quinta-feira, 26 de abril de 2012

O Estatuto da Clínica na Terapia Ocupacional Frente ao desafio da Transdisciplinaridade.

Trata-se de uma série de encontros que aconteceu em Fortaleza, a convite de um grupo de colegas Terapeutas Ocupacionais. Naquela época, as conversas em torno da Transdisciplinaridade começaram a emergir e ganhar forma, através das mais variadas linguagens. E foi movido por esse interesse que esse grupo me convidou para formatar umas conversas e interlocuções em torno da Transdisciplinaridade e a Terapia Ocupacional.
Foi pra mim um grande desafio topar essa parada, mas ao mesmo tempo me abasteci de ira, potência e tesão. Até mesmo porque iria trabalhar com um grupo que sempre me considerou, tinha apresso por mim, disposição para pensarmos juntos. Além do mais era no nordeste do Brasil, em Fortaleza. Tinha a clareza que os nossos encontros se converteriam mesmo em ENCONTROS, e não em EMBATES. Propus um conteúdo programático, sugestões de leituras de textos e livros. E assim partimos para realizarmos as conversações, que hoje atribuo como deliciosas, apaziguadoras, divertidas, confusas, complicadas, difíceis, encabuladas, tímidas... mas absurdamente amorosas. Terminou sendo tudo muito bonito, singelo e adequado. O ano? Não me recordo, imagino que foi em meados da década de 90.
Vejam o que aconteceu nesses encontros todos...

O Estatuto da Clínica na Terapia Ocupacional frente ao desafio da Transdisciplinaridade.

Um Novo Estatuto...

O surgimento de novas formas de percepção e cognição que a linearidade do logos. A repetição de percepções sensoriais incorporando ao vivido, emoções plurais.

Acompanhe seus efeitos:

Basta      escutar      a     Poesia...


A poesia existe nos fatos.
Os casebres de Açafrão e de Ocre nos verdes da favela, sob azul cabralino, são fatos estéticos.

(Oswald de Andrade, manifesto Pau Brasil, 1924)


Para que serve a história?

Nos últimos 15 anos, nas grandes cidades brasileiras seguindo caminhos e segundo ritmos diversos, a Terapia Ocupacional se difundiu e gerou uma cultura ocupacional, através de um processo que se tornou conhecido como um Boom da Terapia Ocupacional.

No entanto, dizer que houve um Boom terapêutico ocupacional não é uma boa resposta para o conjunto complexo de questões envolvidas neste processo.
A exceção de alguns esforços isolados, a noção de Boom é sempre utilizada de modo descritivo, enumerando os diversos domínios da vida social penetrados pela Terapia Ocupacional, ao mesmo tempo em que expressa a perplexidade e a impotência do autor.

Para começar a entender a Terapia Ocupacional no Brasil o imprescindível no momento, não é encontrar as respostas precisas mas antes conseguir formular as perguntas adequadas - e isto de modo algum, pode ser feito só e exclusivamente a partir da Terapia Ocupacional. É assim que a relação entre a Terapia Ocupacional e outros saberes pode se tornar relevante.

Para fazer face as constantes metamorfoses do viver contemporâneo, temos que recorrer ao limite extremo da nossa própria formação.

Esse limite, ao ser tomado como referencial vai possibilitar refazer tudo novamente. Esta ideia se encarna numa prática que acolhe complexidade inerentes ao momento singular do sujeito. A prática orienta a tomada de decisões, em qualquer campo, para catalisar o surgimento de novos mundos, de novo possíveis.

Há pelo menos alguma ideia nova de homem surgindo no horizonte?

A Terapia Ocupacional preserva sua possibilidade de manter-se viva, fértil à sua identidade investigativa à medida que cultiva sua liberdade para questionar-se continuamente abrindo espaço para movimentos de expansão e renovação criativa em si mesma e no mundo que a rodeia.

Ao voltar-se para as questões TRANSDISCIPLINARES insere-se na intersecção dos vínculos do individuo com suas realidades internas e externas, humanizando-as e por sua vez constituindo e sendo constituída por sua interface com a sociedade em seus múltiplos vértices.

Passa uma borboleta por diante de
mim
E pela primeira vez no universo eu
reparo
Que as borboletas não tem cor nem
movimento
Assim como as flores não tem perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move...

(Fernando Pessoa)



Conversas Terapêuticas Ocupacionais

*O sujeito como fábula
*A teoria alimenta o caso mas não faz o caso
*Isso não é Terapia Ocupacional

Experiência Clínica e Estética

*Para além dos objetos
*Os objetos e seus espaços

O desenho, uma lógica da origem

*Squiggle "Garabato" Grupal
*Vínculo Grupo - Instituição
*Setting, Holding, Continente, Cenografia
*Cenas ocupacionais

Um espaço para o acontecer do tempo

*Um potencial espaço
*O vazio e o pleno
*Fragmento
*Labirinto
*Rizoma

De quem é a resistência, afinal?

Identifique-se... pergunte e pergunte-se...

Intercessor: um conceito ferramenta cheio de força e crítica.








terça-feira, 24 de abril de 2012

SOMOS TODOS ANTROPÓFAGOS?


Em nossa época, repleta de matanças e injustiças cometidas em escala universal, muitos artistas têm revivido, por intermédio da parábola antropofágica, as agudas reflexões com que Montaigne e Voltaire tentaram desmentir a presunçosa superioridade do europeu sobre o selvagem de outros continentes.
“Vou comer você a beijos”. Essa afirmação, cochichada aos ouvidos do parceiro amoroso e que parece destinada a inaugurar os transportes de um doce frenesi, é também, para os psicanalistas, uma fonte inesgotável de especulações sobre os paradoxos do inconsciente. E somada a outras analogias usuais do vocabulário galante – “devorador”, “voraz”, “apetitosa”, “gostosa” – insinua uma inquietante afinidade entre o erotismo e uma gastronomia pouco convencional. Assim, pelo menos, entendeu Levi-Strauss, quando definiu a antropofagia como um “incesto alimentar”.
A tentação de urdir teorias sobre a origem oculta da antropofagia tem estimulado muitos estudiosos, incitando-os a aventurar-se mais a frente da interpretação simplista do colóquio sexual. Sgmund Freud, por exemplo, tratou de reconstruir, em  Totem e Tabu, o episódio mítico durante o qual os irmãos, ciumentos do pai, que era dono de todas as mulheres, o mataram e o devoraram, colocando assim fim ao regime patriarcal da tribo. Aquela incorporação permitiu-lhes, sempre a juízo de Freud, apoderar-se do modelo paterno e identificar-se com ele. André Green, autor do ensaio Le cannibalisme: realité ou fantasme agi: acha que a força notável da hipótese de Freu reside precisamente no fato  de conjugar múltiplos temas fascinantes: sacrifício, parricídio, incesto (e sexualidade em geral), canibalismo, identificação, introjecção do superego e de suas proibições.

