Entre mim e as pessoas de quem
cuidei, a escrita sempre se fez presente. Ora como um gesto espontâneo, ora
como necessidade do próprio momento do encontro. Alguma dificuldade surgia e a
escrita, portanto, se tornava objeto de intermediação no sentido de presentificar
o afeto. Ainda assim não deixava de se traduzir no gesto concreto de o outro se
dizer no mundo e de se reafirmar como pessoa. Por outro lado, era como se desassossegado
estivesse atrás de um porto seguro e nele pudesse ancorar. Escrever, então, era
o grande mistério. Pacientes inquietos tornavam-se mais doces e suaves ao
vivenciar no cotidiano o exercício da escrita. Era assim que eu entendia o
motivo pelo qual determinado paciente era impelido a escrever. E aí eu
confirmava a ideia de que escrever tem algo mágico, ilusório, fantástico, enigmático.
Tudo ali se dizia presente.
Dor e desassossego, alegria e prazer estavam sempre lado a lado; fios de
esperança que se teciam através de frases elaboradas ou impulsivamente
construídas. Imagens tantas, desenhadas com os traços e as cores da escrita. Era
como se as coisas tomassem um novo rumo e ganhassem outro movimento.
Às vezes eu tinha a impressão
de que, para construir tais escritos, os pacientes tinham que descer às
profundezas dos infernos. Mais precisamente, os escritos expressavam essa
descida e, por vezes, se convertiam até mesmo no caminho de volta. Ao longo da
minha vida profissional, fui colecionando poemas, frases, redações, versos,
pensamentos, todos relacionados com um momento singular na vida de cada um, verdadeiras
confissões em torno do existir. Era enorme o prazer de lê-los e arquivá-los. Em
síntese, era para isso que os autores me traziam suas produções: para poder
provocar um prazer ao ler os seus textos, mas por outro lado era como se
tivessem a garantia de que comigo estariam bem acolhidos e guardados. Daí o
máximo cuidado. Significações e Codificações tantas...
Alguns desses escritos me eram
endereçados. Tal gesto era por mim encarado como múltiplo, plural. Não me
atraía uma leitura reducionista do gesto, pois via nele uma tentativa de
ampliar seus universos de referência; mais uma forma do seu jeito de ser, viver
e aprender o mundo. Sempre os encorajei a escrever. Constatava que o ato da
escrita e o que resultava daí era fonte de sabores vários. Disto tinha a
convicção, pois os pacientes, nos seus relatos, me davam a noção do que é
saborear os próprios escritos. Não era à toa que manifestavam prazer ao vê-los
por mim saboreados. Era a escrita se traduzindo em laço; a pessoa destinando a
si, mas igualmente ao outro.
Alguns deles exerciam com
maior ênfase o que lhes solicitava. Era como se precisassem apenas de uma palavra,
de um consentimento para efetuar o gesto. Era tal o empurrãozinho que faltava. Outros, mais tímidos, ousavam uma menor
intimidade com o papel e o lápis. Alegavam sempre: não está na minha hora. E eu
compreendia que era o tempo da escrita – era precioso aguardar o devido tempo
para jorrar a escrita. O referencial tempo tornava-se para mim algo
fundamental, porque era também por meio dos escritos e da maneira como eram
praticados que os pacientes tentavam me dizer dos seus universos e do ritmo
interno que os movia. Espaço e tempo, relações inúmeras...
Entre os escritos que guardo
comigo, estão os depoimentos de Eleonora e Ana, os quais, com seus devidos
consentimentos, torno públicos.
Ambas sempre apresentaram uma
grande inclinação e jeito para escrever. Durante nossos primeiros contatos logo
percebi suas motivações em relação à prática e a partir dali me tornei um
incentivador. Ambas possuem uma obra vasta, já que muitos afetos foram tecidos,
costurados, desenhados em vidas através do ato de escrever e, consequentemente,
de seu produto. Produções incontáveis...
Os dois escritos a seguir, se
antes expressam a grandeza, a suavidade, a delicadeza com que elas dizem os
seus estar no mundo, por outro lado
falam de uma trajetória construída com base nos perigos, nos sustos, na
ousadia, na determinação. Se para elas foi importante fazer essa confissão,
para mim é comovedor transformar seus escritos no espelho projetor de imagens
que me dão uma clareza do processo de mediação no qual fui posto diante dessas vivências
de estados inumeráveis.
