Abordarei
aqui, de acordo com uma forma particular de pensar a Terapia
Ocupacional, algumas observações que tenho feito no decurso da
minha vivência cotidiana com psicóticos.
Para
começar, remeto-me ao Centro de Convivência da Pessoa (CECOP),
instituição da qual faço parte há vários anos e onde trabalho
junto com outros colegas. No CECOP, tudo ou quase tudo está
preparado para que os pacientes vivenciem uma atmosfera de
atividades, responsabilidades e co-gestão de interesses e gestos,
com vistas a uma transação ativa dos pacientes com a realidade.
Isto porque é próprio dos quadros psicóticos o estancamento deste
movimento, desta aprendizagem.
Para
isso, temos como eixo central de intervenção algumas estratégias
que, a rigor, desenham o espaço institucional. Vejamos:
1.
Construção de um campo de ação no qual o agir do paciente possa
ocorrer voluntária e espontaneamente. Esse campo de ação e
interação, por suscitar significações, acaba constituindo-se em
campo produtor da subjetividade individual e coletiva, isto porque,
neste contexto significativo, o paciente gradualmente vai se
percebendo em movimento. Em ação – em situação.
2.
Nesse campo de ação significativa, a produção e pronunciamento do
paciente inserem-se na dimensão do vínculo social, remetendo-o,
portanto, à construção concreta de sua existência.
3. O
campo de ação, estando associado a um cotidiano criativo,
pedagógico e estético, vai possibilitando o paciente substituir uma
forma repetitiva e vazia de vida por atividades que o levem a
readquirir um sentido de existência. Através do exercício de um
complexo múltiplo de ações, o paciente vai lançando mão do gesto
criativo e portanto, ativando processos de mudança.
4. O
aguçamento da sensibilidade e dos afetos daí resultante proporciona
ao paciente uma certa intimidade com o “caos” e assim ele sai
ganhando territorialidade. Territorialidade no sentido de estabelecer
laços cada vez mais conscientes com a vida.
Então,
o que significa para nós Terapia Ocupacional? Essencialmente
passagem do tempo. Colagem, um estado alterado. Meio ambiente.
Divertimento. Organização de ideias a partir de artifícios
concretos. Reafirmação do presente. Tempo estruturado. Meditação.
Estado de pânico. Testemunho. Memória. Fúria. Texto em movimento.
Figura no espaço. Dialética entre o agir e pulsar. Movimento da
luz. Retrato. Visão. Confissão. Defecação. Máscara. Espaço
habitado.
Enfim,
produção de diferentes cenas.
Assim
entendemos que a Terapia Ocupacional pode promover acontecimentos
onde nada se produzia, onde as coisas se estagnavam na pura
redundância, suscitando a emergência de singularidades com suas
aberturas pragmáticas, suas virtualidades, seus universos de
referência.. Por exemplo, certos pacientes de origem humilde,
simples, são levados a produzir artes plásticas, teatro, vídeo,
música etc, quando antes esses universos lhes escapavam
completamente.
Por
sua vez, burocratas ou mesmo intelectuais se sentem atraídos por um
trabalho manual na cozinha, no jardim em cerâmica etc. O que importa
aqui não é unicamente o confronto com um material expressivo, é a
construção, a partir daí, de complexos de subjetivação: pessoa –
grupo – material expressivo – rocas múltiplas que oferecem à
pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade
existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma,
se ressingularizar. Dessa maneira se processam transplantes que
procedem de um campo criativo, portanto de vida, criando-se fecundas
modalidades de subjetivação, semelhantes ao modo como um artesão
produz objetos a partir do “material” de que dispõe. Esse
processo de subjetivação implica a injeção de componentes
heterogêneos no surgimento de pontos de bifurcação, fazendo com
que a um só tempo um pequeno acontecimento abra novos campos de
possibilidades, novos roteiros. Convém lembrar que os roteiros dos
psicóticos quase não lhe propiciam um eixo de orientação. É
preciso conduzi-los a construir novos roteiros. Do pânico, do
encurralamento, brotam novos sons, desenhos, poesias inesperadas. Um
novo tipo de afeto, uma nova qualidade de vínculo, uma relação
inédita podem ter lugar a partir de uma experiência mutante.