Primeiros os parentes

A hipótese de Freud, embora cativante, não é corroborada por nenhum testemunho histórico e, escreve Green, apoia-se mais na fantasia e no mito do que na ciência. Gira, acrescenta o mesmo autor, em torno de uma interpretação sociológica do totemismo, enxertada num tronco pseudobiológico.
É certo que o canibalismo é bastante comum entre os animais: muitos peixes, se comem uns aos outros; os ursos, os javalis, os coelhos, as cobaias e sobretudo os porcos devoram, muitas vezes, suas crias. Algumas espécies começam por ingerir a placenta, depois o cordão umbilical e finalmente o recém-nascido. Ao homem sempre pareceu assustador, aliás, o costume daquelas aranhas fêmeas, que matam e devoram o macho apenas terminado o ato sexual. Mas nada autoriza a forjar paralelismo fantasiosos entre esses animais e o homem, nem a supor que os antepassados da espécie humana ou os primeiros homens se comiam entre si. Aparentemente a antropofagia não era então, como não é agora, um traço comum a todos os povos aos quais chamamos selvagens. Quando apareceu na terra, numa data imprecisa, distintas raças a praticaram em épocas e lugares igualmente diferentes.
A palavra de origem grega antropofagia, que figura em escrito da era pré-cristã, serve ao menos para inferir que o costume não era desconhecido entre os antigos e que, além disso tinha suficiente difusão, uma vez que vários autores a mencionavam em suas obras literárias. Polifemo, o ciclope de A odisseia, é um dos primeiros antropófagos da ficção épica. Naturalmente horrorizados com as notícias que lhes chegavam de terras “bárbaras”, os antigos utilizaram a antropofagia para dramatizar alguns episódios de sua mitologia. Cronos, um deus polífero, devorava seus filhos porque temia que estes lhe arrebatassem o poder e a vida. Atreo, rei de Micenas, matou a Tântalo e Plistenes, filhos de seu irmão Tieste e logrou através de enganos, que este os comesse sob aparatos apetitosos manjares. Progne, filha do rei de Atenas, perpetrou o mesmo embuste contra seu esposo, Tereu, para vingar-se dele, que havia violado Filomena, irmã de Progne.
Os cronistas dos tempos pré-cristãos estavam atentos às manifestações de antropofagia e se ocupavam de registrá-las, como fatos curiosos, em seus livros. Empédocles descreve, no fragmento VII das Purificações, uma matança, na qual seres unidos por estreitos laços de parentescos “devoravam uma carne que era deles”, sob o império da discórdia. Heródoto fala dos masagetas, um povo de costumes bastante peculiares. “Cada um casa-se com uma mulher, mas o uso das mulheres casadas é comum para todos”, explica atônito Heródoto, acrescentando em seguida: “Se alguém fica caduco, reúnem-se todos os parentes, matando-o em seguida, junto com várias reses, sendo feito com a carne dos mesmos (o velho e os bois) um grande banquete. Esse modo de sair da vida é considerado entre eles como uma felicidade extrema. Se alguém, entretanto morre de doença, não se convida ninguém para comer sua carne, que é enterrada, com pesar por parte de todos, pois a pessoa em questão não conseguiu chegar ao ponto de ser imolada.
As referências ao canibalismo aparecem, igualmente, nos livros do Antigo Testamento, como uma ferramenta retórica apropriada para descrever casos limites e enunciar prognósticos terríveis. “Comerás o fruto de teu ventre, a carne de teus filhos e de tuas filhas que Jehová, teu Deus, te deu, no lugar e com o apuro com que te angustiará teu inimigo”, se lê no Deuteronômio 28:53, versículo que encabeça uma série de vaticínios relacionados com a generalização da antropofagia. Segundo Reis II, 6:25-29, durante o sítio de Samaria “houve grande fome” e duas mulheres concordaram em comer sucessivamente seus respectivos filhos. Uma delas cumpriu sua parte no pacto, mas no dia seguinte, a outra ocultou seu rebento. Voltaire ironiza essa passagem, escrevendo em seu Dicionário Filosófico: “Contudo é menos verossímil que duas mulheres não tivessem, com uma criança, o bastante para se alimentar um par de dias; seria suficiente até para quatro”. “O que se deve crer, adverte Voltaire, é que pais e mães devem ter comido os próprios filhos durante o sítio de Samaria, como foi predito no Deuteronômio.” Em Jeremias 19:9 repetem-se os maus augúrios: “E os farei comer a carne de seus filhos e a carne de suas filhas e cada um comerá a carne de seu amigo”. As passagens de Lamentações 4:10 e Ezequiel 5:10 não são, afinal, mais do que variações sobre este mesmo tema.
Ainda no Dicionário Filosófico, o gênio cáustico de Voltaire se estende sobre a questão. Citando Júlio Cesar, afirma que os primitivos gauleses não estavam livres de reproche e que os defensores da cidade sitiada de Alexia decidiram por pluralidade de votos “comerem todas as crianças, umas atrás das outras”, pois “desse modo as forças dos combatentes não ficariam debilitadas”. Transcreve também palavras de São Gerônimo: “Vi escoceses nas Gálias, que, podendo alimentar-se nos bosques com a carne dos porcos do mato e outros animais, preferiam cortar as nádegas dos homens jovens e os peitos das donzelas, sendo esses seus alimentos favoritos”. Acrescenta Voltaire: “Pode-se discutir com um padre na Igreja sobre o que se ouviu dizer, mas sobre o que se viu, com os próprios olhos, não se deve discutir, porque seguindo tal sistema, o mais seguro é desconfiar de tudo, até daquilo que se viu.”

