quinta-feira, 17 de maio de 2018

TERAPIA OCUPACIONAL: entre o que se imagina e o que se pode tocar – com palavras no meio



Abordarei aqui, de acordo com uma forma particular de pensar a Terapia Ocupacional, algumas observações que tenho feito no decurso da minha vivência cotidiana com psicóticos.
Para começar, remeto-me ao Centro de Convivência da Pessoa (CECOP), instituição da qual faço parte há vários anos e onde trabalho junto com outros colegas. No CECOP, tudo ou quase tudo está preparado para que os pacientes vivenciem uma atmosfera de atividades, responsabilidades e co-gestão de interesses e gestos, com vistas a uma transação ativa dos pacientes com a realidade. Isto porque é próprio dos quadros psicóticos o estancamento deste movimento, desta aprendizagem.
Para isso, temos como eixo central de intervenção algumas estratégias que, a rigor, desenham o espaço institucional. Vejamos:
1. Construção de um campo de ação no qual o agir do paciente possa ocorrer voluntária e espontaneamente. Esse campo de ação e interação, por suscitar significações, acaba constituindo-se em campo produtor da subjetividade individual e coletiva, isto porque, neste contexto significativo, o paciente gradualmente vai se percebendo em movimento. Em ação – em situação.
2. Nesse campo de ação significativa, a produção e pronunciamento do paciente inserem-se na dimensão do vínculo social, remetendo-o, portanto, à construção concreta de sua existência.
3. O campo de ação, estando associado a um cotidiano criativo, pedagógico e estético, vai possibilitando o paciente substituir uma forma repetitiva e vazia de vida por atividades que o levem a readquirir um sentido de existência. Através do exercício de um complexo múltiplo de ações, o paciente vai lançando mão do gesto criativo e portanto, ativando processos de mudança.
4. O aguçamento da sensibilidade e dos afetos daí resultante proporciona ao paciente uma certa intimidade com o “caos” e assim ele sai ganhando territorialidade. Territorialidade no sentido de estabelecer laços cada vez mais conscientes com a vida.
Então, o que significa para nós Terapia Ocupacional? Essencialmente passagem do tempo. Colagem, um estado alterado. Meio ambiente. Divertimento. Organização de ideias a partir de artifícios concretos. Reafirmação do presente. Tempo estruturado. Meditação. Estado de pânico. Testemunho. Memória. Fúria. Texto em movimento. Figura no espaço. Dialética entre o agir e pulsar. Movimento da luz. Retrato. Visão. Confissão. Defecação. Máscara. Espaço habitado.
Enfim, produção de diferentes cenas.
Assim entendemos que a Terapia Ocupacional pode promover acontecimentos onde nada se produzia, onde as coisas se estagnavam na pura redundância, suscitando a emergência de singularidades com suas aberturas pragmáticas, suas virtualidades, seus universos de referência.. Por exemplo, certos pacientes de origem humilde, simples, são levados a produzir artes plásticas, teatro, vídeo, música etc, quando antes esses universos lhes escapavam completamente.
Por sua vez, burocratas ou mesmo intelectuais se sentem atraídos por um trabalho manual na cozinha, no jardim em cerâmica etc. O que importa aqui não é unicamente o confronto com um material expressivo, é a construção, a partir daí, de complexos de subjetivação: pessoa – grupo – material expressivo – rocas múltiplas que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, se ressingularizar. Dessa maneira se processam transplantes que procedem de um campo criativo, portanto de vida, criando-se fecundas modalidades de subjetivação, semelhantes ao modo como um artesão produz objetos a partir do “material” de que dispõe. Esse processo de subjetivação implica a injeção de componentes heterogêneos no surgimento de pontos de bifurcação, fazendo com que a um só tempo um pequeno acontecimento abra novos campos de possibilidades, novos roteiros. Convém lembrar que os roteiros dos psicóticos quase não lhe propiciam um eixo de orientação. É preciso conduzi-los a construir novos roteiros. Do pânico, do encurralamento, brotam novos sons, desenhos, poesias inesperadas. Um novo tipo de afeto, uma nova qualidade de vínculo, uma relação inédita podem ter lugar a partir de uma experiência mutante.
