório de instigantes surpresas.
A clínica do sutil, a terapia dos fios lançados até encarar o Minotauro e acariciá-lo. O cenário delicadamente receptivo, a sensibilidade de egos fragilizados aguçada por toda a galeria de vivências à nossa volta.
Como resultado, o processo de enriquecimento, dinâmica afirmação da individualidade, Um novo jeito de ver, de ser; a realização de uma vida melhor, mais plena, relacionada, a alma nunca pequena.
E como vale a pena singrar por zodíacos e calendários: primavera florida, mar de verão, nos acautelando dos ventos do outono, se aconchegando para avivar os fogos resistentes, no inverno.
Os carretéis do tempo, os grãos no moinho, a lã na roca, o tecido e o pão de todos nós, alimento e abrigo nas mandalas e sonhos de alegria.

Rubem Rocha Filho
Ator, Dramaturgo e Diretor Teatral

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