Afinal, o que é barbarismo?

Adiantando-se aos antropólogos modernos, Voltaire vislumbrou a importância que tem a diversidade de pautas culturais quando se trata de julgar os costumes alheios. Em 1731, o filósofo conversou em Fontanebleau com uma senhora de Mississipe, “a qual perguntei se já havia alguma vez comido carne humana, ao que ela, francamente me contestou que sim... Notando que fiquei assombrado com sua resposta, defendeu seu proceder, dizendo-me que era preferível comer o inimigo morto, do que deixar que fosse devorado pelas feras. Os vencedores deveriam ter essa preferência...” E acrescenta Voltaire: “Nós matamos nas batalhas os nossos inimigos e, pela mais insignificante recompensa, proporcionamos alimentos aos corvos e aos vermes, sendo este sim um verdadeiro crime. Pois ao certo tanto faz ser devorado por um soldado, corvo ou carnívoro. Dessa forma estamos respeitando mais os mortos que aos vivos, quando deveríamos respeitar a ambos de igual forma.”
Voltaire parecia guiar-se, em relação à diversidade cultural, pela visão crítica de seu predecessor, Miguel de Montaigne, que escreveu no século XVI: “Não deixo de reconhecer a barbárie e o horror à ideia de se comer o inimigo, mas o que me surpreende é que compreendamos e vejamos suas faltas, mas sejamos cegos para reconhecer as nossas. Creio ser mais bárbaro comer um homem vivo do que comê-lo morto, desgarrar, por meio de suplícios e tormentos, o corpo ainda cheio de vida, assá-lo lentamente para logo depois jogá-lo aos cães e aos porcos; coisas como essas não lemos em nenhum livro, mas presenciamos recentemente. E não se tratava de antigos inimigos, mas sim de vizinhos e concidadãos, com a circunstância agravante de que paras se cometer tais atrocidades, valeu-se do pretexto da piedade e da religião. Isso eu considero ainda mais bárbaro do que assar o corpo de um homem morto e depois comê-lo”.
Sintomaticamente, o grande interesse despertado pela antropofagia na Europa, nos tempos de Montaigne, foi produto dos rumores que circulavam sobre os costumes dos aborígenes americanos, rumores que ajudaram a estender um véu de esquecimento sobre os antecedentes que tal prática tinha no Velho Mundo. Cristóvão Colombo foi o primeiro que colocou em marcha, talvez inconscientemente, os mecanismos de ocultamento: quando chegou aos seus ouvidos o fato de que os habitantes, designou a todos os consumidores de carne humana com o nome de “canibais”. Imediatamente os europeus legaram ao esquecimento a palavra “antropofagia”, cuja raiz grega trazia incômodas recordações sobre as práticas de sua antiga civilização, e passaram a utilizar o termo “canibalismo” como para ratificar que a barbárie só podia provir de outras latitudes.

Boas maneiras

Acontece que, como adverte Jean Pouillon em seu estudo sobre “Maneiras à mesa, maneiras ao leito, maneiras de linguagem”, a miúde os antropófagos se sentem ofendidos quando são catalogados como tais. “Os canibais, explica Pouillon, são sempre os outros, e esses outros são precisamente os “selvagens”, os que não conhecem as boas maneiras”. Os fatalekas do arquipélago das ilhas de Salomão “opõem seu canibalismo institucional... ao canibalismo selvagem... O mito fundador da célebre associação política das “Cinco Nações” iroquesas narra como os homens passaram do canibalismo selvagem, monstruoso, ao canibalismo institucionalizado, socializado. Os guayaquies não necessitam recorrer aos mitos para condenar o canibalismo: comem seus próprios mortos, e isso é considerado correto, mas seus vizinhos, que matam os inimigos e os comem, dão um exemplo do que é necessário precaver-se. Eles sim são verdadeiros canibais.”.
Semelhantes diferenciações, que nos parecem absurdas soa possíveis em razão da quantidade de normas dietéticas, tabus e preceitos rituais que rodeiam a prática da antropofagia. “O canibalismo, sublinha Pouillon, é um modo de pensar mais do que uma forma de comer”. Os enxocanibais, continua Pouillon, não comem seus defuntos, enquanto os endocanibais não comem os estranhos. Há antropófagos que comem exclusivamente pessoas do mesmo sexo masculino e outros que não fazem qualquer discriminação. O consumo pode ser total ou parcial. A distribuição das partes pode ser aleatória ou estar regulamentada. Há tribos que inclusive autorizam a própria vítima a escolher, antes de ser morta, entre seus parentes, aqueles que poderão saborear a sua carne.
A prática pode estar generalizada ou circunscrita a determinadas categorias de indivíduos: nas ilhas Fidji, por exemplo, os únicos autorizados a praticar a antropofagia são os sacerdotes e chefes, e a carne humana só pode ser tocada com garfos especiais, enquanto os alimentos comuns são comidos com as mãos.
O trânsito do canibalismo selvagem ao canibalismo selvagem ao canibalismo mítico e socializado também se manifesta na preparação culinária e nos hábitos de mesa. Na primeira etapa, o indivíduo procede à ingestão solitária de um defunto, cru, e não o comparte com outros comensais. Na segunda etapa aparecem as regras e os ritos, em geral muito complexos, governam o consumo de um cadáver cozido. Geralmente o aproveitamento é total sendo desdenhados apenas os ossos. Os yanomani são uma exceção, porque deixam apodrecer a carne do cadáver, para depois limpar e moer os ossos, que são comidos misturados com purê de bananas.

