Pode
parecer extravagância comparar um autor já consagrado no século
passado com outro ainda em processo de auto-superação. Por enquanto
o melhor seria manter um clima de suspense, desde que as analogias
são quase sempre atrevidas, perigosas, quando não abusivamente
superlativas. Restando alguma ansiedade ao enfrentar um raciocínio
comparativo entre duas personalidades tão radicalmente singulares.
Além e aquém do jogo de presenças e distâncias, evocações e
permanências, dádivas e certezas. Em campos de atuação e
prestígio talvez conflituosos. Por isso, esqueçamos os confrontos
geracionais, formações específicas, ideários libertadores.
Abismos
do Brasil interferindo sobre todos nós.
Nômades
pensamentos exigindo novos desafios e perplexidades.
Aquarelas
brasilíricas despedaçadas.
Aonde
fomos parar? Quantos enigmas indecifráveis?
Da
revolução pedagógica desejada por Paulo Freire o que se
pode ser transferido e reinventado pela clínica de Luiz
Gonzaga Pereira Leal?
O
educador Paulo, no ambiente de planejamento desenvolvimentista,
reformas de base e múltiplas militâncias, inventou um Sistema de
Educação: não um simples método de alfabetização para jovens e
adultos iletrados. Entretempos dos finais dos anos 50 ao início dos
anos 60 do século XX. Paulo Freire experimentava uma utopia
concreta.
O
terapeuta Gonzaga Leal, nas pulsações redemocratizadoras das
décadas de 80/90, reelaborou a situação da psicose, além das
intervenções tradicionais. Situações limite da contracultura
investindo nas relações moleculares. Crise de
transformações. Outras utopias discretas?
Com
esses dois registros, melhor valeria uma tentativa de reaproximá-los.
Ou melhor narrando: re-interpretá-los. Assumindo riscos, sem
renegá-los. Duas configurações da historicidade no particípio
presente de nós, mesmos e outros. Dois registros. Duas
reconfigurações. Três apostas como hipóteses.
A
primeira hipótese inserindo Paulo Freire e Luiz Gonzaga
Pereira Leal numa vivência de complexidade antropológica. Ambos
praticando leituras do mundo através de perspectivas
substantivamente culturais. Insatisfeitos com o erudicionismo, muito
mais ornamental que corporificado, tanto Paulo Freire quanto Gonzaga
constroem o núcleo da história no cotidiano. De nossas carências,
necessidades, expectativas, tradições e contra-dicções.
Investigam, projetam, discutem hábitos, crenças, ilusões, mitos e
preconceitos. Apontando e muito mais apostando no sentido da
criticidade permanente.
Para
onde nos levariam esse terapeutas-educadores da arte-vida?
Quantas
veredas nos sugeririam?
Entre
localismos e universalismos aonde vamos disparar?
Apontando
e apostando nessa palavra geradora – criticidade – os dois
pensadores não se confinam no âmbito dos racionalismos empiristas
nem intelectualistas, mas intencionam uma racionalidade aberta ao
diálogo. Assim instaurando a segunda hipótese de nossa suspeita e
empática interpretação. Suspeita por veracidade e poeticidade por
empatia.
Em
consequência dessa postura dialógica-comunicativa, no trânsito de
todos os debates e ideologias, a posição crítica (não criticista)
se fundamentaria numa disponibilidade de afeto. Afetividade
múltipla, abrangente, totalizante em processo, embora jamais
totalitária enquanto exercícios de excludências. Afetividade,
radical mas não sectariamente, democratizadora. Sem a tirania
da possessividade. Sem a denegação das diversidades. Sem a fantasia
das retóricas.
Paulo
Freire transformando a sala de aulas expositivas monológicas em
círculos de cultura de todos os participantes:
educando-educadores e educadores-educandos.
Transformando
porque cooperando com todas as modalidades de intervenção dos seres
humanos em suas experiências comunitárias de trabalho, lazer,
religiosidade e filosofias de vida. Coparticipações.
Intercomunicações.
