quarta-feira, 16 de maio de 2018

UMA TERAPIA OCUPACIONAL LEAL

A TERAPIA OCUPACIONAL - QUE EU ESCREVO POLITICAMENTE EM LETRAS MINÚSCULAS, PARA AFIRMAR SUA DIVERSIDADE - é, no mínimo, engraçada. Engraçada por seus caminhos misteriosos e inesperados. Engraçada também por suas doces e intensas descobertas. Vivendo como terapeuta ocupacional, nós, muitas vezes, apreendemos algumas revelações que intensificam nossa existência. Algumas delas são encontros que nos proporcionam esse modo de sentir a vida pulsar em alto grau. A lealdade é uma dessas possíveis facetas que encontramos na terapia ocupacional e que nos faz acreditar em momentos poéticos da nossa existência. Uma das possíveis formas de perceber a realidade é entendê-la como fidelidade, ser fiel, seguir conforme a lei. Num primeiro momento, se tomarmos o termo em sua forma moral, podemos entender o ser fiel como algo aprisionador. Contudo, para ser fiel, para ser intensamente fiel, é preciso navegar nas águas da traição, sentir desejos por outros caminhos, por outros amores e até mesmo experimentar outros sabores. Desse modo fazemos nossa escolha de forma mais amadurecida. Aqui nossa escolha não é pela lei penal, mas, como diz Almodóvar, pela lei do desejo. Leal é aquele que está de acordo com a lei; só que, para nós, a lei do desejo. Há muito me impressiona a passionalidade, às vezes até mesmo inocente, de muitos terapeutas ocupacionais. Alguns, quando falam dela, a colocam nas alturas como uma espécie de senha sagrada para ascensão ao Olimpo ou para transferir esferas de um mundo idílico dos justos e solidários.  Por que a terapia ocupacional pensa de forma tão apoteótica sobre si? Porque, penso eu, é movida pela lei do desejo. É leal ao desejo. Sua lei é o desejar.
Esse doce mistério que extrapola toda a racionalidade, lógica e paradoxalmente à própria lei na sua forma tradicional, é algo que parece estar presente na terapia ocupacional, tornando-a engraçada. Porque a terapia ocupacional deve transitar no paradoxo entre a ciência, presente na área da saúde, e a arte constituinte dos fazeres. Assim, todo desejo caminha entre ódio e amor. Quem deseja ama, porém também pode odiar. Por isso há tanta tensão na terapia ocupacional. Tensão porque só podemos realizá-la por desejo, mas alguns protocolos acadêmicos têm que ser cumpridos!
Por mais que sintamos a cada dia o crescimento da terapia ocupacional - e essa é uma verdade inegável - ela ainda permanece com um certo tom de ser mal compreendida, de que, para entendê-la, é preciso possuir outras sensibilidades, quase que divinatórias. Vários caminhos são tomados nessa direção, em busca sempre da fidelidade e da lealdade à terapia ocupacional. Alguns a apresentam com seus métodos seguros e firmes, bem reconhecidos e legitimados, e em tom professoral afirmam que os males da terapia ocupacional estão nas mãos daqueles que a profanam com seus pensamentos herméticos e filosóficos. Estes são fieis, pois querem a legitimação da terapia ocupacional através da ciência, e têm a difícil tarefa de verificar a normatização das atividades, descobrem as verdades do macramé... Para esses terapeutas ocupacionais, os outros profissionais ditos filosóficos borrariam a profissão com caminhos pouco claros, que não levam a terapia ocupacional para a crista dos saberes médicos homologados pelo conhecimento autoritário e hegemônico.
Do outro lado, os terapeutas filosóficos, espécie de messiânicos, proclamam uma dimensão ontológica para a terapia ocupacional. Uma natureza ocupacional invade nossos pensamentos e estes afirmar que o fazer é condição humana, que organiza os homens, suas sociedades, sua cultura, sua transcendência, sua essencialidade, sua existência. Homens e fazeres tornam-se espécie de ovo e galinha.
