domingo, 20 de maio de 2018

TERAPIA OCUPACIONAL & POETICIDADES SEMIÓTICAS




Pode parecer extravagância comparar um autor já consagrado no século passado com outro ainda em processo de auto-superação. Por enquanto o melhor seria manter um clima de suspense, desde que as analogias são quase sempre atrevidas, perigosas, quando não abusivamente superlativas. Restando alguma ansiedade ao enfrentar um raciocínio comparativo entre duas personalidades tão radicalmente singulares. Além e aquém do jogo de presenças e distâncias, evocações e permanências, dádivas e certezas. Em campos de atuação e prestígio talvez conflituosos. Por isso, esqueçamos os confrontos geracionais, formações específicas, ideários libertadores.
Abismos do Brasil interferindo sobre todos nós.
Nômades pensamentos exigindo novos desafios e perplexidades.
Aquarelas brasilíricas despedaçadas.
Aonde fomos parar? Quantos enigmas indecifráveis?
Da revolução pedagógica desejada por Paulo Freire o que se pode ser transferido e reinventado pela clínica de Luiz Gonzaga Pereira Leal?
O educador Paulo, no ambiente de planejamento desenvolvimentista, reformas de base e múltiplas militâncias, inventou um Sistema de Educação: não um simples método de alfabetização para jovens e adultos iletrados. Entretempos dos finais dos anos 50 ao início dos anos 60 do século XX. Paulo Freire experimentava uma utopia concreta.
O terapeuta Gonzaga Leal, nas pulsações redemocratizadoras das décadas de 80/90, reelaborou a situação da psicose, além das intervenções tradicionais. Situações limite da contracultura investindo nas relações moleculares. Crise de transformações. Outras utopias discretas?
Com esses dois registros, melhor valeria uma tentativa de reaproximá-los. Ou melhor narrando: re-interpretá-los. Assumindo riscos, sem renegá-los. Duas configurações da historicidade no particípio presente de nós, mesmos e outros. Dois registros. Duas reconfigurações. Três apostas como hipóteses.
A primeira hipótese inserindo Paulo Freire e Luiz Gonzaga Pereira Leal numa vivência de complexidade antropológica. Ambos praticando leituras do mundo através de perspectivas substantivamente culturais. Insatisfeitos com o erudicionismo, muito mais ornamental que corporificado, tanto Paulo Freire quanto Gonzaga constroem o núcleo da história no cotidiano. De nossas carências, necessidades, expectativas, tradições e contra-dicções. Investigam, projetam, discutem hábitos, crenças, ilusões, mitos e preconceitos. Apontando e muito mais apostando no sentido da criticidade permanente.
Para onde nos levariam esse terapeutas-educadores da arte-vida?
Quantas veredas nos sugeririam?
Entre localismos e universalismos aonde vamos disparar?
Apontando e apostando nessa palavra geradora – criticidade – os dois pensadores não se confinam no âmbito dos racionalismos empiristas nem intelectualistas, mas intencionam uma racionalidade aberta ao diálogo. Assim instaurando a segunda hipótese de nossa suspeita e empática interpretação. Suspeita por veracidade e poeticidade por empatia.
Em consequência dessa postura dialógica-comunicativa, no trânsito de todos os debates e ideologias, a posição crítica (não criticista) se fundamentaria numa disponibilidade de afeto. Afetividade múltipla, abrangente, totalizante em processo, embora jamais totalitária enquanto exercícios de excludências. Afetividade, radical mas não sectariamente, democratizadora. Sem a tirania da possessividade. Sem a denegação das diversidades. Sem a fantasia das retóricas.
Paulo Freire transformando a sala de aulas expositivas monológicas em círculos de cultura de todos os participantes: educando-educadores e educadores-educandos.
Transformando porque cooperando com todas as modalidades de intervenção dos seres humanos em suas experiências comunitárias de trabalho, lazer, religiosidade e filosofias de vida. Coparticipações. Intercomunicações.