Comunhão íntima

O estudioso dinamarquês Kaj Birket-Smith sustenta, em Vida e História das culturas, que as origens da antropofagia se remontam ao ingresso do homem na economia agrícola. “Do mesmo modo que os caçadores se identificam com o animal totêmico, escreve Birket-Smith, os agricultores, por sua vez, identificam-se com as plantas, e à ideia de que a fruta tragada pela terra continua, apesar de tudo, vivendo, surge a ideia da antropofagia. Em nenhum outro escalão cultural aparece em igual medida, como nos mais antigos agricultores, a prática da canibalismo, a caça às cabeças, os sacrifícios humanos em massa e as extravagâncias sexuais”.
Do ponto de vista dos agricultores primitivos, o ser humano apenas tem sua vida assegurada quando comparte plenamente sino das plantas. Come-se a planta, e portanto é preciso comer também o homem. A essência intrínseca do canibalismo, que reside no desejo de unificar-se ao morto, fica clara quando oficiar-se comer seus parentes mortos. Com isso, não apenas consegue renovar suas foras vitais próprias, mas também que os pais continuem vivendo em seus descendentes, a estirpe nas crianças, no eterno ciclo de vida e morte. Ao matar os anciãos, o canibal procede em consideração a eles próprios antes que tenham esgotado sua força vital. Come a carne do velho e do seu nome para assegurar-lhe a vida depois da morte, incorporando-o dessa estranha maneira.
Birket-Smith afirma que “a mesma ideia que fundamenta o canibalismo em sua forma originária, voltamos a encontrar no sacramento da comunhão, que em seus primórdios foi um ato puramente mágico. A divindade apresenta-se em forma humana ou animal, e a comunidade participa na essência da divindade, comendo a carne dela. No México adornavam a um jovem esbelto com a vestimenta de deus Tzcatlipoca, desposavam-no com quatro moças, que levavam o nome de quatro deusas, rodeavam-no de luxo faustoso, e lhe permitiam gozar durante um ano inteiro de todas as honras que correspondiam a sua alta dignidade. Mas, ao transcorrer esse lapso de tempo, o levavam a pedra de sacrifício, onde um sacerdote, armado de uma faca sagrada, lhe abria o peito para arrancar-he o coração. O corpo morto era imediatamente comido... Muito mais tarde dá-se então um sentido simbólico ao sacramento da comunhão, o da união espiritual com a divindade.”
São esses elementos atávicos que floresceram novamente quando um dos sobreviventes do avvião uruguaio, que caiu na cordilheira dos Andes, em Outubro de 1972, Alfredo Delgado, disse numa entrevista coletiva à imprensa: “Tinha chegado o momento no qual já não tínhamos qualquer alimento, então pensamos: Se Jesus, em sua última ceia, repartiu seu corpo e seu sangue a todos os apóstolos, estava aí nos dando a entender que nós deveríamos fazer o mesmo. E tomamos seu corpo e seu sangue, que se haviam encarnado. E isso, que foi uma comunhão íntima entre todos nós, ajudou-nos a subsistir. E foi uma entrega de cada um”. Como se sabe, Delgado estava se referindo ao caso de antropofagia por necessidade mais comentado dos últimos tempos.
A antropofagia por necessidade é, isso é claro, a que perdurou com mais força entre os grupos que, dentro da relatividade das pautas culturais, definimos como civilizados. No Antigo Testamento abundam as referências a essa compulsão. Em seu livro Guerra dos Judeus, Flávio Josefo narra que Maria, filha de Eleazar, matou e comeu seu filho durante o cerco de Jerusalém por Tito. As regras de guerra do rei Afonso, o Sábio, também admitem a possibilidade do pai comer o filho “se estivesse em tal estado e fome e não tivesse qualquer outra maneira de saciar essa sua necessidade”. Os episódios de antropofagia, aliás, foram comuns durante o cerco de Paris, em 1590, e durante a grande fome de Argel, em 1868.
Em 1884, registrou-se um caso de canibalismo que haveria de enriquecer a jurisprudência: os náufragos do yate La Mignonette, que estavam há vários dias vagando pelo mar num bote salva-vida, sem ter o que comer e o que beber, terminaram matando um gumete de 17 anos, que estava doente por ter bebido água do mar. Beberam seu sangue e alimentaram-se de sua carne durante vários dias, até que foram vistos por um barco alemão que os içou a bordo. Os três tripulantes do barco salva-vidas foram julgados em Londres, tendo o tribunal condenado à morte a dois deles, absolvendo o terceiro que, embora também se alimentara de carne humana houvera sido contra a execução do grumete. A rainha Vitória posteriormente comutou a pena de morte por seis meses de prisão.
Poucos detectaram nesse momento uma coincidência notável. Exatamente meio século antes a mente atormentada de Edgar Allan Poe havia alinhavado, em Aventuras de Artur Gordon Pym, uma fantasia macabra que pressagiava quase ao pé da letra os fatos de La Mignonetre. Gordon Pym e os outros tripulantes do baleeiro Grampus, que navegava a esmo, elegem, por sorteio quem irá lhes servir de alimento. “Não insistirei a respeito do terrível festim que se seguiu – lê-se na novela – basta dizer que, depois de haver apaziguado até certo ponto, com sangue da vítima, a abrasadora sede que nos consumia, atiramos ao mar, por comum acordo, a cabeça, as mãos, os pés e as vísceras, e comemos o resto do corpo, pedaço por pedaço, durante os quatro memoráveis dias que se seguiram.”
A antropofagia por necessidade é, obviamente, a que a sociedade tolera com mais benevolência. Ao ter-se notícia do acontecimento na cordilheira dos Andes, no final de 1972, o teólogo Gino Concetti escreveu no L’Osservotore Romano que “se é admissível que para sobreviver pode-se enxertar qualquer órgão ou parte do corpo de um morte em um ser vivo, não há razão por que, num casa extremo, os homens não haveriam de servir de todo o corpo de um morto, a fim de se salvar. O fato apenas tem uma aparência de canibalismo. A necessidade de sobreviver tira todo o aspecto negativo deste comportamento.