“Não
recordo bem se foi abril ou maio do ano passado, 1993, que recebi do meu
clínico geral o diagnóstico: Síndrome de Pânico. Estava eu naquele momento
vivendo um crítico período da minha vida, em que se misturavam sintomas físicos,
psicológicos, emocionais; um verdadeiro turbilhão de pensamentos, sensações e
emoções, definidas e indefinidas, que poderia ser chamado apenas de medo.
Foi
quando, de repente, num programa de televisão, (...) do qual participavam médicos
psiquiatras e outros profissionais da área de saúde mental, que vislumbrei um
raio de esperança para a cura daquela dor tão profunda e inexplicável... Anotei
o nome de um daqueles profissionais e saí à procura dele: Luiz Gonzaga Pereira
Leal. Terapeuta Ocupacional.
Marquei
uma consulta e assim conheci o dr. Luiz Gonzaga e o CECOP, local onde ele
atendia seus pacientes. Era a primeira vez que um profissional me recebia as 12
horas do dia, e foi a primeira vez que enfrentei o calor escaldante da rua e o
abafado de um ônibus superlotado, ao me deslocar de Olinda, onde moro, até o
Parque da Jaqueira, local do consultório. Algo dentro de mim me impulsionava a
seguir; mesmo correndo o risco de ter enxaqueca, coisa que o sol e o calor
sempre me trouxeram. Assim encontrei o dr. Luiz Gonzaga e confirmei a impressão
que ele havia me passado quando o vi, num certo programa na televisão, pela primeira
vez. Era um Terapeuta, mas, antes de tudo, era uma pessoa. E foi com essa
pessoa, sensível, simples e humana, que comecei o meu processo.
Durante
oito meses dediquei-me aos encontros semanais com o dr. Luiz e o ambiente da
clínica. O CECOP era um espaço de terapia ocupacional e por lá transitavam os
mais variados graus de conflitos e patologias; e talvez por isso também mais
rico e mais importante para mim naquele momento. Com minhas sessões individuais
e aquele ambiente bom à minha volta, percebido enquanto aguardava a hora de ser
atendida, comecei a sentir que alguma coisa se transformava dentro e em torno
de mim. Através do estímulo, da solidariedade, do saber ouvir e da cumplicidade
do dr. Luiz, alguns de meus medos foram lentamente desaparecendo e outros foram
tomando cada um o seu devido lugar e exercendo o devido papel na minha vida. E
também aprendi uma forma mais bonita de me expressar e talvez até mais
verdadeira: desenhando, pintando e escrevendo.
Sutilmente,
meu terapeuta me conduziu de volta à expressão poética, coisa que havia deixado
se perder num tempo passado de dores contidas e viver mal vivido. Participei de
um grupo no CECOP chamado: Clínica da Poeticidade, sob a coordenação do professor
Jomard Muniz de Brittto. Foi nessa primeira aula de poeticidade que comecei a
me dar conta das minhas mudanças internas. E tudo passou a ser novo. Nas minhas
sessões individuais com o dr. Luiz (...), através de suas expressões faciais,
gestos, posturas etc., fui sendo capaz de aos poucos, repensar as palavras,
corrigir, manter, compreender...
(...)
Lembro de uma palavra dele que, desde que a ouvi pela primeira vez, calou fundo
dentro de mim: fertilizar. Sim, eu
me fertilizava a cada sessão e essa fertilização trazia à tona minhas
descobertas. Comecei a atentar mais para meus desenhos e, através deles, a
trabalhar não só a criatividade, mas principalmente comecei a rever a noção dos
limites, tão importantes e necessários à vida, ao cotidiano, à coisa do meu. Nos meus desenhos eu conseguia
colocar formas e cores, talvez sem lógica bem definida, das figuras, mas bem
verdadeiras e intensas conforme meu sentimento do momento. Inúmeras vezes
percebi que cada desenho concluído era como se eu resolvesse uma emoção ou fato
vivido pela metade. Dessa maneira, fui me sentido cada vez mais companheira de
mim mesma.
(...)
Nesses
oito meses de terapia, ou melhor dizendo, de novo aprendizado, consegui dar voz
ao meu próprio coração e reconheci dentro dele minha religiosidade, através da
libertação de culpas e do reconhecimento delas. E assim os dias foram
passando... Quando, porém, meus problemas começaram a se organizar. De repente
a vida me colocou novamente em xeque...