Em
tal contexto, observa-se que elementos os mais diversos podem
contribuir para a evolução do paciente, tomando por base processos
de subjetivação: as relações processadas com o espaço
arquitetônico, a co-gestão entre os pacientes e os responsáveis
pelos diferentes vetores terapêuticos, a apreensão de todas as
oportunidades de abertura para o exterior, a exploração processual
dos acontecimentos, enfim, tudo aquilo que se pode contribuir para a
criação de uma relação autêntica e singular com o outro. Isto
porque, é matriz do projeto cecopiano a presença permanente da
palavra, de trocas, de problematizações, de ações, de agires o
campo da realidade, no campo do cotidiano. Primamos pela manutenção
de um campo de ação que possa promover a emergência das mais
variadas linguagens e ecos, tendo em vista a vivência de uma
experiência retificadora. Senão vejamos: não raro, famílias nos
procuram alegando que seus filhos são muito parados, não se
interessam por nada e portanto precisam de um lugar onde possam se
ocupar. No primeiro contato do paciente com a instituição,
observamos que certos mecanismos são acionados, dando lugar a
determinados gestos: a iniciativa de ligar uma TV, de pedir um copo
d’água, de voluntariamente se dirigir à oficina de criação;
gestos em si elementares, embora não cogitados pela família como
possíveis de o paciente realizá-los.
Supomos
com isso, que o CECOP acaba por converter-se no que denominamos de
“Usina de Criação”, cujo ponto de lance são os processos de
subjetivação, resultante da criação de novos roteiros de vida em
transversalidade inesperada com antigos roteiros. Esses processos vêm
desenhar novo devires, criando e abrindo frestas na individualidade
serializada à qual o psicótico encontra-se ancorado.
No
CECOP, utilizamos uma grande variedade de atividades, como pintura,
música, vídeo, literatura, poesia, teatro, jornais escritos e
falados, expressão corporal, passeios, jardinagem etc. Tomamos todas
estas atividades essencialmente como linguagens de uma profunda
riqueza, uma vez que injetam novos códigos nas antigas fortalezas da
territorialidade do já feito, do já dito. Nessa perspectiva, o
desejo assume o lugar da invenção, efetivando processos de mudança,
objetivando um novo devir, ou seja, o chamamento de determinada coisa
que ainda não está aí, mas que existe como possibilidade. O devir
do sentido da construção cotidiana da realidade.
Tenho
observado, em muitos casos, que ao cuidar de psicóticos torna-se
necessário e às vezes prudente abrir mão do corpo estabelecido,
isto é, o psicológico, o universitário, o nosográfico etc, para
depois recompor esse corpo a partir das redes de relações. Para
isto, é preciso estarmos abertos aos acontecimentos, ao imprevisto,
ao inédito, àquelas “pequenas manchas que tendem a surgir, de
forma semelhante às manchas que surgem na tela quando o artista
pinta” (Felix Guattari). Os psicóticos são muito imprevisíveis,
razão porque mantém uma relação muito rica com a estética, isto
é, estão sempre em busca de fendas para a organização, na medida
em que as coordenadas do seu universo são muito frágeis. É comum
observarmos gestos de pacientes que nos causam certa impressão, isto
porque os remetem à constante busca da forma e expressão de
conteúdos. Grafites em paredes e móveis, rabiscos e desenhos
espontâneos em papéis, performances etc, são gestos que observamos
no cotidiano de pacientes psicóticos e que, via de regra, expressam
sinalizações de busca de conexões.
Partindo
dessa premissa, torna-se necessário, torna-se necessário dar-lhes a
oportunidade de contato com materiais concretos que oportunizem por
sua vez uma produção também concreta, quer dizer, uma criação.
Falar em criação é também dizer da responsabilidade da instância
criadora em relação à coisa criada.
No
CECOP existe uma espécie de tratamento barroco da instituição, em
que a procura de novos temas, novas variações, novas leituras estão
sempre postas em tela, com o objetivo de conferir aos psicóticos
marcas de subjetivação e autenticidade. A partir dos mínimos
encontros, das pequenas dobras advindas dos mais variados contextos,
brota uma rede de relações de natureza interfertilizante que, a
rigor, respondem por processos de produção de uma nova
subjetividade. O que importa, portanto, é poder trabalhar programas
de vida em função de personalidades com um certo grau de
complexidade. É como se para cada pessoa que nos procura fosse
necessário “reescrever”, refundar o CECOP. Para tanto se deve
estar disposto a assumir discursos muito heterogêneos, sem que isso
venha a significar duplicidade do discurso. Trata-se principalmente
de adotar uma escuta singular em face de um acontecimento também
singular. Afirma Guattari: “(…) o sujeito não é tão evidente,
ele não está dado, ele não é naturalmente engendrado: é preciso
trabalhá-lo. Sua modelização – na realidade, sua produção –
é artificial e o será cada vez mais. A subjetividade coletiva, ela
também, tem necessidade de uma prática em constante evolução(…).”