Arte agressiva

Os estudiosos admitem que é impossível traçar linhas divisórias rígidas entre diversas origens e motivações dos atos antropofágicos e que estes resultam de um intrincado entrecruzamento de fatores desencadeantes. Há, entretanto, traços sobressalentes que permitem esboçar uma classificação empírica elementar.
Embora pareça paradoxal, pode-se falar de antropofagia por afeto, que é aquela que Heródoto atribui aos massagetas.  Os binderwurs da Índia Central matavam e comiam os fracos e os anciãos “pensando ser este um ato de misericórdia, grato à deusa Kali”. Os tangara levam seus mortos consigo e, cada vês que se sentem tristes pela morte de seus entes queridos, comem um pouco de sua carne, até restar apenas os ossos. Lyden descreve um costume canibalesco que tem toda a aparência de uma cerimônia muito piedosa. Os anciãos e doentes se oferecem a seus descendentes para que estes os comam. A vítima sobe numa árvore, em torno da qual se reúne sua família entoando um hino fúnebre: “A estação chegou; o fruto está maduro e deve cair.” A vítima desce e é executada e ingerida em um solene banquete.
No polo oposto encontra-se, presumivelmente a antropofagia por ódio e por vingança. “Que  a ira e a raiva me induzam a devorar em pedaços, cortados e cru, o corpo do malvado, antes que mais danos ele produza”, diz uma famosa imprecação de Aquiles. As tribos ferozes da Nova Caledônia apenas consideram que a vingança está completa quando devoram seus inimigos mortos. Os nativos de Samoa também praticavam a antropofagia movidos pelo ódio, e seu pior insulto era: “Assarei você”. Inclusive depois de renunciar ao canibalismo, os samoanos obrigavam seus cativos a oferecer-lhes tochas acessas e a recitar a seguinte súplica: “Mate-nos e cozinhe-nos quando quiser”. Alguns estudiosos de nossos índios brasileiros chegam a afirmar que os tupis comiam seus inimigos e criavam os filhos desses para comê-los quando completassem 14 anos.
O mais chocante de todos é, sem dúvida, o canibalismo por gula. Birket-Smith conta que para os mangabetus, que vivem no limite entre o Congo e o Sudão, “a carne humana representa uma guloseima que se vende nos mercados, bem apresentada e envolta em falhas frescas”. Cieza de León espantou-se porque os índios da Colômbia, catalogados como os mais ferozes canibais da America do Sul, tinham especial prazer em matar as mulheres grávidas, como propósito de comer-lhes o embrião, cuja carne muito lhes agradava. Jean De Lery escreveu a respeito dos tupis: “Todos confessam que a carne é maravilhosamente saborosa e delicada”. A carne das anciãs era, acima de qualquer outra, seu manjar predileto. Entretanto, a gula não era a única nem a principal motivação dos tupis, assevera Lery. O que mais os interessava, quando roíam os mortos até os ossos, era “espantar os vivos”.
“Espantar os vivos” é também o objetivo que pretende alcançar a cíclica reiteração do tema antropofágico na arte. Basta recordar, por exemplo, as alucinantes imagens que Goya pintou em dois de seus quadros intitulados Os canibais. A literatura e o drama são outros dois gêneros nos quais a antropofagia assoma como uma alegoria ideal para transmitir mensagem de castigos exemplares. Esta técnica intimidatória repete-se em várias histórias infantis, como a de Hansel e Gretel, que tem suas raízes no folklore tradicional, ou em lendas famosas, como Tito Andrônico, a tragédia de Shakespeare, que relata a história mitológica do culpado que como, sem saber, um prato preparado com a carne de seus próprios filhos.
Foi Jonathan Swift quem levou até as últimas consequências o emprego simbólico e moralizador da antropofagia, num desbordamento exasperante de humor negro. Com a finalidade de sacudir a sensibilidade de seus contemporâneos e de comunicar-lhes a magnitude tétrica da pobreza e fome que assolavam o Grã-Bretanha por volta de 1700, Swift redigiu seu panfleto satírico intitulado Uma Modesta Proposição, no qual, depois de descrever a proliferação de “mendigas seguidas por três, quatro ou seis crianças, todas farrapos”, que importunam os passantes pedindo esmolas, dá como certo que “todos estão de acordo que este prodigioso número de filhos, nos braços às costas ou seguindo suas mães e frequentemente seus pais é, na atual situação deplorável do Reino, outra grande injustiça”.
O que Swift aconselha, pois, humildemente, é que as mães amamentem seus filhos durante um ano, coisa que podem fazer a baixo custo, e que em seguida o Estado separe um lote de cem mil crianças de um ano e as ofereça “em venda às pessoas de qualidade e fortuna de todo o reino. Recomenda também que sempre a mãe lhes permita mamar copiosamente no último mês, a fim de tornar as crianças gordinhas e tenras para uma boa mesa. Uma criança servirá bem para a confecção de dois pratos quando se tem amigos convidados. Quando a família come sozinha, o quarto dianteiro bastará para se fazer um prato razoável, que temperado com um pouco de pimenta e as, e bem fervido, poderá durar até quatro dias, principalmente no inverno... Suponho que tal manjar custará um pouco caro – acrescenta intencionalmente Swift, e por tanto muito adequado para os abonados que, como já devoraram a maioria dos pais, parecem reunir as melhores condições para aspirar também os filhos”.
Também o Marquês de Sade não perdeu a oportunidade de introduzir a antropofagia em seu nutrido catálogo de aberrações. “Meus amigos – escreveu em Julieta – já os preveni que aqui só nos alimentamos de carne humana; todos os pratos aqui apresentados foram preparados com ela. -  Provaremos, contestou Sbrigan; as repugnâncias são formas de absurdo: são defeitos criados pelo hábito; todas as comidas feitas para o sustento do homem, todas, nos são oferecidas pela natureza para essa finalidade e não há qualquer diferença entre comer homem ou frango. Enquanto dizia isso, meu marido enterrou o garfo num pedaço de criança assada, que lhe pareceu bem ao ponto, e colocando pelo menos meio quilo sobre seu prato, o devorou em poucos instantes. Eu o imitei...”
Não é estranho, com semelhantes antecedentes, que em nossa época, repleta de matanças e injustiças que se cometem em escala universal, muitos artistas e sobretudo cineastas, tenham revivido, por intermédio da parábola antropofágica, as agudas reflexões com que Montaigne e Voltaire tentaram desmentir a pretensiosa superioridade do europeu sobre o selvagem. As agressivas cenas dos filmes como A Pocilga (Piero Paolo Pasolini), Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade), Week-End (Jean Luc Godard) refletem, segundo André Green, “a vontade de interpretar a violência típica de nossas sociedades como uma prolongação apenas modificada de uma relação canibalística”.
Teoricamente a antropofagia habitual está restrita, na atualidade, a algumas tribos americanas isoladas e aos habitantes de comarcas da África equatorial e central, a algumas ilhas do arquipélago Malaio e Melanésia e de zonas remotas da Austrália. Mas, é possível que tal enumeração seja equívoca e que o homem civilizado esteja tão longe de ter superado sua antropofagia como o estava aquele chefe de tribo que, consultado por um explorador, respondeu-lhes: “não, claro que aqui não há mais canibais. Ontem comemos o último”.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Por uma Terapia Ocupacional humanamente útil.