Gonzaga Leal reconfigurando uma concepção de Clínica em Laboratório de Afetos e Sensorialidade. Atravessando um caleidoscópio de linguagens. Ultrapassando os gestos mais opacos e aparentemente sem sentido em projetos da imaginação lúdica, brincante na interatividade. Seus parceiros-companheiros de Laboratório interagindo ao redor de uma mesa ampla, com ambientação de livros e objetos os mais diversificados. A esses objetos, Gonzaga prefere chamá-los trocinhos, vestígios de época, resíduos de civilização, bens culturais ao alcance das manualidades, desempenhos e reinvenções. Seus parceiros-personagens de aventura criativa. Babel de nossos imaginários e musicalidades. A realidade em artefatos e brinquedos.
Se a primeira hipótese reaproximou Gonzaga Leal de Paulo Freire através das convivências antropológicas; se a segunda hipótese fez a ponte/fonte da criticidade para a afetividade, qual será nossa terceira hipótese? Em nome de qual profana trindade?
Desejando abolir ou, pelo menos, driblar o fôlego das dualidades e dicotomias, ambos trabalharam e continuam trabalhando com a esperança da práxis na complexidade. Pelas interpenetrações do humanismo das letras, artes e ciências com o universo das linguagens, gestualidades e sonoridades. Pelas interfaces do discurso no silêncio, da lucidez na loucura, da paixão na razão, da ignorância nos saberes. Pelos labirintos da racionalidade transitiva e transacional. Pela lógica dos paradoxos, quando a “faca só lâmina” experimenta a metamorfose de todos os sentidos, percepções, sensibilidades e significados compartilhados. Essa terceira hipótese nos introduz, tornando-nos cúmplices do multiverso dos trocinhos.
Das leituras do mundo às palavrações da criticidade.
Do prazer do texto ao dialogismo dos afetos e sensações.
Dos traços do letramento às veredas dos paradoxais trocinhos.
Hipótese terciária, das unidades em complexidades, dos paradigmas em paradoxos, das percepções em fabulações, das redundâncias em diferenciações. Hipótese quase hipérbole: pelas intensificações da terapia ocupacional em ação cultural libertadora desdobrando-se em semiótica do olha tátil.
Além do raciocínio comparativo entre o educador Paulo Freire e o terapeuta Luiz Gonzaga Pereira Leal continuaremos oscilando entre diferenças e convergências, identificações e alteridades, localismos e sombreados, closes e panorâmicas, cantatas e dissonâncias cognitivas, um substantivo questionamento: quais os trocinhos e destroços que sobraram, duraram, perduraram em nosso processo psi-civilizatório?
O Brasil de todas as barbáries tão longe perto demais? De nossos trocinhos, objetos de dúvida e de estimação, sujeitobjetos de nossas memórias roubadas e mitologias replicantes. Trocinhos, segundo a denominação carinhosa de Gonzaga Leal: nosso passado em devenir, lembranças transfiguradas, imitações reinventadas, co-realidades afetivas, conceituais, valorativas. Táticas e estratégias religadoras. Traços de imperiosa e dadivosa sobrevivências. Troços e traços ainda sempre carnavalizadores, mundo pelo avesso, máscaras desusadas, afetuosos desmascaramentos. Surpresas além do bem e dos males provinciais. Além do além do AMOR-TE. Pulsões revivescentes. Quase tudo em particípio presente.
Salve-se quem souber de nossas trocas e troças, tramas e traumas, desejos flutuantes e afetos pulsantes.
Salve-se quem souber arriscar-se pela artevida no cotidiano.
Salve-se quem escapar dos messianismos impagáveis. Quixotescos?
O espaço-tempo da clínica-laboratório de Gonzaga Leal, muito mais do que re-unir e aglutinar experiências, pode significar um conjunto plural de historicidades. Linhas de fuga do eterno ao efêmero. Todas as seduções do explícito ao introjetado. Todos os desejos, sem leis nem hierarquias, além das necessidades e demandas.