Surge, então, uma tensão na terapia ocupacional que é belíssima, belíssima porque a faz fervilhar de pensamentos que ora são diferentes, ora paradoxais, ora excludentes. Com tudo isso, a terapia ocupacional jamais se tornaria estagnada. Há várias seduções: ser mais científica ou ser mais poética. Há ainda aqueles que querem se manter na boa relação entre os dois lados.  Mas dessa forma muito se esgarça na terapia ocupacional, e se ainda permanecemos nela, seguramente é por paixão, uma paixão que nos faz amar e odiar facetas da própria terapia ocupacional.
Sabemos da importância daqueles que querem organizar a terapia ocupacional em pensamentos seguros e precisos, coo se pudessem fazer da atividade um arco de movimento universal, medido por um goniômetro do deus absoluto. Valorizo e dedico minha lealdade a eles. Mas graças a muitas cantorias, algumas nordestinas, a terapia ocupacional se faz também por outros goniômetros mais tortos. Tortos não porque não são precisos, mas porque se entortam precisamente nas distorções dos sonhos. Esses terapeutas ocupacionais são espécie de ontólogos que querem fazer da profissão uma potência para conceituar a vida, fazendo brotar um estilo novo de viver. Já há muito sabemos que a terapia ocupacional mergulha no vale das ontologias (materialismo histórico, existencialismo, esquizo-ocupação, ocupação humana). Talvez pela complexidade e fragilidade de seu objeto, o terapeuta ocupacional deixe de ver a atividade somente como elemento redutor de sintomas e entenda a função do fazer criar realidade humana, e algumas vezes dando sentido à existência. O macramé não é apenas um estimulador de arcos e movimentos, é o tramar da própria vida. A atividade, a ocupação, o fazer humanizam o homem e guardam simples mistérios que se abrem quando o corpo age de forma intensiva. Esses terapeutas ocupacionais ora são patéticos, ora são poéticos, ora são políticos. São porém, sempre sonhadores.Não produzem sonhos para se perderem e delírios de um mundo próprio, mas sonham com novos mundos ao seu lado, a sua frente, consigo mesmos e com os outros. Eles falam na língua de Bachelard, na língua de Nise da Silveira, na língua de Deleuza, na língua de Rui Chamoni, na língua de tantos outros.
Alguns terapeutas ocupacionais são assim: plurais, místicos, jocosos, porque acreditam demasiadamente na vida, querem a vida intensa com todas as suas cores, sons e gestos. Um desses profetas ocupacionais é Luiz Gonzaga, ele é um Leal, leal de nome e de vocação. E é um desses que produzem devaneios diversos. Não porque faz da terapia ocupacional uma precisão, mas ele justamente quer o contrário, fios de imprecisão, para que nesse arco de abertura muitos convites possam ser feitos... e aceitos. É uma quizomba, um encontro de todas as raças, de todas as facções. Jô, Nise, Bastide, tu, eles, nós. Todos estão povoando a alma leal de Gonzaga. Espécie de paternidade acolhedora da diferença e dos diferentes - claro, ele é Terapeuta Ocupacional.
Leal é desses que fazem do quotidiano profissão de viver. Por isso, tudo lhe é muito caro: um som, uma canção, um orixá, um pierrô, uma Nise, um gato, um amigo, uma carta, um encontro. Nada é em vão, tudo traz sentidos múltiplos e na multiplicidade de sentidos é ue o sentido de sua existência se faz. Mais uma vez ovo e galinha. Gonzaga é assim por ser terapeuta ocupacional, ou tornou-se um por ser assim?
Ele, na qualidade de leal, tem a marca da fidelidade. Nise, de certa forma, dizia que os felinos são leais. Eles escolhem bem aqueles que são leais, por isso nossa mãe da terapia ocupacional fez de seus gatos espécie de juízes que escolhiam seus frequentadores em sua casa. Eram os gatos que decidiam quem iria estudar os arquétipos de Jung, as materialidades de Bachelard ou a terapêutica ocupacional nisiana.
Leal é amado por Nise, poi, enquanto felina-mor, gata mestra, seus bugalhos enormes enxergam ontólogos leais.  Ela nos faz pensar então que o nome Leal queda uma profecia, uma sina abençoada com gosto de Nordeste. Que faz a terra branca arder de desejos por nossa profissão.
Obrigado, Luiz, por ser sonoro como Gonzaga e por ser leal como profissão.