    As vezes acredito que pensamos, na Terapia Ocupacional, como alguns pensadores pensam a filosofia. Ou seja, como é que se poderia fazer tarefa de filósofo, se de novo se perdesse aquilo que funcionou como substituto de Deus? Seja o pensamento, a razão, seja a linguaguem esse último tour du force para encontrar esse ponto absoluto que garantirá o verdadeiro conhecimento. O que acontece, porém penso aqui com Rorty -, é que o mundo é indiferente a isso. Com ou sem o a priori da religião, com ou sem a filosofia, com ou sem Terapia Ocupacional as pessoas continuam interagindo. Na verdade é um modo de discurso, um jogo de linguaguem, que não explica nem mais nem menos a vida coletiva. De forma que para mim atualmente a questão é: por que acredito na Terapia Ocupacional? Porque com as tarefas que me dou, com os enigmas que pretendo solucionar, com os problemas com que me defronto, acho que a Terapia Ocupacional é infinitamente superior a outras explicações e agires.
    Agora, se eu continuar usá-la e for se desgastando enquanto eficácia, potência, vigor e intensidade, se for perdendo potencial ou o poder de ser humanamente útil, adeus Terapia Ocupacional. Para mim, Terapeuta Ocupacional é um conjunto de pessoas que praticam a Terapia Ocupacional através de variadas vertentes entre as quais a clínica e a transmissão, e operam dentro de uma tradição de solução de enigmas, construção de nexos, que tem uma formação que passa pelo conhecimento através de abstrações, pelas encucações de normas institucionais e normas éticas de comportamento, e pelo aprendizado de resoluções de casos práticos de exemplos constatados.
    Quem conhecer uma outra essência que me diga, por que eu não conheço. O que distingue o Terapeuta Ocupacional é que ele lida com situações problemas que a Terapia Ocupacional foi uma das primeiras a se interessar por coisas relevantes de grandes interesse humano, problemas que permaneceram de sua alçada até que um outro discurso proponha uma melhor ideia sobre eles, ou até que a cultura venha desenvesti-las. Acho que com os problemas humanos assim como com problemas terapêuticos ocupacionais, acontece o que Wittengnstein dizia dos problemas filosóficos: não são resolvidos - são abandonados. E no tocante a demanda da Terapia Ocupacional para onde ela aponta?
    Não sei se saberia dizer muito sobre isso porque acredito que há outros colegas que estão mais dedicados a pensar essa questão da difusão da Terapia Ocupacional e da sua articulação com o social brasileiro.
    Ao me ver, uma das coisas que faz a Terapia Ocupacional ter muita influência e penetração é o fato de ser uma entre tantas a ocupar dentro do campo do saber, um discurso cuja preocupação é o seu endereçamento ao sujeito.
    A questão da subjetividade queiramos ou não, sempre foi algo que esteve no bojo das práticas ocupacionais. Não adianta você dizer: o individuo se divide em subjetividade de classe e subjetividade de extratos culturais. Isto pode ser eficiente e plausível num certo nível, mas no nível da orientação cotidiana tem uma eficiência mínima. É claro que, com a Terapia Ocupacional, os sujeitos passam a dispor de um outro instrumento para poderem pensar a si mesmo de maneira mais adequada às suas finalidades.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

No rastro de Guimarães Rosa.

A obra do escritor mineiro que reinventou o Sertão é um marco na literatura mundial. Sua vida, uma notável sucessão de aventuras, sons, matutice, sabedoria e coragem.Ele cresceu ouvindo todo tipo de histórias, reais ou não. O universo de Guimarães Rosa impressionou o mundo. Ensaistas estrangeiros estudavam sua obra e chegaram a apontar seu nome para o Prêmio Nobel, mas quem mais conseguiu explicá-lo foi ele mesmo: "Eu carrego um Sertão dentro de mim, e o mundo no qual eu vivo é também um Sertão. As aventuras não têm preço, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras, para mim são a minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito, o momento não conta". Ele adiou, como pôde, sua imortalidade. Eleito por unanimidade para a Academia Brasileira de Letras, inventou desculpas para adiar sua posse por quatro anos seguidos. Tinha ano que viajava, em outro dizia que estava meio mal de saúde, às vezes alegava falta de tempo. Apenas a seus íntimos contava sua superstição: "Se tomar posse, eu morro", dizia, com um sorriso desconfiado. Por fim, abraçou seu destino de imortal. Em 16 de Novembro de 1967, tomou posse na Academia Brasileira de Letras, com um discurso embargado, emotivo, com lágrimas escorrendo pelo rosto em sua última fala. "As pessoas não morrem, ficam encantadas". Seria pressentimento? Três dias depois, em 19/11/1967, morre subitamente em seu apartamento em Copacabana. O menino miudinho observava o mundo, e contara histórias até o fim. "O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem", disse sobre a vida. Mais três dias se passam, e o poeta Carlos Drummond de Andrade traduz, no poema "Um Chamado João", a consternação que a morte prematura do grande escritor (com apenas 59 anos) causou e ainda causa para os que transpõem as barreiras da linguagem e se deliciam com sua obra.

Revisitar Grande Sertão Veredas é prá mim uma grande necessidade, uma auto - intimação. Cada vez que adentro as páginas do livro, vou colhendo versos como quem colhe flores. Divido com vocês o que venho colhendo de Guimarães Rosa esses anos todos, a cada leitura deste lindo livro, que verdadeiramente é prá mim, uma espécie de Biblia. São anotações distribuidas em vários cadernos, em agendas, em papéis soltos que vou encontrando. Destaques e apontamentos nos próprios livros, que de tão manuseados que ficam, já possuo mais de cinco exemplares.

