quarta-feira, 16 de maio de 2018

UMA TERAPIA OCUPACIONAL LEAL

A TERAPIA OCUPACIONAL - QUE EU ESCREVO POLITICAMENTE EM LETRAS MINÚSCULAS, PARA AFIRMAR SUA DIVERSIDADE - é, no mínimo, engraçada. Engraçada por seus caminhos misteriosos e inesperados. Engraçada também por suas doces e intensas descobertas. Vivendo como terapeuta ocupacional, nós, muitas vezes, apreendemos algumas revelações que intensificam nossa existência. Algumas delas são encontros que nos proporcionam esse modo de sentir a vida pulsar em alto grau. A lealdade é uma dessas possíveis facetas que encontramos na terapia ocupacional e que nos faz acreditar em momentos poéticos da nossa existência. Uma das possíveis formas de perceber a realidade é entendê-la como fidelidade, ser fiel, seguir conforme a lei. Num primeiro momento, se tomarmos o termo em sua forma moral, podemos entender o ser fiel como algo aprisionador. Contudo, para ser fiel, para ser intensamente fiel, é preciso navegar nas águas da traição, sentir desejos por outros caminhos, por outros amores e até mesmo experimentar outros sabores. Desse modo fazemos nossa escolha de forma mais amadurecida. Aqui nossa escolha não é pela lei penal, mas, como diz Almodóvar, pela lei do desejo. Leal é aquele que está de acordo com a lei; só que, para nós, a lei do desejo. Há muito me impressiona a passionalidade, às vezes até mesmo inocente, de muitos terapeutas ocupacionais. Alguns, quando falam dela, a colocam nas alturas como uma espécie de senha sagrada para ascensão ao Olimpo ou para transferir esferas de um mundo idílico dos justos e solidários.  Por que a terapia ocupacional pensa de forma tão apoteótica sobre si? Porque, penso eu, é movida pela lei do desejo. É leal ao desejo. Sua lei é o desejar.
Esse doce mistério que extrapola toda a racionalidade, lógica e paradoxalmente à própria lei na sua forma tradicional, é algo que parece estar presente na terapia ocupacional, tornando-a engraçada. Porque a terapia ocupacional deve transitar no paradoxo entre a ciência, presente na área da saúde, e a arte constituinte dos fazeres. Assim, todo desejo caminha entre ódio e amor. Quem deseja ama, porém também pode odiar. Por isso há tanta tensão na terapia ocupacional. Tensão porque só podemos realizá-la por desejo, mas alguns protocolos acadêmicos têm que ser cumpridos!
Por mais que sintamos a cada dia o crescimento da terapia ocupacional - e essa é uma verdade inegável - ela ainda permanece com um certo tom de ser mal compreendida, de que, para entendê-la, é preciso possuir outras sensibilidades, quase que divinatórias. Vários caminhos são tomados nessa direção, em busca sempre da fidelidade e da lealdade à terapia ocupacional. Alguns a apresentam com seus métodos seguros e firmes, bem reconhecidos e legitimados, e em tom professoral afirmam que os males da terapia ocupacional estão nas mãos daqueles que a profanam com seus pensamentos herméticos e filosóficos. Estes são fieis, pois querem a legitimação da terapia ocupacional através da ciência, e têm a difícil tarefa de verificar a normatização das atividades, descobrem as verdades do macramé... Para esses terapeutas ocupacionais, os outros profissionais ditos filosóficos borrariam a profissão com caminhos pouco claros, que não levam a terapia ocupacional para a crista dos saberes médicos homologados pelo conhecimento autoritário e hegemônico.
Do outro lado, os terapeutas filosóficos, espécie de messiânicos, proclamam uma dimensão ontológica para a terapia ocupacional. Uma natureza ocupacional invade nossos pensamentos e estes afirmar que o fazer é condição humana, que organiza os homens, suas sociedades, sua cultura, sua transcendência, sua essencialidade, sua existência. Homens e fazeres tornam-se espécie de ovo e galinha.
Surge, então, uma tensão na terapia ocupacional que é belíssima, belíssima porque a faz fervilhar de pensamentos que ora são diferentes, ora paradoxais, ora excludentes. Com tudo isso, a terapia ocupacional jamais se tornaria estagnada. Há várias seduções: ser mais científica ou ser mais poética. Há ainda aqueles que querem se manter na boa relação entre os dois lados.  Mas dessa forma muito se esgarça na terapia ocupacional, e se ainda permanecemos nela, seguramente é por paixão, uma paixão que nos faz amar e odiar facetas da própria terapia ocupacional.