Da arqueologia dos saberes, epistemes e cortes epistemológicos, matrizes de reconhecimento, às reapresentações do presente cotidiano. Rupturas e continuidades. E tudo é muito mais. Além dos rótulos e das grafitagens. Além das rótulas e dos modismos nominalistas. Das ironias românticas às paródias e pastiches de todas as modernidades. Transpirando-se na temporalidade de convivências por intensidade. Tudo a partir do constante recomeçar pela SEMIÓTICA DO OLHAR FALANTE.
Tudo a ser experienciado: visto, tocado, cheirado, apalpado, descrito, agido, comovido, narrado, contemplado em ações compartilhadas.
SEMIÓTICA DO OLHAR INTERCOMUNICANTE.
Porque tudo continua sendo muito mais. A ser revivido e reinventado.
Um jorrar jubiloso de linguagens.
SEMIÓTICA DO OLHAR MUSICAL.
Muito além do além das lendas, como expressaria em louvor de todos o poeta Carlos Pena Filho. Imagens maternas do lócus-nordestino ao cosmopolitismo mais nômade. Travessias. Dialogismo das possibilidades entre mães e marionetes, ausências e figurações. Bem perto de um Jardim ZEN sobre a mesa de encontros, devaneios, interrogações. Enamoramentos. Iluminações. Medos. Transfigurações. Coleção de quadros (im)pacientes pelas paredes. Artesanatos indígenas. Ancestralidades. Escultura de uma velha pensando à espera da lealdade de um outro Rodin ou Camille Claudel. Transposições.
SEMIÓTICA SO OLHAR VISIONÁRIO.
Calidoscópios de perdidos e reencontrados.
Proust à deriva de Guimarães Rosa. Aprendizagem permanente no livro dos sofreres, quereres e prazeres de outra Clarice Lispector ou Hilda Hilst. Quem desvendará A Roda da Sorte e da Fortuna?
Quem se imaginará coparticipando de uma outra Santa Ceia, tão chilena quanto nordestina?
Quem dialogará com a tecelã decantada talvez pelo poeta Mauro Motta?
SEMIÓTICA DO OLHAR TÁTIL – MUSICAL.
Descentrando-se e multiplicando-se pelos instrumentos de percussão.
Jogos de vida psi-compartilhada. Além dos departamentos especializações e reducionismos. Conceitos incorporados. Afetos irradiantes. Nenhum lance de dados (e dardos) excluirá a loucura e a lucidez, tecendo nossas manhãs cinzentas, nossos luares de angústia, nossos dilaceramentos televisivos, nossa potência como alegria de conviver. Por isso nada poderia ser resguardado entre gavetas, armários, prateleiras, paredes, livrarias, suspenses, perguntas, promessas de felicidadania. Apesar dos terrorismos e roubalheiras.
Jogos de amorosidade em contracanto. Porque tudo é muito mais. Agenciamento de novas subjetividades e intercomunicações. Religações da pedagogia paulofreiriana com a política enquanto terapêutica do cotidiano e poeticidade sem fronteiras.
SEMIÓTICA DO OLHAR SEM LIMITES.
Nesse nosso exercício de intempestivo dialogismo entre Paulo Freire, educador de criticidades democratizadoras, e Luiz Gonzaga Pereira Leal, terapeuta de abissais afetuosidades, o tempo-espaço da POIESES nos instaura e complexifica e solidariza enquanto CAOSMOSE. Transformando signos em SIGNAGENS, como acrescentaria Décio Pignatari.
SEMIÓTICA DO OLHAR TOTALIZANTE.
Por eles, através deles, interpenetrando-se além deles, a terapia ocupacional percorre nossa condição lúdico-humana como vida em jogo, espiral de desejos, anotações da dúvida, envolvimento versus estranhuras, afetividade irrompendo como instigantes ensaio de trocinhos de outras poeticidades. SEMIOTICIDADE de nossos agentes transformadores, Paulo Freire e Gonzaga Leal.

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