Escuto a ti, bem aqui,
ao pé do ouvido.
Fala baixo,
fala manso...
Não é preciso te cansares,
não desgastes teu verbo aberto de nordestino.
Basta pouco mais que meio quilo
de peso de teu som em sol maior quente do agreste
para me recitar teu mantra secreto...
Vai, ensina mais,
cada mistério que há no viver.
Mexe tuas e nossas mãos abertas
para a criação
e não me deixes as rugas vazias de sentido.

- Marcus Vinícius Machado de Almeida
Marquinhus, para os ontólogos
Rio de Janeiro, Maio de 2005

quinta-feira, 10 de maio de 2018

NANÁ VASCONCELOS: UM ARQUEÓLOGO, PARA INVESTIGAÇÕES SUTIS



O Brasil e o mundo têm seus ouvidos ligados nele, e ele emite batuques dissonantes pelos mil alto-falantes.
Sua presença mantém teso o arco da arte e é da maior importância para todos nós.

            Além de versos
            No tambor de todos
            Os seus ritmos e
            Na rima de seu estilo.

Nessa justa homenagem que o 26º Festival de Inverno de Garanhuns - e todos nós - prestamos ao nosso Orixá Naná Vasconcelos, era assim que eu o chamava, recordo-me do nosso último encontro em uma tarde cinzenta de domingo, novembro de 2015.
Naquela ocasião, entre tantas idas e vindas, os temas Morte, Vida e Ressurreição permearam a nossa longa conversa, regida por pausas e silêncios.
Talvez inspirado por uma região de silêncio, Naná confessou-me: “Só a ressurreição da carne me sustenta. É ela que constitui a última utopia humana. Só consigo justificar-me, enquanto pessoa, se passo a apoiar-me no esplendor de uma plenitude maior do que a morte”.
Naquele breve instante, tive a clareza de que o nosso artista estava querendo assegurar-me de que morte é passagem, é nascimento, é ruptura catastrófica da forma, é imersão no tempo e na fuga vertiginosa que o constitui.
Sim, tive o privilégio de ser amigo de Naná Vasconcelos.
Meus encontros com Naná eram enriquecidos pelo timbre incomum da sua voz, por sua fala maneira e cadenciada, pelo olhar e expressão do rosto, a movimentação corporal, sobretudo das mãos – tão única, tão sua.
As frases que guardo desses momentos impõem sua presença como poeta e, para mim, um religioso poeta. De repente, algo só fazia sentido se nos abríssemos para a transcendência. Retomando o nosso último encontro, ele concluiu, assim como num jato: “O Ser Humano exige doutrina, que garanta a ressurreição dos corpos”, e eu repeti “Dos últimos artigos do Credo. Mas o meu favorito desses é a Comunhão dos Santos”.
“A Comunhão dos Santos”, aí foi ele que repetiu, com entusiasmo que o levava a levantar-se, inclinar muito o tronco para a frente, balanceando-se. Veemência também na voz: “Muito importante a Comunhão dos Santos. Dogma lindo”.
Como os seus olhos brilhavam quando o assunto tocava, aproximava-se, roçava em religião. Não sei bem o que, para ele, não roçava em religião.
Guardo comigo, com muito cuidado, o meu primeiro encontro com Naná. Era o ano de 1998. Estávamos no estúdio Via Som, em Recife, onde ele iria gravar uma participação especial em meu primeiro CD Olhar Brasileiro. Naná aproveitou uma pausa na gravação e apontando para uma linda samambaia, que pendia do teto, falou: “Mais importante que tudo isso é essa samambaia. Eu tomo a benção a essa samambaia”.
Naquele instante, o que era som converteu-se em um silêncio abrasador entre todos nós.
Me é dado sentir a felicidade do encontro entre convicções minhas e suas formulações tão perfeitas e tão simples. Soavam como hinos de amor às coisas. Sobretudo, porque a esperança era um traço que dominava os ditos e fazeres de Naná Vasconcelos.
O coração de Naná bateu demais por grandes causas.
A morte, mesmo que para ele pudesse existir, não romperia uma existência como a sua. À distância, senti a dor que havia em mim. Mas o corpo dentro da urna, não era o Naná. Era apenas o barco que o luminoso companheiro do espírito deixara para continuar a viagem – o perito navegante – por oceanos que alguns viventes não conhecem, mas obscuramente sabem que existem.
Um dos aspectos mais importantes da grande criatura que era Naná Vasconcelos era a sua capacidade de se indignar. Talvez fosse essa a sua principal manifestação de bondade. Era quem podia machucar, mas, muito mais, era quem podia curar. Conferia uma dimensão de grandeza à impaciência.