Em tal contexto, observa-se que elementos os mais diversos podem contribuir para a evolução do paciente, tomando por base processos de subjetivação: as relações processadas com o espaço arquitetônico, a co-gestão entre os pacientes e os responsáveis pelos diferentes vetores terapêuticos, a apreensão de todas as oportunidades de abertura para o exterior, a exploração processual dos acontecimentos, enfim, tudo aquilo que se pode contribuir para a criação de uma relação autêntica e singular com o outro. Isto porque, é matriz do projeto cecopiano a presença permanente da palavra, de trocas, de problematizações, de ações, de agires o campo da realidade, no campo do cotidiano. Primamos pela manutenção de um campo de ação que possa promover a emergência das mais variadas linguagens e ecos, tendo em vista a vivência de uma experiência retificadora. Senão vejamos: não raro, famílias nos procuram alegando que seus filhos são muito parados, não se interessam por nada e portanto precisam de um lugar onde possam se ocupar. No primeiro contato do paciente com a instituição, observamos que certos mecanismos são acionados, dando lugar a determinados gestos: a iniciativa de ligar uma TV, de pedir um copo d’água, de voluntariamente se dirigir à oficina de criação; gestos em si elementares, embora não cogitados pela família como possíveis de o paciente realizá-los.
Supomos com isso, que o CECOP acaba por converter-se no que denominamos de “Usina de Criação”, cujo ponto de lance são os processos de subjetivação, resultante da criação de novos roteiros de vida em transversalidade inesperada com antigos roteiros. Esses processos vêm desenhar novo devires, criando e abrindo frestas na individualidade serializada à qual o psicótico encontra-se ancorado.
No CECOP, utilizamos uma grande variedade de atividades, como pintura, música, vídeo, literatura, poesia, teatro, jornais escritos e falados, expressão corporal, passeios, jardinagem etc. Tomamos todas estas atividades essencialmente como linguagens de uma profunda riqueza, uma vez que injetam novos códigos nas antigas fortalezas da territorialidade do já feito, do já dito. Nessa perspectiva, o desejo assume o lugar da invenção, efetivando processos de mudança, objetivando um novo devir, ou seja, o chamamento de determinada coisa que ainda não está aí, mas que existe como possibilidade. O devir do sentido da construção cotidiana da realidade.
Tenho observado, em muitos casos, que ao cuidar de psicóticos torna-se necessário e às vezes prudente abrir mão do corpo estabelecido, isto é, o psicológico, o universitário, o nosográfico etc, para depois recompor esse corpo a partir das redes de relações. Para isto, é preciso estarmos abertos aos acontecimentos, ao imprevisto, ao inédito, àquelas “pequenas manchas que tendem a surgir, de forma semelhante às manchas que surgem na tela quando o artista pinta” (Felix Guattari). Os psicóticos são muito imprevisíveis, razão porque mantém uma relação muito rica com a estética, isto é, estão sempre em busca de fendas para a organização, na medida em que as coordenadas do seu universo são muito frágeis. É comum observarmos gestos de pacientes que nos causam certa impressão, isto porque os remetem à constante busca da forma e expressão de conteúdos. Grafites em paredes e móveis, rabiscos e desenhos espontâneos em papéis, performances etc, são gestos que observamos no cotidiano de pacientes psicóticos e que, via de regra, expressam sinalizações de busca de conexões.
Partindo dessa premissa, torna-se necessário, torna-se necessário dar-lhes a oportunidade de contato com materiais concretos que oportunizem por sua vez uma produção também concreta, quer dizer, uma criação. Falar em criação é também dizer da responsabilidade da instância criadora em relação à coisa criada.
No CECOP existe uma espécie de tratamento barroco da instituição, em que a procura de novos temas, novas variações, novas leituras estão sempre postas em tela, com o objetivo de conferir aos psicóticos marcas de subjetivação e autenticidade. A partir dos mínimos encontros, das pequenas dobras advindas dos mais variados contextos, brota uma rede de relações de natureza interfertilizante que, a rigor, respondem por processos de produção de uma nova subjetividade. O que importa, portanto, é poder trabalhar programas de vida em função de personalidades com um certo grau de complexidade. É como se para cada pessoa que nos procura fosse necessário “reescrever”, refundar o CECOP. Para tanto se deve estar disposto a assumir discursos muito heterogêneos, sem que isso venha a significar duplicidade do discurso. Trata-se principalmente de adotar uma escuta singular em face de um acontecimento também singular. Afirma Guattari: “(…) o sujeito não é tão evidente, ele não está dado, ele não é naturalmente engendrado: é preciso trabalhá-lo. Sua modelização – na realidade, sua produção – é artificial e o será cada vez mais. A subjetividade coletiva, ela também, tem necessidade de uma prática em constante evolução(…).”