Será
isto realmente uma proposta de abertura de alguma claridade? Ou será
a claridade uma forma de cegueira, uma forma de ilusão? Que
claridade realmente o paciente busca? Inferimos que é uma claridade
semelhante ao brincar de cabra-cega, quando uma pessoa de olhos
vendados, tateando, tenta atingir, pegar e identificar quem e o que
está à sua volta. Na maioria das vezes o que é encontrado é o
“ponto”, quer dizer, uma área da retina que ainda se encontra
sensível à luz. É o turbilhão se convertendo em síntese. É a
possibilidade do gesto. É a vertigem caótica que se encarnou na
produção de um fazer criativo. E, neste aspecto, para o paciente o
mundo e o outro não lhe falam mais a mesma voz, com o mesmo tom. O
paciente entra em diálogo não tanto com uma ordem delirante, mas
através de uma ordem de natureza socializante. Cada psicótico é
ímpar na sua maneira de viver a psicose, portanto, é necessário
não sermos redutivos tentado impor-lhe um sistema de igualdade.
Venho
trabalhando com psicóticos há algum tempo e, apesar de tudo,
honestamente, às vezes me vejo procurando saber o que fazer. Sou
alguém consumido pela curiosidade do que está por vir.
Como
produzir uma subjetividade processual onde tudo está bloqueado,
paralisado, estratificado, num jogo de cartas marcadas? Para mim está
claro que quando os psicóticos presenciam o perfil de um trabalho,
de algum movimento que lhes inspire confiança e vida, não raro
deixam de se engajar. Por outro lado, torna-se problemático alguém
responder e atender a padrões anêmicos e estéreis de comunicação.
Se o Terapeuta Ocupacional se utiliza das mais variadas linguagens
para viabilizar ações terapêuticas, a Terapia Ocupacional é por
excelência uma abordagem de natureza comunicacional e dialogante.
Assim, o Terapeuta Ocupacional é alguém que pode ser identificado
com a figura d trovador, do poeta, do viajante, do malandro, do ator,
do cantor, do músico etc. Imagem-modelo, molde corporificado junto
ao qual os psicóticos podem vivenciar experiências significativas
numa arena também significativa.
É
um pouco em função disso que conduzimos nossas intervenções. O
que fazer em tal contexto, com tal pessoa ou com tal grupo, para que
se tenha uma relação tão criadora quanto possível com a situação
em que está vivendo – como um músico com sua música ou um pintor
com sua pintura?
Sobre
essa questão refere Guattari, no que diz respeito à cura: “Uma
cura seria como construir uma obra de arte; com a diferença de que
seria preciso reinventar, a cada vez, a forma de arte que se vai usar
– quer dizer que o indivíduo adquira um ‘plus’ de
virtuosidade, como um pianista para certas dificuldades”; ou
melhor, mais disponibilidade, mais humor, mais abertura para pular de
uma gama de referência para outra… mais charme, mais simpatia.
Os
recursos terapêuticos ocupacionais, por serem diretos, ativos,
cinéticos, tornam-se poderosos. Da descoberta do prazer de ter mãos
e corpo que criam, que fabricam, o psicótico passa a falar de uma
outra referência que não a da loucura. Passa a falar através da
criação e assim já não é mais tão louco, isto porque passou a
produzir novas posições, novas associações, novas reivindicações,
novas visões.
Certos
pacientes se surpreendem ao ver que suas criações são objeto de
apreciação, outros se espantam ao constatar que podem representar
uma peça teatral. Alguns são tomados de prazer vendo sua criação
como algo utilizável.
Terapia
Ocupacional, em síntese, é isto: - imagens em colisão. Colisão
determinante de uma cinética, de uma anarquia; implícita no fazer -
desfazer, construir – desconstruir, compor – decompor para assim
chegar à “arquitetura” desejada, u seja, a um “alcance
pragmático”.
Trata-se
portanto de uma vivência de êxtase e paixão.
Fazer
um percurso entre dois ou mais espaços gera movimento, ação,
figuras correndo, objetos cinéticos. Tudo isso vem colocar o
paciente na dimensão do provisório, do contingente, do precário,
do fugaz e do efêmero da existência, do limite, contido no fato de
que vamos necessariamente morrer e de que as formas e os processos
que criamos para mudar a vida são finito e falíveis. E, no entanto,
a consciência dessa limitação não diminui o mérito do
empreendimento. Ao contrário, o valoriza.