Muitas vezes penso em Naná Vasconcelos como um João de Guimarães Rosa, com a doçura contemplativa dos pernambucanos. Naná era um devoto do aspecto trinitário de Deus, mas me parecia que amava especialmente o Filho, oscilando entre o apelo divino e o das carências humanas pelas quais veio ao mundo já destinado à morte.
Nosso artista, desde sempre, confessara sua crença em Deus. E como era belo, generoso, libertário e popular o seu Deus.
Um dos seus traços mais notáveis era a sua imprevisibilidade. O homem e o artista nunca estavam onde a convenção mandava estar. Nos encontros marcados, sua presença trazia sempre consigo a surpresa. Exemplo típico dessa imagem de marca foi a atitude para com a religião. Aparecendo publicamente como religioso, encantou, apaixonou, emocionou, intrigou e fez pensar todos aqueles que, enquanto artistas, acham que no humano nada é evidente por si mesmo.
A religião e a música nada mais podem dizer sobre o sagrado, exceto que, diante dele, a palavra cala.
Pode a música coexistir pacificamente com a religião? É possível afirmar a verdade de uma, sem negar a verdade da outra?
Essa questão, Naná nos deixa como legado de seu espírito inquieto e criador. Num universo desencantado, dessacralizado e dessignificado, como o nosso, ela pode parecer nostálgica, como uma foto amarelada. Mas, para os que não se deixam enganar pelo fogo fátuo da civilização ou barbárie, ela continua atual e enigmática.
Aqui estava contido, talvez, o seu paradigma mais essencial, construído por um plantador de sonhos: em tempos de barbárie, recorramos, pois, aos artistas e suas cosmogonias, mesmo sabendo dos riscos da velha querela entre o saber dos artistas e a prática filosófica do logos.
Plantador de sonhos: talvez seja essa a qualificação mais apropriada à atuação de Naná Vasconcelos, como homem e como artista, que soube ultrapassar os limites do senso comum e das distinções cartesianas para semear campos onde a humanidade possa realizar, florescer e fertilizar.
Naná Vasconcelos, como em tantas coisas mais, soube estar atento à beleza e à verdade. Não seria de estranhar: nada que era humano lhe era indiferente. Aproximou-se ferozmente do essencial. Era um romântico impetuoso, atiçado pela paixão sem rédeas, devotado lutador junto a causas indefensáveis.
Pagou um preço que foi preciso pagar, para construir uma linguagem original e conquistadora, que não se limitasse a enunciar o que já sabíamos, mas que nos introduzisse em experiências bifurcadas, em perspectivas que jamais seriam as nossas e nos desfizesse, enfim, de nossas manchas preconceituosas.
Nos fez pensar o que Merleau-Ponty nos aponta: nenhuma obra de arte ou pensamento pode ser total, e que toda verdadeira obra é feita de significações abertas.
Naná foi mais longe ao admitir que em música não há superação absoluta, assim, a importância do que faz o artista mede-se pela extensão do poder que suas obras conferem sobre as coisas e sobre nós mesmos.
Naná era personalidade vibrante e viveu intensamente os seus 70 anos. Exerceu o seu ofício com amor, paixão e eficiência. Tudo que atraía o seu interesse era feito com exaltação, entrega total e apaixonada. Lúcido e sensível, tinha singular capacidade de percepção do humano, tanto no plano individual como no plano social.
Depois de toda uma inquieta busca, da incansável fé em suas utopias, Naná Vasconcelos está na luz. Ele não nos deixou. Caminha conosco na Comunhão dos Santos, protestando, libertando, poetando, somando-se àquela humanidade que ascende penosamente ao Reino da Liberdade, primícias do Reino de Deus.
Como poucos, Naná Vasconcelos era um artista de verdade. Um desmanchador de cercas e um administrador de esperanças.
Consta que, no hospital, antes de morrer, Naná abriu os olhos e disse: “... agora nós dois...”.
Quando transcendia a vida, quando dava o salto para continuar seu voo, Naná abriu bem os olhos e falou para Patrícia, sua companheira: “Patrícia, agora, entre nós, tu, eu e ela. Solidão, mas sem desassossego”.