Sabemos da importância daqueles que querem organizar a terapia ocupacional em pensamentos seguros e precisos, coo se pudessem fazer da atividade um arco de movimento universal, medido por um goniômetro do deus absoluto. Valorizo e dedico minha lealdade a eles. Mas graças a muitas cantorias, algumas nordestinas, a terapia ocupacional se faz também por outros goniômetros mais tortos. Tortos não porque não são precisos, mas porque se entortam precisamente nas distorções dos sonhos. Esses terapeutas ocupacionais são espécie de ontólogos que querem fazer da profissão uma potência para conceituar a vida, fazendo brotar um estilo novo de viver. Já há muito sabemos que a terapia ocupacional mergulha no vale das ontologias (materialismo histórico, existencialismo, esquizo-ocupação, ocupação humana). Talvez pela complexidade e fragilidade de seu objeto, o terapeuta ocupacional deixe de ver a atividade somente como elemento redutor de sintomas e entenda a função do fazer criar realidade humana, e algumas vezes dando sentido à existência. O macramé não é apenas um estimulador de arcos e movimentos, é o tramar da própria vida. A atividade, a ocupação, o fazer humanizam o homem e guardam simples mistérios que se abrem quando o corpo age de forma intensiva. Esses terapeutas ocupacionais ora são patéticos, ora são poéticos, ora são políticos. São porém, sempre sonhadores.Não produzem sonhos para se perderem e delírios de um mundo próprio, mas sonham com novos mundos ao seu lado, a sua frente, consigo mesmos e com os outros. Eles falam na língua de Bachelard, na língua de Nise da Silveira, na língua de Deleuza, na língua de Rui Chamoni, na língua de tantos outros.
Alguns terapeutas ocupacionais são assim: plurais, místicos, jocosos, porque acreditam demasiadamente na vida, querem a vida intensa com todas as suas cores, sons e gestos. Um desses profetas ocupacionais é Luiz Gonzaga, ele é um Leal, leal de nome e de vocação. E é um desses que produzem devaneios diversos. Não porque faz da terapia ocupacional uma precisão, mas ele justamente quer o contrário, fios de imprecisão, para que nesse arco de abertura muitos convites possam ser feitos... e aceitos. É uma quizomba, um encontro de todas as raças, de todas as facções. Jô, Nise, Bastide, tu, eles, nós. Todos estão povoando a alma leal de Gonzaga. Espécie de paternidade acolhedora da diferença e dos diferentes - claro, ele é Terapeuta Ocupacional.
Leal é desses que fazem do quotidiano profissão de viver. Por isso, tudo lhe é muito caro: um som, uma canção, um orixá, um pierrô, uma Nise, um gato, um amigo, uma carta, um encontro. Nada é em vão, tudo traz sentidos múltiplos e na multiplicidade de sentidos é ue o sentido de sua existência se faz. Mais uma vez ovo e galinha. Gonzaga é assim por ser terapeuta ocupacional, ou tornou-se um por ser assim?
Ele, na qualidade de leal, tem a marca da fidelidade. Nise, de certa forma, dizia que os felinos são leais. Eles escolhem bem aqueles que são leais, por isso nossa mãe da terapia ocupacional fez de seus gatos espécie de juízes que escolhiam seus frequentadores em sua casa. Eram os gatos que decidiam quem iria estudar os arquétipos de Jung, as materialidades de Bachelard ou a terapêutica ocupacional nisiana.
Leal é amado por Nise, poi, enquanto felina-mor, gata mestra, seus bugalhos enormes enxergam ontólogos leais.  Ela nos faz pensar então que o nome Leal queda uma profecia, uma sina abençoada com gosto de Nordeste. Que faz a terra branca arder de desejos por nossa profissão.
Obrigado, Luiz, por ser sonoro como Gonzaga e por ser leal como profissão.

Escuto a ti, bem aqui,
ao pé do ouvido.
Fala baixo,
fala manso...
Não é preciso te cansares,
não desgastes teu verbo aberto de nordestino.
Basta pouco mais que meio quilo
de peso de teu som em sol maior quente do agreste
para me recitar teu mantra secreto...
Vai, ensina mais,
cada mistério que há no viver.
Mexe tuas e nossas mãos abertas
para a criação
e não me deixes as rugas vazias de sentido.

- Marcus Vinícius Machado de Almeida
Marquinhus, para os ontólogos
Rio de Janeiro, Maio de 2005

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