Gonzaga
Leal reconfigurando uma concepção de Clínica em Laboratório de
Afetos e Sensorialidade. Atravessando um caleidoscópio de
linguagens. Ultrapassando os gestos mais opacos e aparentemente sem
sentido em projetos da imaginação lúdica, brincante na
interatividade. Seus parceiros-companheiros de Laboratório
interagindo ao redor de uma mesa ampla, com ambientação de livros e
objetos os mais diversificados. A esses objetos, Gonzaga prefere
chamá-los trocinhos, vestígios de época, resíduos de civilização,
bens culturais ao alcance das manualidades, desempenhos e
reinvenções. Seus parceiros-personagens de aventura criativa. Babel
de nossos imaginários e musicalidades. A realidade em artefatos e
brinquedos.
Se
a primeira hipótese reaproximou Gonzaga Leal de Paulo Freire através
das convivências antropológicas; se a segunda hipótese fez a
ponte/fonte da criticidade para a afetividade, qual
será nossa terceira hipótese? Em nome de qual profana
trindade?
Desejando
abolir ou, pelo menos, driblar o fôlego das dualidades e dicotomias,
ambos trabalharam e continuam trabalhando com a esperança da
práxis na complexidade. Pelas interpenetrações do humanismo
das letras, artes e ciências com o universo das linguagens,
gestualidades e sonoridades. Pelas interfaces do discurso no
silêncio, da lucidez na loucura, da paixão na razão, da ignorância
nos saberes. Pelos labirintos da racionalidade transitiva e
transacional. Pela lógica dos paradoxos, quando a “faca só
lâmina” experimenta a metamorfose de todos os sentidos,
percepções, sensibilidades e significados compartilhados. Essa
terceira hipótese nos introduz, tornando-nos cúmplices do
multiverso dos trocinhos.
Das
leituras do mundo às palavrações da criticidade.
Do
prazer do texto ao dialogismo dos afetos e sensações.
Dos
traços do letramento às veredas dos paradoxais trocinhos.
Hipótese
terciária, das unidades em complexidades, dos paradigmas em
paradoxos, das percepções em fabulações, das redundâncias em
diferenciações. Hipótese quase hipérbole: pelas intensificações
da terapia ocupacional em ação cultural libertadora
desdobrando-se em semiótica do olha tátil.
Além
do raciocínio comparativo entre o educador Paulo Freire e o
terapeuta Luiz Gonzaga Pereira Leal continuaremos oscilando entre
diferenças e convergências, identificações e alteridades,
localismos e sombreados, closes e panorâmicas, cantatas e
dissonâncias cognitivas, um substantivo questionamento: quais os
trocinhos e destroços que sobraram, duraram, perduraram em
nosso processo psi-civilizatório?
O
Brasil de todas as barbáries tão longe perto demais? De nossos
trocinhos, objetos de dúvida e de estimação, sujeitobjetos
de nossas memórias roubadas e mitologias replicantes. Trocinhos,
segundo a denominação carinhosa de Gonzaga Leal: nosso passado em
devenir, lembranças transfiguradas, imitações reinventadas,
co-realidades afetivas, conceituais, valorativas. Táticas e
estratégias religadoras. Traços de imperiosa e dadivosa
sobrevivências. Troços e traços ainda sempre carnavalizadores,
mundo pelo avesso, máscaras desusadas, afetuosos desmascaramentos.
Surpresas além do bem e dos males provinciais. Além do além do
AMOR-TE. Pulsões revivescentes. Quase tudo em particípio presente.
Salve-se
quem souber de nossas trocas e troças, tramas e traumas, desejos
flutuantes e afetos pulsantes.
Salve-se
quem souber arriscar-se pela artevida no cotidiano.
Salve-se
quem escapar dos messianismos impagáveis. Quixotescos?
O
espaço-tempo da clínica-laboratório de Gonzaga Leal, muito mais do
que re-unir e aglutinar experiências, pode significar um conjunto
plural de historicidades. Linhas de fuga do eterno ao efêmero. Todas
as seduções do explícito ao introjetado. Todos os desejos, sem
leis nem hierarquias, além das necessidades e demandas.
