O Brasil e o mundo têm seus ouvidos ligados nele, e ele emite
batuques dissonantes pelos mil alto-falantes.
Sua presença mantém teso o arco da arte e é da maior importância
para todos nós.
Além de
versos
No tambor de
todos
Os seus
ritmos e
Na rima de
seu estilo.
Nessa justa homenagem que o 26º Festival de Inverno de
Garanhuns - e todos nós - prestamos ao nosso Orixá Naná Vasconcelos, era assim
que eu o chamava, recordo-me do nosso último encontro em uma tarde cinzenta de
domingo, novembro de 2015.
Naquela ocasião, entre tantas idas e vindas, os temas Morte,
Vida e Ressurreição permearam a nossa longa conversa, regida por pausas e
silêncios.
Talvez inspirado por uma região de silêncio, Naná
confessou-me: “Só a ressurreição da carne me sustenta. É ela que constitui a
última utopia humana. Só consigo justificar-me, enquanto pessoa, se passo a
apoiar-me no esplendor de uma plenitude maior do que a morte”.
Naquele breve instante, tive a clareza de que o nosso artista
estava querendo assegurar-me de que morte é passagem, é nascimento, é ruptura
catastrófica da forma, é imersão no tempo e na fuga vertiginosa que o
constitui.
Sim, tive o privilégio de ser amigo de Naná Vasconcelos.
Meus encontros com Naná eram enriquecidos pelo timbre incomum
da sua voz, por sua fala maneira e cadenciada, pelo olhar e expressão do rosto,
a movimentação corporal, sobretudo das mãos – tão única, tão sua.
As frases que guardo desses momentos impõem sua presença como
poeta e, para mim, um religioso poeta. De repente, algo só fazia sentido se nos
abríssemos para a transcendência. Retomando o nosso último encontro, ele
concluiu, assim como num jato: “O Ser Humano exige doutrina, que garanta a ressurreição
dos corpos”, e eu repeti “Dos últimos artigos do Credo. Mas o meu favorito
desses é a Comunhão dos Santos”.
“A Comunhão dos Santos”, aí foi ele que repetiu, com
entusiasmo que o levava a levantar-se, inclinar muito o tronco para a frente,
balanceando-se. Veemência também na voz: “Muito importante a Comunhão dos
Santos. Dogma lindo”.
Como os seus olhos brilhavam quando o assunto tocava,
aproximava-se, roçava em religião. Não sei bem o que, para ele, não roçava em
religião.
Guardo comigo, com muito cuidado, o meu primeiro encontro com
Naná. Era o ano de 1998. Estávamos no estúdio Via Som, em Recife, onde ele iria
gravar uma participação especial em meu primeiro CD Olhar Brasileiro. Naná aproveitou uma pausa na gravação e apontando
para uma linda samambaia, que pendia do teto, falou: “Mais importante que tudo
isso é essa samambaia. Eu tomo a benção a essa samambaia”.
Naquele instante, o que era som converteu-se em um silêncio
abrasador entre todos nós.
Me é dado sentir a felicidade do encontro entre convicções
minhas e suas formulações tão perfeitas e tão simples. Soavam como hinos de
amor às coisas. Sobretudo, porque a esperança era um traço que dominava os
ditos e fazeres de Naná Vasconcelos.
O coração de Naná bateu demais por grandes causas.
A morte, mesmo que para ele pudesse existir, não romperia uma
existência como a sua. À distância, senti a dor que havia em mim. Mas o corpo
dentro da urna, não era o Naná. Era apenas o barco que o luminoso companheiro
do espírito deixara para continuar a viagem – o perito navegante – por oceanos
que alguns viventes não conhecem, mas obscuramente sabem que existem.
Um dos aspectos mais importantes da grande criatura que era
Naná Vasconcelos era a sua capacidade de se indignar. Talvez fosse essa a sua
principal manifestação de bondade. Era quem podia machucar, mas, muito mais,
era quem podia curar. Conferia uma dimensão de grandeza à impaciência.
