HOJE ACORDEI ME LEMBRANDO
DESSA IMENSA MULHER QUE DESEMPENHOU FUNÇÕES EXTRAORDINÁRIAS NA MINHA VIDA.
TIVE A SORTE DE CONHECÊ-LA QUANDO EU ERA MUITO JOVEM. DAÍ EM DIANTE, PASSEI A
CONVIVER COM ELA DURANTE TODA UMA VIDA. E FOI TUDO MUITO DEFINITIVO E AINDA É.
ESSE TEXTO É PARA ELA.
Nise da Silveira acompanhou amorosamente o drama de alguns homens, cujo corpo e
cuja história buscava resgatar.Importava abrir, ao menos, uma janela que desse
para o mundo, para a expressão do desejo. Ocorre-me a imagem de Descartes,
enquanto filósofo da distância, que via a rua da janela (2ª meditação), e a
atitude inversa de Merleau - Ponty, buscando a plena inserção no mundo (notre
âme n'a pas de fenêtres). Nise da Silveira praticou a mesma saída. Buscou a
Diferença. O corpo. Isso me parece fundamental em seu trabalho. Teoricamente
impecável, apaixonada pelos livros e pela vida, seu discurso fazia-se tanto
mais crítico, quanto mais conhecia a face dos seus pacientes. Nise da Silveira
separa a grande paixão que anima toda sua obra, o alto emblema de suas viagens
e escavações: a unidade. Se o inconsciente de Freud (e sobretudo o de Jung)
representou para ela um corte profundo e uma guinada real no estudo da loucura;
se a substância de Spinoza emprestou-lhe um estofo de ilimitado conhecimento (
DEUS sive natura); a obra de Antonin Artaud abriu-lhe definitivamente um
horizonte sem par. No universo das imagens, Nise da Silveira segue a aventura
da unidade; infinita para Spinoza, árdua para Jung, dramática para Artaud. Assim, quando se destramam as raízes do ser, na selva escura da psique, quando a
consciência submerge em noite densa, quando tudo parece perdido, perdura o fio
sutilíssimo da unidade. Mas como isso ocorre? A resposta de Artaud é certeira:
"Ter o sentido da unidade é ter o sentido da anarquia e do esforço para
reduzir as coisas, reconduzindo-as à unidade". Esse é o percurso da Nise
da Silveira. O labirinto da loucura, com suas paredes espessas e opacas, era o
principal desafio de Nise da Silveira, pronta para surpreender no olhar de
Fernando, nos desenhos de Adelina, no rosto de Emygdio e, sobretudo, no
silêncio de Carlos Pertuis, a saída, o caminho de volta, o brilho secreto e
fugaz da unidade.