Da
arqueologia dos saberes, epistemes e cortes epistemológicos,
matrizes de reconhecimento, às reapresentações do presente
cotidiano. Rupturas e continuidades. E tudo é muito mais. Além dos
rótulos e das grafitagens. Além das rótulas e dos modismos
nominalistas. Das ironias românticas às paródias e pastiches de
todas as modernidades. Transpirando-se na temporalidade de
convivências por intensidade. Tudo a partir do constante recomeçar
pela SEMIÓTICA DO OLHAR FALANTE.
Tudo
a ser experienciado: visto, tocado, cheirado, apalpado, descrito,
agido, comovido, narrado, contemplado em ações compartilhadas.
SEMIÓTICA
DO OLHAR INTERCOMUNICANTE.
Porque
tudo continua sendo muito mais. A ser revivido e reinventado.
Um
jorrar jubiloso de linguagens.
SEMIÓTICA
DO OLHAR MUSICAL.
Muito
além do além das lendas, como expressaria em louvor de todos o
poeta Carlos Pena Filho. Imagens maternas do lócus-nordestino
ao cosmopolitismo mais nômade. Travessias. Dialogismo das
possibilidades entre mães e marionetes, ausências e figurações.
Bem perto de um Jardim ZEN sobre a mesa de encontros, devaneios,
interrogações. Enamoramentos. Iluminações. Medos.
Transfigurações. Coleção de quadros (im)pacientes pelas paredes.
Artesanatos indígenas. Ancestralidades. Escultura de uma velha
pensando à espera da lealdade de um outro Rodin ou Camille Claudel.
Transposições.
SEMIÓTICA
SO OLHAR VISIONÁRIO.
Calidoscópios
de perdidos e reencontrados.
Proust
à deriva de Guimarães Rosa. Aprendizagem permanente no livro dos
sofreres, quereres e prazeres de outra Clarice Lispector ou Hilda
Hilst. Quem desvendará A Roda da Sorte e da Fortuna?
Quem
se imaginará coparticipando de uma outra Santa Ceia, tão
chilena quanto nordestina?
Quem
dialogará com a tecelã decantada talvez pelo poeta Mauro Motta?
SEMIÓTICA
DO OLHAR TÁTIL – MUSICAL.
Descentrando-se
e multiplicando-se pelos instrumentos de percussão.
Jogos
de vida psi-compartilhada. Além dos departamentos especializações
e reducionismos. Conceitos incorporados. Afetos irradiantes. Nenhum
lance de dados (e dardos) excluirá a loucura e a lucidez, tecendo
nossas manhãs cinzentas, nossos luares de angústia, nossos
dilaceramentos televisivos, nossa potência como alegria de conviver.
Por isso nada poderia ser resguardado entre gavetas, armários,
prateleiras, paredes, livrarias, suspenses, perguntas, promessas de
felicidadania. Apesar dos terrorismos e roubalheiras.
Jogos
de amorosidade em contracanto. Porque tudo é muito mais.
Agenciamento de novas subjetividades e intercomunicações.
Religações da pedagogia paulofreiriana com a política enquanto
terapêutica do cotidiano e poeticidade sem fronteiras.
SEMIÓTICA
DO OLHAR SEM LIMITES.
Nesse
nosso exercício de intempestivo dialogismo entre Paulo Freire,
educador de criticidades democratizadoras, e Luiz Gonzaga Pereira
Leal, terapeuta de abissais afetuosidades, o tempo-espaço da POIESES
nos instaura e complexifica e solidariza enquanto CAOSMOSE.
Transformando signos em SIGNAGENS, como acrescentaria Décio
Pignatari.
SEMIÓTICA
DO OLHAR TOTALIZANTE.
Por
eles, através deles, interpenetrando-se além deles, a terapia
ocupacional percorre nossa condição lúdico-humana como vida em
jogo, espiral de desejos, anotações da dúvida, envolvimento versus
estranhuras, afetividade irrompendo como instigantes ensaio de
trocinhos de outras poeticidades. SEMIOTICIDADE de nossos
agentes transformadores, Paulo Freire e Gonzaga Leal.