Muitas vezes penso em Naná Vasconcelos como um João de
Guimarães Rosa, com a doçura contemplativa dos pernambucanos. Naná era um
devoto do aspecto trinitário de Deus, mas me parecia que amava especialmente o
Filho, oscilando entre o apelo divino e o das carências humanas pelas quais
veio ao mundo já destinado à morte.
Nosso artista, desde sempre, confessara sua crença em Deus. E
como era belo, generoso, libertário e popular o seu Deus.
Um dos seus traços mais notáveis era a sua imprevisibilidade.
O homem e o artista nunca estavam onde a convenção mandava estar. Nos encontros
marcados, sua presença trazia sempre consigo a surpresa. Exemplo típico dessa
imagem de marca foi a atitude para com a religião. Aparecendo publicamente como
religioso, encantou, apaixonou, emocionou, intrigou e fez pensar todos aqueles
que, enquanto artistas, acham que no humano nada é evidente por si mesmo.
A religião e a música nada mais podem dizer sobre o sagrado,
exceto que, diante dele, a palavra cala.
Pode a música coexistir pacificamente com a religião? É
possível afirmar a verdade de uma, sem negar a verdade da outra?
Essa questão, Naná nos deixa como legado de seu espírito
inquieto e criador. Num universo desencantado, dessacralizado e dessignificado,
como o nosso, ela pode parecer nostálgica, como uma foto amarelada. Mas, para
os que não se deixam enganar pelo fogo fátuo da civilização ou barbárie, ela
continua atual e enigmática.
Aqui estava contido, talvez, o seu paradigma mais essencial,
construído por um plantador de sonhos: em tempos de barbárie, recorramos, pois,
aos artistas e suas cosmogonias, mesmo sabendo dos riscos da velha querela entre o saber dos artistas
e a prática filosófica do logos.
Plantador de sonhos: talvez seja essa a qualificação mais
apropriada à atuação de Naná Vasconcelos, como homem e como artista, que soube
ultrapassar os limites do senso comum e das distinções cartesianas para semear
campos onde a humanidade possa realizar, florescer e fertilizar.
Naná Vasconcelos, como em tantas coisas mais, soube estar
atento à beleza e à verdade. Não seria de estranhar: nada que era humano lhe
era indiferente. Aproximou-se ferozmente do essencial. Era um romântico
impetuoso, atiçado pela paixão sem rédeas, devotado lutador junto a causas
indefensáveis.
Pagou um preço que foi preciso pagar, para construir uma
linguagem original e conquistadora, que não se limitasse a enunciar o que já
sabíamos, mas que nos introduzisse em experiências bifurcadas, em perspectivas
que jamais seriam as nossas e nos desfizesse, enfim, de nossas manchas preconceituosas.
Nos fez pensar o que Merleau-Ponty nos aponta: nenhuma obra de
arte ou pensamento pode ser total, e que toda verdadeira obra é feita de
significações abertas.
Naná foi mais longe ao admitir que em música não há superação
absoluta, assim, a importância do que faz o artista mede-se pela extensão do
poder que suas obras conferem sobre as coisas e sobre nós mesmos.
Naná era personalidade vibrante e viveu intensamente os seus
70 anos. Exerceu o seu ofício com amor, paixão e eficiência. Tudo que atraía o
seu interesse era feito com exaltação, entrega total e apaixonada. Lúcido e
sensível, tinha singular capacidade de percepção do humano, tanto no plano
individual como no plano social.
Depois de toda uma inquieta busca, da incansável fé em suas
utopias, Naná Vasconcelos está na luz. Ele não nos deixou. Caminha conosco na Comunhão
dos Santos, protestando, libertando, poetando, somando-se àquela humanidade que
ascende penosamente ao Reino da Liberdade, primícias do Reino de Deus.
Como poucos, Naná Vasconcelos era um artista de verdade. Um
desmanchador de cercas e um administrador de esperanças.
Consta que, no hospital, antes de morrer, Naná abriu os olhos
e disse: “... agora nós dois...”.
Quando transcendia a vida, quando dava o salto para continuar
seu voo, Naná abriu bem os olhos e falou para Patrícia, sua companheira: “Patrícia,
agora, entre nós, tu, eu e ela. Solidão, mas sem desassossego”.