quinta-feira, 10 de maio de 2018

NANÁ VASCONCELOS: UM ARQUEÓLOGO, PARA INVESTIGAÇÕES SUTIS



O Brasil e o mundo têm seus ouvidos ligados nele, e ele emite batuques dissonantes pelos mil alto-falantes.
Sua presença mantém teso o arco da arte e é da maior importância para todos nós.

            Além de versos
            No tambor de todos
            Os seus ritmos e
            Na rima de seu estilo.

Nessa justa homenagem que o 26º Festival de Inverno de Garanhuns - e todos nós - prestamos ao nosso Orixá Naná Vasconcelos, era assim que eu o chamava, recordo-me do nosso último encontro em uma tarde cinzenta de domingo, novembro de 2015.
Naquela ocasião, entre tantas idas e vindas, os temas Morte, Vida e Ressurreição permearam a nossa longa conversa, regida por pausas e silêncios.
Talvez inspirado por uma região de silêncio, Naná confessou-me: “Só a ressurreição da carne me sustenta. É ela que constitui a última utopia humana. Só consigo justificar-me, enquanto pessoa, se passo a apoiar-me no esplendor de uma plenitude maior do que a morte”.
Naquele breve instante, tive a clareza de que o nosso artista estava querendo assegurar-me de que morte é passagem, é nascimento, é ruptura catastrófica da forma, é imersão no tempo e na fuga vertiginosa que o constitui.
Sim, tive o privilégio de ser amigo de Naná Vasconcelos.
Meus encontros com Naná eram enriquecidos pelo timbre incomum da sua voz, por sua fala maneira e cadenciada, pelo olhar e expressão do rosto, a movimentação corporal, sobretudo das mãos – tão única, tão sua.
As frases que guardo desses momentos impõem sua presença como poeta e, para mim, um religioso poeta. De repente, algo só fazia sentido se nos abríssemos para a transcendência. Retomando o nosso último encontro, ele concluiu, assim como num jato: “O Ser Humano exige doutrina, que garanta a ressurreição dos corpos”, e eu repeti “Dos últimos artigos do Credo. Mas o meu favorito desses é a Comunhão dos Santos”.
“A Comunhão dos Santos”, aí foi ele que repetiu, com entusiasmo que o levava a levantar-se, inclinar muito o tronco para a frente, balanceando-se. Veemência também na voz: “Muito importante a Comunhão dos Santos. Dogma lindo”.
Como os seus olhos brilhavam quando o assunto tocava, aproximava-se, roçava em religião. Não sei bem o que, para ele, não roçava em religião.
Guardo comigo, com muito cuidado, o meu primeiro encontro com Naná. Era o ano de 1998. Estávamos no estúdio Via Som, em Recife, onde ele iria gravar uma participação especial em meu primeiro CD Olhar Brasileiro. Naná aproveitou uma pausa na gravação e apontando para uma linda samambaia, que pendia do teto, falou: “Mais importante que tudo isso é essa samambaia. Eu tomo a benção a essa samambaia”.
Naquele instante, o que era som converteu-se em um silêncio abrasador entre todos nós.
Me é dado sentir a felicidade do encontro entre convicções minhas e suas formulações tão perfeitas e tão simples. Soavam como hinos de amor às coisas. Sobretudo, porque a esperança era um traço que dominava os ditos e fazeres de Naná Vasconcelos.
O coração de Naná bateu demais por grandes causas.
A morte, mesmo que para ele pudesse existir, não romperia uma existência como a sua. À distância, senti a dor que havia em mim. Mas o corpo dentro da urna, não era o Naná. Era apenas o barco que o luminoso companheiro do espírito deixara para continuar a viagem – o perito navegante – por oceanos que alguns viventes não conhecem, mas obscuramente sabem que existem.
Um dos aspectos mais importantes da grande criatura que era Naná Vasconcelos era a sua capacidade de se indignar. Talvez fosse essa a sua principal manifestação de bondade. Era quem podia machucar, mas, muito mais, era quem podia curar. Conferia uma dimensão de grandeza à impaciência.