No
mês de setembro minha filha adoeceu repentinamente e foi internada num hospital.
Sofri muito, me preocupei bastante, mas não entrei em desespero. (...) feitas
todas as pesquisas cardiológicas e neurológicas, ela saiu do hospital e entrou
num processo psicoterapêutico. Em fins de setembro, começo de outubro, chegou a
minha vez. Comecei com um problema na coluna cervical. Aí fui eu quem foi
socorrida num hospital de emergência. Depois de vários Raios X, foi
diagnosticado um problema na coluna cervical e nos braços. Tive o pescoço
imobilizado por cinco dias e tão logo retirei o colarinho, iniciei a
fisioterapia. Mas, antes mesmo desse problema que tive, aconteceu a brusca
interrupção do meu processo terapêutico. Dr. Luiz adoeceu e teve de ser
internado. E eu? Bem, eu estava com poucos movimentos nos braços e pescoço;
minha filha em tratamento psicoterápico, dinheiro pouco e, o que era pior: sem
terapeuta; sem meu ponto de apoio. Era chegada a hora e a vez de eu testar e
pôr em prática toda aquela transformação que se processava dentro de mim. Reuni
então toda a coragem e toda a energia que armazenei durante minhas sessões terapêuticas
e me pus a adiante. Momentaneamente desestabilizada, a pedido do meu fisioterapeuta,
procurei uma médica psiquiatra a fim de solicitar-lhe uma medicação para ajudar
no processo de relaxamento neuromuscular, tendões e ligamentos da cervical,
ombros e braços. E assim foi feito. E foi a partir desse momento que compreendi
que estava somatizando, jogando sobre o meu corpo toda a minha impotência diante
da perspectiva de possíveis e irreversíveis perdas, apontadas por sombrios
diagnósticos sobre a saúde da minha filha e também do doutor Luiz, justamente
as duas pessoas mais presentes e próximas de mim. À primeira, eu servia de
apoio; na segunda eu me apoiava. À luz dessa compreensão, voltou-me a coragem,
novamente me senti fértil e descarreguei no meu caderno de desenho todas as
minhas emoções traduzidas em imagens coloridas e bizarras, por vezes desmaiadas
e tímidas, colocando assim, de forma ordenada, sentimentos e sensações de
dúvidas, medos e incertezas, não deixando que essa impotência tomasse conta de mim
outra vez.
(...)
Formada
essa compreensão, meu corpo foi recuperando sua mobilidade, as coisas foram se
ajustando, as tristezas e preocupações começaram a ser bem digeridas...
Alguns
dias atrás, volto a encontrar o Dr. Luiz, não no CECOP, mas num outro
consultório, e reinicio um novo processo de acompanhamento para rever tudo
aquilo que foi assimilado na minha primeira vivência, marcada pelo pânico, pela
depressão, pela tristeza...”
- Eleonora.
Recife, maio de 1994
“Minha
experiência em terapia ocupacional foi algo doloroso e ao mesmo tempo muito lúdico.
Nada era desprezado e tudo se transformava em material terapêutico.
O
simples rabiscar no papel, que antes poderia ter o lixo como destino, tomava
outro rumo. Passava a ser colecionado, só pelo fato de existir, sem qualquer
julgamento. Com isso, a vontade de me expressar tomou corpo e começou a se
tornar importante para mim. Os desenhos cresciam em detalhes e qualidade.
Outros materiais, alguns que até ofereceram uma certa resistência, como por
exemplo o barro, passaram também a ser instrumento. Tudo era usado na terapia,
até mesmo as coisas mais corriqueiras. Mas o escrever passou a ser o meu grande
companheiro, a minha grande descoberta. E o mais importante que eu percebia era
como o ato de escrever passava a fluir espontaneamente dentro desse meu processo...
Minha
terapia não se limitou às quatro paredes do consultório, sempre foi um processo
muito rico e dinâmico. Era algo muito maior do que aquilo que me diziam. Estava
além de qualquer coisa a buscar, o procurar, o intuir... No processo nada era pronto
e acabado ou seguia sequências pré-estabelecidas. Tudo era ditado pelo momento
e nele tudo ia se fazendo.
(...)
Percebia a cada momento que a mola mestra da terapia era a descoberta das
capacidades e do seu consequente desenvolvimento.
Dessa
forma, fui enfrentando os meus altos e baixos com mais coragem e clareza...”
- Ana
Recife, abril de 1994