Viver é negócio muito perigoso...

Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...

(...) requeriam era sarar, não desejavam céu nenhum.

(...) é todos contra os acasos.

Despedir dá febre.

(...) no viver tudo cabe.

Viver... O senhor já sabe: viver é etcétera...

Amanheci minha aurora

Todo amor não é uma espécie de comparação?

Um ainda não é um: quando ainda faz parte de todos.

Homem foi feito para o sozinho?

Não é medo não, amigos, é o trivial do corpo!

(...) a morte é para os que morrem. Será?

A liberdade é assim, movimentação.

A gente só sabe bem aquilo que não entende.

Ser forte é parar quieto; permanecer.

O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.

O mundo, meus filhos, é longe daqui!

O mundo ali tinha de se recomeçar...

Agora é agora...

Sede é a situação que é uma só, mesmo, humana de todos.

Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não, não sabe!

Deus existe mesmo que não há.

(...) o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.

(...) eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.

Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta.
Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim um gole de um pensamento - estralo de ouro: pedrinha de ouro. E conheci o que é socorro.

Qualquer amor já um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.

Esquecer, para mim, é quase igual a perder dinheiro.

Agora, eu, eu sei como tudo é: as coisas que acontecem, é porque já estavam ficadas prontas, noutro ar, no sabugo da unha; e com efeito tudo grátis quando sucede, no reles do momento.

Eu sempre sabia: um dia, o medo consegue subir, faz oco no ânimo do mais valente qualquer.

De mim, conto. Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso?

O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.
Aquele dia era uma véspera.

A calamidade de quente. E o esbraseado, o estufo, a dôr do calor em todos os corpos que a gente tem.

Viver é um descuido prosseguido

O senhor deve ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a baboseira, dum tranque de jumento formam tufão de ventania. Por gosto de rebuliço.

O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade de sofrente.

Esta vida está cheia de ocultos caminhos, Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá.

Gostava e não gostava. Sei, sei que, no meu, eu gostava, permanecente. Mas a natureza da gente é muito segundas-e-sábados. Tem dia e noite, versáseis, em amizade de amor.

Coração mistura amores. Tudo cabe.

Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado.

A gente tem de se sair do Sertão! Mas só se sai do Sertão é tomando conta dele a dentro...

Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o bêco para a liberdade se fazer. Sou um homem ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é coisa terrível? Lengalenga. Fomos, fomos.

Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total.

A opinião das outras pessoas vai se escorrendo delas, sorrateira, e se mescla aos tantos, mesmo sem gente saber, com a maneira de ideia da gente!

- Mas a paz não é boa? Então, como é que ela enjoa, assim mesmo? - Natureza da gente, mal completada...

(...) eu acho que o enjôo da paz será também algum outro medo da guerra...

Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia.

Ficar calado é que é falar nos mortos...

O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão. O senhor ouvindo o seguinte, me entende.

(...) preto é preto? branco é branco? Ou: quando é que a velhice começa, surgindo de dentro da mocidade.

Mas liberdade - aposto - ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro das grandes prisões.

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. o que ela quer da gente é coragem.

Tivesse medo? O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem. E, enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam - o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo aos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu - o que quero é sobrequero - : é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim!

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.

Posso me esconder de mim?...

Sorte é isto. Merecer e ter...

O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo.

(...) Só quando se tem rio fundo, ou cava de buraco, é que a gente por riba  põe ponte...

(...) gostar exato das pessoas, a gente só gosta, mesmo, puro, é sem se conhecer demais socialmente...

E glose: manter firme uma opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão grande, é dificultoso.

Eu estou depois das tempestades.

Enfim, cada um com o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniões...

(...) o Liso do Sussuarão concebida silêncio, e produzia uma maldade - feito pessoa!

Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo!

Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suar perdas e colheitas.

O que é que uma pessoa é, assim por detrás dos buracos dos ouvidos dos olhos?

Um bom entendedor, num bando, faz muita necessidade.

Somente com alegria é que a gente realiza bem - mesmo até as tristes ações.

O amor só mente para dizer maior verdade.

Eu sei: quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade...

Tinha medo não. Tinha era cansaço da esperança.

Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balanço, de se remexerem nos lugares. O que falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem são. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado. Se eu fosse filho de mais ação, e menos ideia, isso sim, tinha escapulido, calado, no estar da noite (...)

O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver - não é? - é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é o que é o viver, mesmo.

Meu espírito era uma coceira enorme . Como eu ia poder contra esse vapor de mal, que parecia entrado dentro de mim, pesando em meu estômago e apertando minha largura de respirar? Aí eu carecia de negar pouso a ele. A nega. Eu quis! Eu quis?

O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de ideia e saudade de coração...

Era quase noite. Reunidos em volta, ajoelhados, a gente segurava uns couros abertos, para proteger a morte dele. Medeiro Vaz -  o rei dos gerais - ; como era que um daquele podia se acabar?! A água caía, às despejadas, escorria nas caras da gente, em fios pingos. Debruçando por debaixo dos couros, podia-se ver o fim que a alma obtém corpo.

Perto de muita água, tudo é feliz.

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. isso que me alegra, montão.

(...) é hora dum bom tiroteiamento em paz (...)

(...) Visita, aqui em casa, comigo, é por três dias!

Uma tristeza que até agora alegra.

Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.

(...) eu gosto de todos, só curtindo desprezo e desgosto por minha mesma antiga pessoa.

A linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. isto significa que como escritor devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanha de cinzas.

