quinta-feira, 10 de maio de 2018

OS SOLITÁRIOS INTEMPESTIVOS

“A imaginação, o sentimento, o novo, o imprevisto que surge do espírito desenvolvido é proibido para eles, cabeças fechadas, cérebros obtusos, eternamente negados a luz... Há sempre algo de ausente que me atormenta”. - Camille Claudel

Do artista tudo sai de regiões muito profundas. A obra precipita o outro como uma queda, é impossível resistir a gravidade. E no caminho, o que era queda torna-se viagem por surpreendentes paisagens, a voz provocada, a interlocução, a voz recolhida e, finalmente, o documento.
Os caminhos da loucura são permeados pela dor, pela solidão e pelo abandono. Mas estes são também o endereço da criação.
As imagens poéticas e musicais que povoam meu fazer artístico envolvem-se na tristeza dos crepúsculos dos dias de minha infância, menino criado na solidão de uma pequena cidade do interior de Pernambuco. Para construir a obra, que é o mundo concreto do artista, procedo como um artesão obcecado na busca incansável da forma. Nele, nenhum detalhe é supérfluo. Faço e refaço até alcançar a síntese das imagens de mim emanadas.
A obra só se completa e vive quando expressa. No meu fazer artístico, o ontem se faz presente no agora. Lanço-me na arte e na vida por inteiro, como um mergulhador na água, no entanto, de posse de poderosos escafandros. O fazer artístico é também história. Ela expressa a nossa humanidade, tornando-se atemporal, embora guarde a fisionomia de cada época.
Shakespeare já sabia que os delírios “não eram vazios de sentido”. Polonius, referindo-se aos desvairados discursos de Hamlet, diz: Desvario sim, mas tem seu método. 
Mas, naturalmente, os homens de ciência nunca escutam os poetas. 
Se não sintonizasse com o que ecoa no universo da arte, estaria artisticamente morto. Cada artista tem o seu tempo de criação. É difícil saber quando começa a gravidez e quando se dá o parto. E esse percurso é de extrema solidão.
Antes de iniciar uma viagem artística consulto minha bússola interior e traço o rumo. Mas quando estou no mar grosso, sempre sopra um vento forte que me desvia da rota e me leva a descobrir um novo trajeto.
Lembro-me, neste instante, de uma lenda chinesa (citada por Ítalo Calvino) que conta que Tchuang-tsen sabia desenhar muito bem. O rei pediu-lhe que desenhasse um siri. Tchuang exigiu um prazo de cinco anos, um casarão e dois serviçais. Cinco anos depois, o desenho ainda não tinha começado. Tchuang pediu mais cinco anos. No final do décimo ano, Tchuang pegou o seu pincel e, num jato, desenhou o siri mais perfeito que se pode ver. 
Essa lenda ensina a força da maturação, da rapidez e da espontaneidade – Tchuang desenhou um siri num abrir e fechar de olhos. Isso exigiu de Tchuang-tsen anos e anos de aprendizado e observação da natureza que, como sabemos, é a fonte maior do conhecimento. Hoje somos regidos pela pressa, pelo imediato.
Criando concilio o disco cromático de meus sentimentos, a experiência de pertencimento. Claro, que sofro impasses no meu fazer artístico. A criação é um desdobramento contínuo, uníssono com a minha vida. Sou artista vinte e quatro horas por dia. 
Tenho hoje a clareza que todo criador é um iconoclasta que trabalha com fragmentos da imagem que destrói. O labirinto da loucura, com suas paredes espessas e opacas, é um grande desafio. É impossível desconhecer que a loucura seduz por seu potencial criativo, assim como a arte tem sua cota de irracionalidade e inconsciência. A verdade é que arte e loucura, com frequência, andam juntas de mãos dadas.
Só uma “arte virgem”, a exemplo a de Bispo do Rosário, nascida à margem do circuito cultural e artístico, pode ser verdadeiramente original e inovadora. Por isso, ela comove e pede reflexão.
No meu andarilhar de artista, fixo a imagem que se me apresenta no agora, como retorno às coisas que adormeceram na memória. Estas devem estar escondidas no pátio da infância. Gostaria de outra vez ser criança para resgatá-las com as mãos. Talvez é o que faço criando. As coisas estão enterradas no fundo do rio da vida. Na maturidade, no ocaso, elas se desprendem e sobem à tona, como bolhas de ar. Como se vê, a criação se faz com o agora e com o tempo que recua.
A memória é a gaveta dos guardados. A atmosfera do que crio vem da solidão. No entanto, tenho a clareza que com a maturidade perde-se a nitidez da visão e se aguça a nitidez dos afetos.
Seria impossível saber se a realidade que percebo constitui verdadeiramente a realidade que existe fora de mim, se ela também não estivesse dentro de mim. Os instrumentos criados pelo homem apenas aguçam os sentidos. Só a imaginação pode ir mais longe no universo do conhecimento. Os poetas e os artistas intuem a verdade. Não crio o que vejo, mas o que sinto. Criando-se, imobiliza-se a imagem, fixa-se, objetiva-se a percepção. Imobiliza-se uma sensação fugidia.
Fala-se aqui, sim da inquietação da linguagem enfrentada pelo artista diante de seu oficio – a arte, a simples arte. Nada mais do que a arte. Aquela que agrega camadas de tempo, aproxima espaços, e detona ortodoxias calcadas – como sempre nas indisposições, na negação elementar e dogmática.
Aos trancos e barrancos, o artista se inscreve como sujeito de contestação, de veículo capaz, de vocalizar a anseio por liberdade.
A arte, nesse contexto, deixa de ser somente palco para experimentações, de discussões de embates estéticos e, obrigada pelo sufoco político, adquire feição urgente de ferramenta de contestação e comunicação.
Na verdade, eu aprendi a esperar, e no fundo – mas somente a esperar-me a mim próprio. E para além de tudo, aprendi a manter-me de pé e a caminhar, a comer, a saltar, a subir e a dançar.
E esta é a minha doutrina: quem um dia quiser aprender a voar deve começar, antes de mais nada, por aprender a estar de pé e a caminhar, a subir e a dançar. A arte de voar não se agarra no ar.
O que significa viver para mim? Morrer de vida, viver de morte.
Estamos condenados ao paradoxo de manter em nós, simultaneamente a consciência da vacuidade do mundo e da plenitude que nos propicia a vida quando pode ou quando quer. Isto implica nunca cessar de fazer dialogar em nós mesmos sabedoria e loucura, ousadia e prudência, economia e gasto, temperança e consumação, desprendimento e apego.
Arte, para mim, é aquilo que chamo de arte. A verdadeira arte está sempre ali, onde não a esperamos. Ali, onde ninguém pensa nela, nem pronuncia seu nome. A arte, ao meu ver, detesta ser reconhecida e saudada por seu nome.
Camille Claudel é uma artista genial e extraordinária, devendo ser vista como tal e apenas circunstancialmente louca. Tudo o que ela fez expressa um sentimento profundo de vida, revela uma necessidade inadiável de diálogo com as forças profundas, mediúnicas e do inconsciente e uma clara visão de mundo.
Que possamos por anos afora aquecer nossos sonhos, dourar nossas ideias, azular nossa ternura com a chama do nosso desejo, do nosso afeto e da nossa amorosidade.

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