HOMENAGEM A MANOEL DE BARROS

MANOEL de BARROS, um poeta que se encontra às vezes com os trastes. E na escória às vezes passeia. Sua retina está fixada no chão , no solo. Ao que parece, escolheu semelhante território com tamanha ênfase até o ponto que o chão e os seres e coisas que o compõem, em sua poesia, assumem a mesma dimensão de um cosmo. Um poeta que canta as coisas e seres mínimos do chão com enorme intensidade. O chão da lua não o atrai... Lá não existe morrinhos de formigas,orvalho,córregos e árvores carregadas de passarinhos.Manoel areja as palavras, não deixando que morram de clichês. Pega as mais prostituídas pelos lugares comuns e lhes dar novas sintaxes, novas companhias.Coloca ,por exemplo , ao lado de uma palavra solene um pedaço de esterco.Ele constantemente reaprende a errar a língua, como exercício para devolver a inocência da fala. Ele é um enamorado da pintura de WEGA NÉRY, por quem se sente arrebatado e por isso um iluminador da sua poesia. Segundo ele, a pintura de WEGA, tem muitas águas guardadas que se empoemam e cacimbas azuis remansam em suas paisagens de sonho. Manoel de Barros aposta na inocência artística: a poesia das crianças e loucos, o canto dos pássaros e feridas borboletas fazendo propostas de cores tortas. As falas em "Cobra Norato" de RAUL BOPP, os atoledos vesgos,a lama lívida dos igarapés e as árvores prenhes produziram em sua alma enorme repercussão. Apaixonou-se pela desarrumação linguística estruturada, contida em " SERAFIM PONTE GRANDE " , de OSWALD DE ANDRADE... Nos dá a impressão que sentiu-se em um banquete a provar o sabor de gênio e susto, o "EU" , de Augusto dos Anjos. Manoel de BARROS remete-me a Jorge de Lima : Estão aqui as pobres coisas: cestas
esfiapadas, botas carcomidas,bilhas
arrebentadas, abas carcomidas,
com seus olhos virados para os que
as deixaram sozinhas, desprezadas,
esquecidas com outras coisas, sejam:
búzios, conchas, madeiras de naufrágio,
penas de ave e penas de caneta,
e outras pobres coisas, pobres sons,
coitos findos, engulhos, dramas tristes,
repetidos, monótonos, exautos,
visitados tão só pelo abandono,
tão só pela fadiga em que essas ditas
coisas goradas e órfãs se desgastam.