Será isto realmente uma proposta de abertura de alguma claridade? Ou será a claridade uma forma de cegueira, uma forma de ilusão? Que claridade realmente o paciente busca? Inferimos que é uma claridade semelhante ao brincar de cabra-cega, quando uma pessoa de olhos vendados, tateando, tenta atingir, pegar e identificar quem e o que está à sua volta. Na maioria das vezes o que é encontrado é o “ponto”, quer dizer, uma área da retina que ainda se encontra sensível à luz. É o turbilhão se convertendo em síntese. É a possibilidade do gesto. É a vertigem caótica que se encarnou na produção de um fazer criativo. E, neste aspecto, para o paciente o mundo e o outro não lhe falam mais a mesma voz, com o mesmo tom. O paciente entra em diálogo não tanto com uma ordem delirante, mas através de uma ordem de natureza socializante. Cada psicótico é ímpar na sua maneira de viver a psicose, portanto, é necessário não sermos redutivos tentado impor-lhe um sistema de igualdade.
Venho trabalhando com psicóticos há algum tempo e, apesar de tudo, honestamente, às vezes me vejo procurando saber o que fazer. Sou alguém consumido pela curiosidade do que está por vir.
Como produzir uma subjetividade processual onde tudo está bloqueado, paralisado, estratificado, num jogo de cartas marcadas? Para mim está claro que quando os psicóticos presenciam o perfil de um trabalho, de algum movimento que lhes inspire confiança e vida, não raro deixam de se engajar. Por outro lado, torna-se problemático alguém responder e atender a padrões anêmicos e estéreis de comunicação. Se o Terapeuta Ocupacional se utiliza das mais variadas linguagens para viabilizar ações terapêuticas, a Terapia Ocupacional é por excelência uma abordagem de natureza comunicacional e dialogante. Assim, o Terapeuta Ocupacional é alguém que pode ser identificado com a figura d trovador, do poeta, do viajante, do malandro, do ator, do cantor, do músico etc. Imagem-modelo, molde corporificado junto ao qual os psicóticos podem vivenciar experiências significativas numa arena também significativa.
É um pouco em função disso que conduzimos nossas intervenções. O que fazer em tal contexto, com tal pessoa ou com tal grupo, para que se tenha uma relação tão criadora quanto possível com a situação em que está vivendo – como um músico com sua música ou um pintor com sua pintura?
Sobre essa questão refere Guattari, no que diz respeito à cura: “Uma cura seria como construir uma obra de arte; com a diferença de que seria preciso reinventar, a cada vez, a forma de arte que se vai usar – quer dizer que o indivíduo adquira um ‘plus’ de virtuosidade, como um pianista para certas dificuldades”; ou melhor, mais disponibilidade, mais humor, mais abertura para pular de uma gama de referência para outra… mais charme, mais simpatia.
Os recursos terapêuticos ocupacionais, por serem diretos, ativos, cinéticos, tornam-se poderosos. Da descoberta do prazer de ter mãos e corpo que criam, que fabricam, o psicótico passa a falar de uma outra referência que não a da loucura. Passa a falar através da criação e assim já não é mais tão louco, isto porque passou a produzir novas posições, novas associações, novas reivindicações, novas visões.
Certos pacientes se surpreendem ao ver que suas criações são objeto de apreciação, outros se espantam ao constatar que podem representar uma peça teatral. Alguns são tomados de prazer vendo sua criação como algo utilizável.
Terapia Ocupacional, em síntese, é isto: - imagens em colisão. Colisão determinante de uma cinética, de uma anarquia; implícita no fazer - desfazer, construir – desconstruir, compor – decompor para assim chegar à “arquitetura” desejada, u seja, a um “alcance pragmático”.
Trata-se portanto de uma vivência de êxtase e paixão.

Fazer um percurso entre dois ou mais espaços gera movimento, ação, figuras correndo, objetos cinéticos. Tudo isso vem colocar o paciente na dimensão do provisório, do contingente, do precário, do fugaz e do efêmero da existência, do limite, contido no fato de que vamos necessariamente morrer e de que as formas e os processos que criamos para mudar a vida são finito e falíveis. E, no entanto, a consciência dessa limitação não diminui o mérito do empreendimento. Ao contrário, o valoriza.

Deixe sua mensagem