João Guimarães Rosa

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Máquinas Desejantes

As Máquinas Desejantes
Por: Gonzaga Leal
Ano 1992 


Isto funciona em toda parte, ás vezes sem parar, às vezes descontínuo . Isto respira, isto esquenta, isto come... Em toda parte são máquinas, máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões. Uma máquina - órgão é ligada em uma máquina - fonte: uma emite um fluxo que a outra corta.
O seio é uma máquina que produz leite, e a boca, uma máquina acoplada a ela.
Uma máquina - órgão para uma máquina energia, sempre fluxos e cortes.
Somos todos "bricoleurs" = bricolage: atividade de aproveitar coisas usadas, quebradas, ou apropriadas para outro uso, em um novo arranjo ou em uma nova função.
O homem não vive a natureza como natureza, mas como processo de produção. Não há mais nem homem nem natureza, mas apénas o processo que produz um no outro e acopla máquinas.
Em toda parte, máquinas produtoras ou desejantes, as máquinas esquizofrênicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior não querem dizer mais nada.
Édipo supõe uma fantástica repressão das máquinas desejantes.
O corpo sobre a pele é uma usina superaquecida, e fora o doente brilha, irradia por todos os seus poros estourados. Pois em verdade - a cintilante e negra verdade que faz o delírio -, não há esferas ou circuítos relativamente independentes: a produção é imediatamente consumo e registro, o registro e o consumo determinam diretamente a produção, mas a determinam no seio da própria produção.
Tanto que tudo é produção: produções de produções, de ações, e de paixões; produções de registros, de distrubuições e de marcações; produções de volúpias, de angústias e de dores.
Não o homem enquanto rei da criação, mas como aquele que é tocado pela vida profunda de todas as formas ou de todos os gêneros, que é encarregado das estrelas e dos animais, e que não cessa de ligar uma máquina - órgão em uma máquina energia, uma árvore no seu corpo, ou seio na boca: eterno encarregado das máquinas do universo. Sempre uma máquina acoplada a outra - A síntese produtiva. O desejo faz escorrer, escorre e corta. Todo objeto supõe a continuidade de um fluxo; todo fluxo é fragmentação do objeto. Sem dúvida, cada máquina - órgão interpreta o mundo inteiro segundo seu próprio fluxo, segundo a energia que flui dela: o olho interpreta tudo em termos de ver - o falar, o escutar, o poder.
A regra de produzir sempre o produzir, de enxertar o produzir sobre o produto é a caracteristica das máquinas desejantes - produção de produção.
Quanto ao esquizofrênico, com seu papo vacilante que não cessa de migrar, de errar, de tropeçar, ele se aprofunda cada vez mais na desterritorialização, sobre seu próprio corpo, seus orgãos no infinito da decomposição do socius, e talvez seja sua maneira de reencontrar a terra, o passeio.
Campo Social = Campo de anunciação e enunciação
Libido: energia própria das máquinas desejantes.
O acoplamento de produção, máquinas desejantes e campo social dá lugar a um acoplamento representativo de uma natureza totalmente diversa, familia-mito.
Vocês já viram como uma criança brinca? Como ela já povoa as máquinas sociais com suas máquinas desejantes? A criança toma emprestado peças e engrenagens receptores ou de interrupção, agentes de produção.
Por que ter instalado formas expressivas, e todo um teatro onde havia campos, oficinas, fábricas, unidades de produção? É assim que o Terapeuta Ocupacional monta seu circo - único teatro de produções. É aí onde os fluxos atravessam o limiar de desterritorialização e produzem a terra nova.
Ponto de fuga ativo - onde a máquina revolucionária, a máquina artística se tornam peças e pedaços umas das outras.
O que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao infinito, em todos os sentidos e em todas as direções.
Terapia Ocupacional - proecesso de desemganchamento como procedimento de recorrência. O desejo passa por todas as peças da máquina. Isso significa que as máquinas desejantes não são pacificadas: existem nelas dominações e servidões, elementos mortiferos, peças sádicas e masoquistas justapostas.
Uma verdadeira política da psiquiatria, consistiria, portanto:
1- em desfazer todas as re-territorializações que transformam a loucura em doença mental
2- em liberar em todos os fluxos o movimento esquizoide de sua desterritorialização, de tal maneira que esse caráter não possa mais qualificar um residuo particular como fluxo de loucura, mas afete também os fluxos de trabalho e de desejo, de produção, de conhecimento e de criação na sua tendência mais profunda.
A loucura não existiria mais enquanto loucura , não porque ela tenha sido transformada em doença mental, mas, ao contrário, porque ela receberia o complemento de todos os outros fluxos, inclusive da ciência e da arte - sendo dito que ela só é chamada de loucura, e aparece como tal, porque é privada desse complemento e se acha reduzida a testemunhar sozinha pela desterritorialização como processo universal.
O louco, o que importa é que consiga viver uma experiência estética extremamente rica, garantindo assim a sua sobrevivência humanizada - experiência total do ser, que encerra energia vital, transfigurada nos objetos concretos, vivos, perceptiveis, sublimados e, também denunciadores de força, da consequente experiência emocional de seu ator-autor. São obejtos estruturados e estruturantes de ideias, passivas de serem captadas, reconhecidos pelo expectador, interagente da produção estética. Assume-se que a produção estética seja toda a produção eivada de emoção, em qe se explicita o nível de sensibilidade de seu produtor - fruidor, por isso mesmo considerada humanizadora.
O louco quando expressa-se estéticamente o faz, classificando e organizando objetos de uso virgente na sociedade em que vive, notadamente aqueles objetos de seu passado e se seu pesado cotidiano - o hospital psiquiátrico - tais como: copos, talheres e outras coisas.
Sua obra artística é datada e contextualizada.
Amigo, designaria uma certa intimidade competente, uma espécie de gosto material e uma potencialidade, como aquela do marceneiro com a madeira, ele é o amigo da madeira.
Erigir o novo evento das coisas e dos seres é dar-lhes sempre um novo acontecimento: o espaço, o tempo, a matéria, o pensamento, o possível como acontecimentos...
O que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações composto de percepções e afetos.
Só passamos de um material a outro, como do violão ao piano, do pincel à brocha, do óleo ao pastel, se o composto de sensações o exigir. O objetivo da arte, com os meios do material, é arrancar as percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente. Arrancar o afeto das afecções, como passagem de um estado a outro.
O difícil é juntar, não as mãos, mas os planos.
Composição é estética, que é o trabalho das sensações.
O doente pede somente um pouco de ordem pra se proteger do caos. Nada é mais doloroso, mas angustiante, do que um pensamento que escapa a sí mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não denominamos.
Criar é mergulhar no espaço (morte), ou vivência e superação da morte. No criar a pessoa não cabe em sí; criar é a configuração dos fantasmas e demônios.