Isso está na "INVENÇÃO DE ORFEU" , Canto V. Poemas das Vicissitudes. E ocorre-me também um verso de LORCA " una gota de sangre de pato bajo las mutiplicaciones" ( poeta en Nueva York) onde LORCA engrandece o ínfimo. Uma gota de sangue de pato no asfalto de Nova York é uma ínfima coisa que arrebatou o poeta.

Para MANOEL DE BARROS, engrandecer as coisas menores através da linguagem é uma das funções da poesia.

Em breve, e chegando de mansinho, CONCERTO DE ASSOBIOS, baseado na poética de MANOEL DE BARROS e CÂNTICOS DE TRABALHO.

VIVER, ESSA DIFÍCIL ALEGRIA...


Viver é jogo, é risco. Quem joga pode ganhar ou perder. O começo da sabedoria consiste em aceitarmos que perder também faz parte do jogo. Quando isso acontece, ganhamos alguma coisa de extremamente precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se sei perder , sei ganhar. Se não sei perder , não ganho nada, e terei sempre as mãos vazias. Quem não sabe perder, acumula ferrugem nos olhos e se torna cego - cego de rancor. Quando a gente chega , com verdadeira e profunda humildade, as regras do jogo existencial, viver se torna mais do que bom - se torna fascinante. Viver bem é consumir - se, é queimar os carvões do tempo que nos constitui. Somos feitos de tempo, e isto significa : somos passagem, movimento sem trégua, finitude. A cota de eternidade que nos cabe está encravada no tempo. É preciso garimpá - la, com incessante coragem, para que o gosto do seu ouro possa fulgir em nosso lábio. Se assim acontece, somos alegres e bons , e a nossa vida tem sentido.
Escrever e criar constituem para mim uma experiência radical de nascimento. A gente, no fundo, tem medo de nascer, pois nascer é saber - se vivo e - como tal - exposto a morte . Escrevo menos do que devo para - quem sabe ? - manter a ilusão de que tenho um tempo longo pela frente . A meu favor, posso dizer que, com frequência, agarro - me pelas orelhas e me ponho ao trabalho.
Há no diário de KAFKA , um pequeno trecho ao qual gostaria de permanecer para sempre fiel, fazendo dele a minha fórmula de vida : "... Há dois pecados humanos capitais dos quais todos os outros decorrem :a impaciência, e a preguiça . Por causa de sua impaciência , foi o homem expulso do Paraíso . Por causa de sua preguiça , não retornou a ele ...". Talvez não exista senão um pecado capital, a impaciência . Por causa da impaciência, foi o homem expulso, por causa dela não consegue voltar. Tenhamos paciência - uma longa, interminável paciência - e tudo nos será dado por acréscimo.
Sou um homem de muitos amores - isto é, de muitos interesses - e, para tão longos amores, tão curta é a vida. Não há ninguém que consiga, no tempo de uma vida, esgotar todas as suas possibilidades. Se me fossem dadas outras e outras vidas, gostaria de ser : filósofo profissional , romancista, guerrilheiro , chofer de caminhão, dono de loja de disco, morar numa casinha lá na Marambaia apaixonado por um moço triste , debruçado à janela de uma casa saída de quadro de Volpi, cobrador de ônibus, ter um caso de amor com Cora Coralina , a quem me dedicaria com veludosa e insone dedicação, ser seresteiro poeta e cantor.
Para mim, a coisa mais importante do mundo é a possibilidade de ser- com - o - outro, na calma, cálida e intensa do amor. O outro é o que importa, antes e acima de tudo. Por mediação dele,na medida em que o recebo em sua graça, conquisto para mim a graça de existir. É esta a fonte de verdadeira generosidade e do autêntico entusiasmo - Deus - comigo. O amor genuíno ao Outro me leva à intuição do todo e me compele à luta pela justiça e transformação do mundo.
Ah! o amor é surpresa, susto esplêndido - descoberta do mundo. Amor é dom demasia presente. Dou -me ao Outro e, aberto à sua alteridade, por mediação dele , recebo dele o dom de mim, a graça de existir, por ter - me dado.
Deus é o ser em si mesmo, fundamento de todos os entes, abismo insondável de cujas profundezas todos os entes brotam. Deus é a raiz última de todas as coisas. A glória , a graça e o mistério de todas as coisas decorrem da presença do sagrado nelas - sinal de sua providência.
Qualquer experiência em profundidade é , ao meu ver, uma experiência autenticamente religiosa - conhecimento de Deus.
Bom dia sempre!!!!