Muitas vezes penso em Naná Vasconcelos como um João de Guimarães Rosa, com a doçura contemplativa dos pernambucanos. Naná era um devoto do aspecto trinitário de Deus, mas me parecia que amava especialmente o Filho, oscilando entre o apelo divino e o das carências humanas pelas quais veio ao mundo já destinado à morte.
Nosso artista, desde sempre, confessara sua crença em Deus. E como era belo, generoso, libertário e popular o seu Deus.
Um dos seus traços mais notáveis era a sua imprevisibilidade. O homem e o artista nunca estavam onde a convenção mandava estar. Nos encontros marcados, sua presença trazia sempre consigo a surpresa. Exemplo típico dessa imagem de marca foi a atitude para com a religião. Aparecendo publicamente como religioso, encantou, apaixonou, emocionou, intrigou e fez pensar todos aqueles que, enquanto artistas, acham que no humano nada é evidente por si mesmo.
A religião e a música nada mais podem dizer sobre o sagrado, exceto que, diante dele, a palavra cala.
Pode a música coexistir pacificamente com a religião? É possível afirmar a verdade de uma, sem negar a verdade da outra?
Essa questão, Naná nos deixa como legado de seu espírito inquieto e criador. Num universo desencantado, dessacralizado e dessignificado, como o nosso, ela pode parecer nostálgica, como uma foto amarelada. Mas, para os que não se deixam enganar pelo fogo fátuo da civilização ou barbárie, ela continua atual e enigmática.
Aqui estava contido, talvez, o seu paradigma mais essencial, construído por um plantador de sonhos: em tempos de barbárie, recorramos, pois, aos artistas e suas cosmogonias, mesmo sabendo dos riscos da velha querela entre o saber dos artistas e a prática filosófica do logos.
Plantador de sonhos: talvez seja essa a qualificação mais apropriada à atuação de Naná Vasconcelos, como homem e como artista, que soube ultrapassar os limites do senso comum e das distinções cartesianas para semear campos onde a humanidade possa realizar, florescer e fertilizar.
Naná Vasconcelos, como em tantas coisas mais, soube estar atento à beleza e à verdade. Não seria de estranhar: nada que era humano lhe era indiferente. Aproximou-se ferozmente do essencial. Era um romântico impetuoso, atiçado pela paixão sem rédeas, devotado lutador junto a causas indefensáveis.
Pagou um preço que foi preciso pagar, para construir uma linguagem original e conquistadora, que não se limitasse a enunciar o que já sabíamos, mas que nos introduzisse em experiências bifurcadas, em perspectivas que jamais seriam as nossas e nos desfizesse, enfim, de nossas manchas preconceituosas.
Nos fez pensar o que Merleau-Ponty nos aponta: nenhuma obra de arte ou pensamento pode ser total, e que toda verdadeira obra é feita de significações abertas.
Naná foi mais longe ao admitir que em música não há superação absoluta, assim, a importância do que faz o artista mede-se pela extensão do poder que suas obras conferem sobre as coisas e sobre nós mesmos.
Naná era personalidade vibrante e viveu intensamente os seus 70 anos. Exerceu o seu ofício com amor, paixão e eficiência. Tudo que atraía o seu interesse era feito com exaltação, entrega total e apaixonada. Lúcido e sensível, tinha singular capacidade de percepção do humano, tanto no plano individual como no plano social.
Depois de toda uma inquieta busca, da incansável fé em suas utopias, Naná Vasconcelos está na luz. Ele não nos deixou. Caminha conosco na Comunhão dos Santos, protestando, libertando, poetando, somando-se àquela humanidade que ascende penosamente ao Reino da Liberdade, primícias do Reino de Deus.
Como poucos, Naná Vasconcelos era um artista de verdade. Um desmanchador de cercas e um administrador de esperanças.
Consta que, no hospital, antes de morrer, Naná abriu os olhos e disse: “... agora nós dois...”.
Quando transcendia a vida, quando dava o salto para continuar seu voo, Naná abriu bem os olhos e falou para Patrícia, sua companheira: “Patrícia, agora, entre nós, tu, eu e ela. Solidão, mas sem desassossego”.

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