TRADIÇÃO DEMOCRÁTICA


ESTOU CERTO DE QUE ATÉ AGORA NÃO INVENTOU-SE MELHOR CONVÍVIO SOCIAL DO QUE AQUELE TRAZIDO PELA TRADIÇÃO DEMOCRÁTICA.

Sempre achei muito ruim encararem a diferença de maneira hierárquica, fazendo desta hierarquia intolerância e perseguição aos supostos inferiores. Quanto a isso, tenho sobretudo o que se poderia chamar, um pensamento mais caseiro... Aí, não sei se trata-se de questões subjetivas mais profundas minhas, se são as minhas histórias de classe( no plural mesmo), o meu nascimento no Nordeste do Brasil... Para mim, é impossível lidar com coisas que não têm relação com isso. Fico me sentindo retórico , tenho a impressão de estar em conversa de salão. Quando penso nestas questões, o que resulta, se revela em algo extremamente vital , que implica "dores" minhas e do outro. Sinceramente, o que hoje me interessa é a minha aproximação com tudo aquilo que traz e inscreve-se na dimensão da diferença.Isso possibilita me demarcar, de ter um total interêsse pelo que é humano e não pelo que é uma extrapolação, uma imagem etérea do humano.Estou convencido do pensamento plural. Estou certo de que até agora não inventou-se melhor convívio social do que aquele trazido pela TRADIÇÃO DEMOCRÁTICA, quer dizer, aquele em que as idéias proliferam e são livremente discutidas. É evidente que essa posição pragmática tem um limite. No entanto é muito difícil me libertar dessa preocupação e pensar em questões um tanto mais abstratas. Imagine, se todo mundo fosse como eu, que pobreza de idéias o mundo teria! ESTE É O MEU LIMITE. SÓ RESPEITANDO O PRÓPRIO LIMITE E FUNCIONANDO DE ACORDO COM O QUE SE PENSA É QUE SE PODE ACRESCENTAR UMA PEDRA A MAIS NA CONVERSAÇÃO DA HUMANIDADE. ISTO SIGNIFICA DILATAR OS HORIZONTES DOS POSSÍVEIS E TENTAR INVENTAR MUNDOS OU ALTERNATIVAS DE MUNDOS VIÁVEIS. Isto é que faz grande parte do que considero CONDIÇÃO HUMANA. Humberto Eco, no pós - escrito do "NOME DA ROSA" diz que todo escritor tem seu interlocutor-cúmplice. Mas também posso aqui pensar, que os opositores são fundamentais. E desta forma , quais seriam os meus cúmplices e os meus opositores? Meus interlocutores cúmplices são todas aquelas pessoas que estejam preocupadas em pensar o PARTICULAR OU A DIFERENÇA entre particulares. Meus opositores , nessa conversação são os pensadores do UNIVERSAL. Estou sempre perguntando a eles como é que acham que podem passar por cima das sombras, da contingência histórica para pensar o sopro, o etéreo, a essência d'aquilo que seria verdadeiramente humano. Todo grupo pensa os seus fundamentos, pensa o que é verdadeiro em função de uma determinada tradição, de valores dos quais ele não pode escapar, quer dizer,em função dos seus mitos de origem. O que se pode é , admitindo essa contingência, dizer aos demais: " Veja só o que penso e como penso em função daquilo que tenho como herança cultural. O que é que você, que tem outra tradição acha disso? O que me propõe? É através desse diálogo que se pode fazer proliferar as alternativas e modos de vida. Todos temos direito a auto-realização, a fazer de sua vida uma obra de arte!